Capítulo 9 - Mikael
Como posso ser tão hipócrita?! Que estúpido!
Deixo-me cair de costas na cama e pouso as mãos sobre o estômago.
Amanhã irei sofrer.
Levanto-me e vou à cozinha beber coca-cola na doce ilusão de que o remédio milagroso do Pai Natal me vai salvar da manhã dolorosa que me espera. Fico parado à janela da cozinha a olhar para o nada. Desisto quando a má disposição regressa.
Caminho de regresso para o quarto e pelo caminho tiro a roupa, deixando um rasto de miséria por onde passo. Empilho as almofadas na cabeceira da cama e sento-me.
Deslizo o corpo ligeiramente e aconchego-me.
Lição número um que recebemos na da vida académica: Nunca durmas de barriga para cima quando estás bêbado.
É uma lição para a vida.
*
Acordo com uma dor horrível no pescoço, nas costas, no rabo! Puta merda, parece que levei uma paulada nas nádegas.
Levanto-me e caminho para a casa de banho movendo a cabeça para os ombros, estalando tudo e mais alguma coisa.
Parece que tenho um berbequim a perfurar-me o crânio. Tomo um banho para limpar a sensação de sujo que sinto e vou para a cozinha enrolado numa toalha. À primeira todos caem, à segunda só cai quem quer.
Procuro as aspirinas e meto uma num copo com água. Mas a dor é tão destruidora que acabo por meter outra pastilha efervescente no copo.
A campainha toda. Mas toca como se fosse o fim do mundo.
Só podem estar a gozar!
- JÁ VAI! - Grito.
Aproximo-me da porta com as mãos nos ouvidos. Espreito pelo óculo da porta e vejo Victoria impaciente.
Abro a porta e ela avança furiosa.
- Hei, calma! - Digo fechando a porta.
Ela para no centro da sala e fuzila-me com o olhar.
- Sabes que horas são? Onde tens o telemóvel?!
Olho em redor e vejo o rasto de roupa no caminho para o quarto. Tento pensar onde raios meti o telemóvel, mas não me lembro.
Olho novamente para ela e dou de ombros.
Victoria olha-me desconfiada e avança para ver para onde estava a olhar.
- O que aconteceu aqui?!
- Estava cansado.
- Cansado?! E essa cara de ressaca?! Liguei-te um milhão de vezes. Nem a Lilly sabia de ti. Estive quase a ligar para a policia.
Bufo um riso. - Não devias ter procurado primeiro na minha casa?
- Não desconverses, Mikael.
- Não estou a desconversar. Dormi até mais tarde, qual é o problema?
- O problema é que não me andas a contar coisas.
Balanço a cabeça negativamente e levo as mãos ao rosto para massagear as têmporas.
- O que é que achas que não te estou a contar agora?
- Onde foste ontem?
- Victoria, já falámos sobre essa mania de controlo. - Digo-lhe sem paciência. Caminho para a cozinha e pego no copo da aspirina.
- Não é controlo.
Rio. - Não? Porque não é o que parece.
- Peço desculpa se estou a tentar perceber o que se passa.
- Não se passa nada, Victoria. - Bebo. - E sabes, acho que o problema é esse.
Victoria suspira. - Nunca te dei razões para me esconderes que saías.
- Não escondi. Simplesmente justifiquei as roupas no chão. Estava cansado para as tirar quando chegasse ao quarto. Tirei-as no caminho. Até onde sei, isso não é crime.
- Mikael, nós sempre nos demos bem. Demos a liberdade que o outro precisava e nunca nos tivemos de preocupar com o que o outro fazia. Aceitámos as prioridades de cada um. Sempre dissemos que a nossa vida profissional estaria à frente de tudo enquanto a mesma não estivesse estabelecida.
- E nada mudou.
- Não? Pediste-me para ficar. Para desistir do meu trabalho no estrangeiro e ficar. Sou Relações Internacionais. Onde é suposto trabalhar? Na mesa da cozinha de casa?
- Não, Victoria. Já falámos sobre isso. Não tenho o direito de te pedir que abdiques do que é teu. Desculpa se quero que a nossa relação não se perca no caminho.
O seu olhar abre. - É isso que pensas? Que ela se está a desgastar?
Esboço um sorriso culposo porque não queria ter dito aquilo. Baixo o rosto e expiro pesadamente.
- Desculpa. Não foi isso que eu quis dizer. Tenho saudades tuas, só isso.
Victoria avança ate mim e com o dedo dobrado sob o meu queixo ergue-me o rosto.
- Onde foste ontem?
- Saí com amigos.
- Depois, Mikael.
- Vim para casa.
Victoria recua desiludida.
- Vais negar que foste à Loungerie?
Sinto o olhar abrir ao mesmo tempo que o meu coração dispara.
- Do que estás a falar?
- O Daniel viu-te entrar na loja.
Aquele filho da...
- E vais acreditar na palavra de um mulherengo que já dormiu com uma namorada minha.
- Ele parecia bastante convincente.
- Ele é mentiroso, Victoria. O seu passatempo preferido é arruinar a vida dos outros. E desde quando és amiga dele?
- Não sou.
- Então das duas uma, ou a vida proporcionou um encontro surreal, ou estás a usá-lo para me testar.
Victoria olha-me boquiaberta. – Como te atreves?!
Bufo um riso. – Estás a fazer o mesmo comigo, Vic. - Meu Deus! Sinto-me tão mal comigo mesmo. O que estou eu a fazer?! Por que estou a mentir-lhe? Porque continuo a ser hipócrita? - Victoria, eu amo-te. - Ela bufa um riso sarcástico.
- Eu não sei, Mikael.
- Acredita em mim, por favor! Seria incapaz de fazer algo assim! Não sei onde foste buscar essas ideias malucas. Ou como foste cair na conversa daquele sacana.
- Ela é bonita...
- Pois é. - O olhar de Victoria abre. - Tenho olhos na cara, por favor. - Victoria fica em silêncio. - Ela é bonita, mas isso não significa nada para mim a não ser que é uma mulher bonita. É contigo que estou e quero estar. Vá lá, sabes que não sou muito bom a falar de sentimentos. Estou a fazer um esforço enorme para ser transparente contigo. - E hipócrita. Devia mudar o meu nome para Mikael Alexander Hipócrita.
- Uma oportunidade. É tudo o que te dou, Mikael.
Seguro-lhe o rosto e beijo-a.
- É tudo o que preciso. - Murmuro contra os seus lábios.
Preciso deixar de ser parvo.
- Precisas escovar os dentes até esse bafo a ressaca desaparecer. ― Reviro os olhos forçando-me a lembrar por que estou a fazer isto. ―Vou almoçar com a tua irmã. Queres vir?
Nego. - Tenho uma ressaca para curar.
- Estou a ver. Queres que te traga alguma coisa?
- Não. Vou tomar Gurosan. Daqui a umas horas estou como novo.
- Tudo bem. E o teu telemóvel?
- Acho que o perdi. - Confesso sorrindo.
Sou mesmo cobarde.
Puxo-a para mim e beijo-lhe o topo da cabeça.
- Preciso ir. Já estou atrasada.
Espreito as horas no relógio do micro-ondas e abro o olhar quando vejo que são treze e vinte e oito.
- É melhor. Não tinha ideia de que fosse tão tarde.
- Eu disse-te que era tarde.
- Pois disseste.
Quando Victoria sai e a porta fecha, deixo-me cair no sofá com as mãos no rosto.
- O que estou a fazer?
Telemóvel!
Estico o braço para agarrar o telefone e marco o meu número. Olho para o vazio concentrando-me no silêncio. Por que não oiço o toque do telemóvel?! Não acredito que tenho aquela porcaria em silêncio!
Levanto-me irritado comigo mesmo e preparo-me para desligar quando alguém atende.
- Sim?!
- Ah... Sim?
- Quem fala?
- Isso pergunto eu!
- Encontrei este telemóvel. É o dono?
- Diz "Casa" no visor, não diz?
- Diz.
- Então...
- Então é o dono do telemóvel. Quando saí da loja não vi nenhum telemóvel. Consegue explicar-me como é que ele aqui veio parar.
O coração bate. Merda!
- Loja?!
- Sim. Onde deixou o telemóvel.
- Não deixei. Perdi. Que loja?
- Loungerie.
Merda. Merda.
Levo o nó do dedo indicador à boca e mordo-o com força.
- Seria possível enviar-mo para a minha morada?
- Desculpe, mas não somos os correios.
Reviro o olhar. - Com quem estou a falar?
- Pergunto o mesmo.
- Mikael Forgasi.
- Ruth Mailwan.
- Ok. Agora que já sabemos o nome um do outro, seria possível entregar-mo? Não consigo passar pela loja e preciso mesmo desse telemóvel.
- Desculpe, mas temos que seguir o protocolo da loja. Itens encontrados são entregues em mão na loja, para que as câmaras de segurança captem o momento.
Gargalho.
- Está a falar a sério?!
- Está a ouvir-me rir?
- Pode estar a fazê-lo mimicamente. Vou pedir à minha irmã para ir aí buscá-lo. Certifique-se apenas de que lho entrega sem problemas.
- Tudo bem. Preciso do nome da sua irmã.
- Elizabeth Forgasi. Ela pode apresentar-se por Lilly.
- Ficaremos à espera dela. Com licença.
E desliga a chamada.
Fito o telemóvel incrédulo. Que conversa de malucos!
Marco o número da minha irmã. Mas no momento em que vou pressionar o botão para chamar, lembro-me de que Lilly foi almoçar com Victoria.
- Merda!
Não posso aparecer na loja depois da noite de ontem. Como vou olhar para a cara da Tess depois de lhe ter dito que a quero beijar e que já sonhei com ela?! Ou como vou olhar para a cara dela quando acabei de jurar a Victoria que não aconteceu nada e que a amo?
Exaspero e rendo-me. Sou o meu próprio último recurso.
Agarro nas chaves de casa e do carro, na carteira, e saio de casa batendo a porta.
Desço com os óculos de sol colocados e ando pela garagem subterrânea em direção ao lugar reservado para a minha casa, mas este está vazio.
- Ah, não! - Desespero deixando cair a cabeça.
Não trouxe o meu carro para casa ontem. Mais um ponto para a minha lista de "Cada vez te enterras mais."
Volto para a entrada do prédio e peço ao porteiro que me chame um Uber com urgência.
- Está com problemas no carro, Senhor Mikael? - Pergunta-me o Julius, o porteiro.
Julius tem cerca de quarenta anos e já trabalhava aqui quando me mudei.
Sempre achei que o porteiro é a cara do prédio e dos seus habitantes. É o primeiro contato quando entras no edifício. Julius é uma boa escolha. Sempre bem-disposto e disponível. Faz parte da mobília e da família.
- Antes isso. - Digo encostando-me ao balcão tirando os óculos de sol.
- Foi uma noite animada?
Fito-o. - É assim tão óbvio?
Ele sorri. - Conheço esses olhos. Já tive vinte e cinco anos.
Se nem o porteiro engano, como queria que Victoria não percebesse?
Bufo um riso. - Foi uma noite estranha.
- Mas terá sido boa. Entrou no prédio com um sorriso comprometedor.
Abro o olhar. Eu nem me lembro de ver Julius quando entrei!
Ele olha para o telemóvel e sorri.
- O seu Uber chegou. Matricula XXX-987.
- Obrigado, Julius.
Coloco os óculos de sol de novo no rosto e saio.
Entro no carro e indico a rua da Loungerie. O motorista, um homem provavelmente da minha idade, não conversa e agradeço-lhe mentalmente por não o fazer. A minha dor de cabeça ainda não passou e tudo o que não quero é falar sobre coisas abstratas.
Chego à Loungerie e suspiro. Preciso de coragem, mas se não entrar já, provavelmente não conseguirei fazê-lo.
Tiro os óculos e entro na loja e não reconheço ninguém. Está uma mulher atrás do balcão e duas circulam pela loja com clientes.
Chego ao balcão e ela sorri-me.
- Boa tarde. Em que posso ser-lhe útil?
Meu Deus, por que isso soou tão mal?
- Vim buscar o meu telemóvel.
Ela abre o sorriso. - Não era para vir a sua irmã? - Fita-me. É difícil desviar o olhar. É alta. Tem olhos verdes e para além do cabelo preto, tem pestanas falsas e lábios vermelhos, o que lhe dá um ar de Betty Boo. Estou a tentar focar-me nos lábios, mas o peito inchado está a competir para me chamar a atenção.
- Mudança de planos. Assim ficam com tudo gravado nas câmaras de vigilância.
Ela ri.
- O que foi? - Pergunto de forma inocente.
- Nada, nada. - Diz, pressionando os lábios para não rir. Ergue a mão direita com um auscultador. - O dono do telemóvel chegou. - Sorri e pousa o auscultador sem perder o sorriso. - Ela vem já.
- Deduzo que Ela, seja a mulher que só entrega items em mão.
- Ela mesmo. - Diz, ainda com o sorriso estúpido no rosto.
- Olha, desculpa, mas tenho que te perguntar uma coisa, estou mesmo curioso. - Digo-lhe, aproximando-me do balcão.
Os olhos dela brilham e aproxima-se também. - Sim?
Perco o sorriso e fito-a. - Tenho a cara riscada ou alguma coisa escrita na testa?!
Ela recua confusa. - Não.
- Ótimo! Então podes parar de te rir.
O seu rosto perde a expressão e olha-me com escárnio. Geralmente não sou antipático, pelo contrário. Mas não suporto estas atitudes e ultimamente a minha vida parede uma montanha russa.
Vejo uma mulher aparecer atrás da Betty humana.
- Ruth, presumo.
- Mikael. - Diz ela.
- O meu telemóvel?
Ela ergue um saco e coloca-o sobre o balcão.
- Identificação.
- A sério?! - Mas ela não responde. Tiro a carteira do bolso e coloco a identificação ao lado do saco.
Ela pega nela e analisa-a. Olha para mim e devolve o cartão.
- Talvez agora me consiga explicar como o seu telemóvel apareceu no chão da minha loja.
- Estive aqui depois de sair. - Digo sem demoras.
Pego na identificação e coloco-a dentro da carteira. Estico o braço para agarrar no saco com o meu telemóvel quando Ruth coloca a mão sobre a minha.
- Eu fui a última pessoa a sair.
Ela está a testar-me?
Deixo-me rir. - Ambos sabemos que isso não é verdade. Então, se não se importa, tenho mais que fazer.
Puxo a mão com o saco e viro costas.
- A Tess sabe que é comprometido?
Paro. Inspiro e expiro pesadamente. Viro-me para encontrar o seu sorriso soberbo.
- A Tess sabe que sou comprometido há mais tempo que você. E se bem me lembro, não tem nada a ver com isso.
- Não tenho. Mas tenho tudo a ver com o que se passa aqui dentro.
- Não estou minimamente preocupado.
Volto a virar-me e saio da loja antes que esta psicopata resolva prender-me para interrogatório.
Pelo menos a Tess não estava na loja.
Decido caminhar até ao carro. Vou usar o caminho para arejar as ideias.
O telemóvel vibra. Tiro-o do bolso e vejo as notificações das chamadas perdidas de Victoria. Abro o olhar estupefacto. Meu Deus! Vinte e três chamadas!
Tenho três chamadas perdidas da minha irmã. Uma mensagem.
"Lilly
A Victoria não para de me ligar a perguntar por ti. Já meti o telemóvel em silêncio!!! Por favor, responde-lhe!!!!!"
Deixo-me rir para o telemóvel.
E quando deslizo pelas restantes notificações das redes sociais, e-mails e noticias, vejo uma mensagem de Tess e paro. O meu coração dá um salto.
"Tess
Não sabia se devia mandar-te mensagem ou não, mas.... Só quero confirmar que estás vivo. :)"
Um sorriso espontâneo surge nos meus lábios pressionados para não abrir o sorriso mais estúpido no rosto. Está difícil porque quero mesmo sorrir.
Seleciono a mensagem para responder. Mas quando levo os dedos às letras, paro. Devo responder-lhe? Com o que lhe disse, não sei o que ela está a pensar de mim. Mas podemos considerar que somos amigos. São mensagens inocentes. Mas...
Uma nova mensagem chega.
"Kyle
Hey! Queres passar por aqui? A tua irmã saiu com a Victoria, estou farto de estar em casa. SOZINHO!"
Salvo pelo cunhado.
"Eu
Estou a caminho."
"Kyle
Ótimo! Cozinhas tu! Não é fácil chegar ao fogão numa cadeira de rodas."
Sacana.
Envio uma mensagem para Victoria a dizer que vou passar algum tempo com o Kyle e ela diz-me que calha bem porque vai sair tarde do escritório porque tem reuniões e depois vai jantar com os colegas de trabalho.
Combinamos almoçar no dia seguinte. Meto o telemóvel no bolso e refaço o caminho para o carro.
;margin-lef|X9#
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