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Capítulo 2 - Tess

Estou a fazer a reposição quando reparo que uma das peças é a fralda que Mikael comprou para a irmã e começo a rir. Estamos habituadas a ter clientes do sexo masculino que não fazem a menor ideia de como comprar roupa interior feminina, mas a expressão de pânico com que ficou foi hilariante.

- Acho que ele saiu daqui traumatizado. – Diz Mathilde, ao colocar uma caixa com mercadoria nova ao meu lado.

- Qual deles? – Pergunto-lhe na expectativa.

- O bonitão que atendeste.

Rimos.

- Acho que esse nunca mais volta.

- Impressão minha ou ele estava a fazer-se a ti?

Paro o que estou a fazer e fito-a. – Impressão tua.

― Talvez, mas o olhar dele preso em ti, isso não foi impressão.

Sinto o coração acelerar. Uma loja de lingerie como a nossa, é como uma sexshop. Há os que compram para uso próprio, os que compram para a mulher ou para a amante, e depois, os envergonhados. Mikael, como o amigo lhe chamou, é definitivamente o último caso. E podemos excluir o segundo porque fez questão de esclarecer que era para a irmã. Pergunto-me se ela terá gostado da fralda que ele insistiu em levar.

- O amigo dele também não tirava os olhos do teu rabo. E da tua boca. – Mostro-me pensativa. – Oh e acho que do teu peito.

Mathilde abre o olhar surpresa. – Aquele idiota acompanhado da Barbie? – Confirmo. – Estão bem um para o outro. A Barbie e o Ken.

- O Ken vive às custas da Barbie. – Observo. ― Não sei se é o caso deste.

- Como não? Ela é advogada e ele um mulherengo.

- Estás a ser má.

- Realista, minha querida.

Quando acabamos a reposição fechamos tudo e saímos.

- Queres ir jantar lá a casa? – Pergunta-me.

- Não. Tenho que estudar. Tenho exame daqui a duas semanas e muita matéria em atraso. – Recuso expressando tristeza.

Entro no carro e expiro numa tentativa de libertar todo o cansaço que sinto consumir o meu corpo. É complicado e extremamente cansativo, mas parar para pensar é pior e, por isso, não dou um segundo do meu tempo à preocupação.

Moro num bairro na outra ponta da cidade e divido apartamento com Diana, estudante de psicologia. Penso que isso diz tudo sobre ela. Diana é a personificação de psicologia, se isso existir.

- Devias dormir mais, Tess. – Oiço-a dizer do sofá assim que passo a porta.

- Boa noite, Diana.

Vejo-a virar-se e ficar de joelhos para me olhar, com os braços abertos sobre as costas do sofá.

- Estou a falar a sério. A tua sanidade mental depende das horas de descanso que tens por noite. Repara, noite! – Diz a última palavra em slow motion e rio, enquanto preparo uma taça de cereais na cozinha open space com a sala.

- Eu sei. – Sento-me ao seu lado no sofá, colocando as pernas para cima, fletindo-as em mariposa. – São alguns anos de sacrifício para uma vida normal onde possa dormir oito horas por noite.

Diana não comenta. Senta-se novamente e olha para a televisão.

- Se quiseres falar, sabes que...

- Eu sei. – Sorrio-lhe. Eu sei que ela está a tentar dar-me espaço e deixar a porta aberta para quando eu sentir que preciso falar sobre os problemas, o stress, a vida, mas eu não preciso de uma psicóloga. – Eu preciso de dias com quarenta e oito horas. – Digo e ela sorri.

- Ou de um namorado. Falta de sexo também dá cabelos brancos.

Engasgo-me com os cereais e começo a tossir.

- Oh meu Deus! – Diana exclama assustada, levantando-se do sofá de imediato. Coloco a taça de cereais na mesa de centro e continuo a tossir. – Devo bater-te nas costas? – Afirmo. – Mas dizem que isso faz mal! – Continuo a tossir, sem ar, consciente de que preciso contrariar a necessidade urgente de o fazer para conseguir inspirar.

Levanto-me e viro-me de costas para ela, sinalizando que o faça, enquanto as lágrimas correm pela minha face, até que sinto uma pancada nas costas e julgo ter tossido um pulmão.

- Porra! Assim vou precisar de um cirurgião para um pulmão novo e não de um psicólogo! – Advirto.

Diana olha-me em pânico. – Como é que quase perdes um pulmão por causa de sexo?!

- Foi uma observação inesperada. – Esclareço.

Percebo que ela me olha e olho-a de volta. – O que foi?

- Observação inesperada ou há algo que eu não sei?

Olho-a incrédula. – Sim, claro. Ando com um empresário que passou pela loja e me pediu em namoro após o ajudar a comprar roupa interior para sabe lá Deus quem.

Diana dá de ombros. – Não vejo por que não. Se eu fosse homem e gostasse de uma funcionária de uma loja, eu iria certamente passar a frequentá-la independentemente do produto vendido.

Rio. – Mesmo que fosse numa loja de maquilhagem?

- Principalmente. – Diz. – Iria comprar todos os dias um produto que ela recomendasse. Quando ela aceitasse namorar comigo, teria prendas de aniversário, natal, dia dos namorados e outras ocasiões, já preparadas para entregar.

Rio. – As mulheres perderam uma grande oportunidade quando nasceste mulher.

Diana pressiona os lábios desiludida. – É. – Concorda. – Mas se eu tivesse nascido homem, provavelmente não teria esta inteligência toda. Vou ter trabalho para arranjar um homem que preencha os requisitos mínimos necessários para me namorar.

- Cuidado. Com os teus critérios, será difícil.

Diana dá de ombros. – Nunca disse não a um bom desafio. – Ri.

Volto a atenção para a televisão. Está a passar uma série policial, daquelas que tem umas treze temporadas e apanhas sempre um episódio que nunca viste.

Quando o episódio acaba, digo a Diana que vou dormir.

- Trabalhas amanhã? – Pergunta-me.

- Sim. Vou fazer umas horas depois das aulas.

- Vê se descansas. – Diz num timbre de preocupação e sorrio-lhe.

- Tu também. Não é por estares em semana de pausa que podes ter a rotina rebelde que eu tenho.

Vou para o quarto e caio na cama. Estou tão exausta que adormeço no mesmo segundo.

*

É o sexto café que bebo hoje. O meu sangue está bêbado de cafeína e não sei se o meu estômago aguenta mais algum.

Estou atrasada. Graças a Deus temos uma entrada nas traseiras, porque entrar numa loja de renome com o meu ar ofegante, despenteado, desmaquilhado e suado, iria assustar todos os clientes. Na nossa casa de banho temos um chuveiro. Faço um coque no cabelo, passo o corpo por água e visto a farda. Estou a fazer a maquilhagem o mais rápido que consigo quando Mathilde entra e me olha interrogativamente.

- Aquele idiota disse que se não ficasse depois da aula a resolver exercícios à frente dele, me chumbava. Tentei avisar-te, mas fiquei sem bateria. – Tento dizer sem que a voz trema, mas toda eu tremo pelo cansaço de ter praticamente corrido para a loja, estar a despachar-me o mais rápido que consigo e pelo nervosismo de estar de facto a chegar atrasada a um trabalho que prima pelo perfeccionismo e profissionalismo.

- Está tudo bem. – Diz. – Eu piquei por ti.

- A sério?! – Indago surpreendida.

Mathilde olha incrédula. – Até parece que tens motivos para essa pergunta.

- Não é isso, é que... assumiste a responsabilidade de que eu estive a horas e...

- Hey! – Adverte. – Eu sei como é a tua vida. Mas vou dar-te um aviso. – Diz, aproximando-se, e eu tremo. – Se aquele filho da puta te lixar a cadeira, eu dou cabo dele.

Sinto o meu olhar abrir e não sei se chore se ria. Mathilde olha-me muito séria e tenho medo até de respirar.

Até que ela sorri. – Estou a falar a sério! – Adverte com o dedo indicador direito erguido. – Eu parto-lhe a boca.

Sorrio e abraço-a.

- Não sei o que faria sem ti.

Mathilde devolve o abraço. – A tua vida não teria metade do interesse.

- Não teria de todo. – Concordo sorrindo.

- A loja está vazia, não tenhas um ataque cardíaco a maquilhar-te em velocidade sónica.

Mathilde sai e viro-me para o espelho. Os meus olhos estão vidrados, mas recuso-me a chorar. Inspiro. Expiro. Limpo os cantos dos olhos com um cotonete para absorver as lágrimas que já estão na linha d'água, passo batom e vou para a loja.

*

- Devias ter feito manhã. – Diz ela revirando os olhos em delírio.

- Apaixonaste-te outra vez? – Brinco.

- Com este, eu casava. Juro, Tess. Alto, loiro, olho azul, pele morena, surfista. – Morde o canto do lábio inferior. – Um verdadeiro pecado ambulante.

- Perguntaste o nome?

- Frederick. – Pronuncia com uma entoação divertida e não consigo evitar o riso. – Eu sei, até o nome provoca calafrios.

- Tess. Mathilde.

Viramo-nos para olhar para quem nos chama e encontramos um rosto amigo.

- Lilly! – Mathilde abre os braços e Lilly avança sorrindo para abraçá-la. – Onde tens andado?

- Trocaste-nos por alguma marca barata? – Pergunto-lhe e Lilly ri.

- Não vos troco por nada, mas tenho tido muito trabalho no Museu. Vamos receber uma coleção importante e o trabalho está todo nas minhas mãos.

- Parabéns! – Felicito-a. – Querias algo assim há muito tempo.

- Não queria era o trabalho extra de coordenar até o eletricista. – Reclama revirando os olhos.

- Já dizia o outro: com grande poder, grande responsabilidade. – Diz Mathilde.

- Eu sei, eu sei. Não me posso queixar disso.

- O que procuras hoje? - Pergunta-lhe Mathilde.

- Nada, na verdade.

Enrugamos a testa confusas. – O que fizeste à nossa Lilly?! – Questiona Mathilde. – Ela nunca sai com o mesmo saldo bancário com que entra.

- Devemos preocupar-nos? – Pergunto-lhe retribuindo o sorriso que ela esboça.

- Não. Compraram por mim ontem. Só vim agradecer a fralda.

Sinto um balde de água fria contra a minha cara e de repente Mathilde gargalha. – Não posso!

Lilly olha-me sorrindo matreiramente.

- És a irmã? – Consigo perguntar por fim.

- Sou. – Ri.

Qual a probabilidade? De repente a ideia de que provavelmente o voltarei a ver agrada-me mais do que devia. Talvez porque ele foi carismático o suficiente para me fazer lamentar quando saiu da loja.

- Como podes fazer isto às tuas amigas?! – Interroga Mathilde.

- Que parte?

- Omitires que tens um irmão que mais parece uma obra de arte.

Lilly gargalha. - Já vos tinha falado do meu irmão.

- Minha querida, - adverte Mathilde – uma coisa é dizer "o meu irmão", outra é dizeres que ele é um pedaço de mau caminho e tão pouco mostrares uma fotografia dele. – Lilly fita-a alegremente surpreendida. – Atrapalhado a comprar roupa interior, mas não deixa de ser uma obra de arte.

- Não digas isso do meu irmão. – Diz Lilly. - Ele vai cobrar bem caro pelo favor de ontem.

- Mas é verdade! A Tess concorda, não concordas? – Olham-me.

- Muito atrapalhado. Pensou que lhe ia vender cuecas de criança.

Lilly pressiona os lábios para não rir.

Mathilde aproxima-se ligeiramente de mim. - Estava a referir-me ao ser um pedaço de mau caminho. – Esclarece.

- Oh. – Deixo escapar. – Também. Mas o amigo dele, Andrew, estava bastante interessado em ti. – Recordo-a, porque é sempre melhor desviar o foco da conversa para outra pessoa.

O olhar de Lilly abre. – Andrew esteve aqui?

- Conheces? – Pergunto-lhe. Mas é claro que conhece. Pelo que ouvi foi colega do irmão na faculdade.

- Infelizmente. Namorei esse idiota há uns anos.

- Fizeste bem em lhe dar com os pés. – Diz Mathilde, prontamente. - Agora o Ken namora uma Barbie a full-time e dá em cima de funcionárias nos tempos livres.

- Não me surpreende. Mas não gosto de saber que o meu irmão ainda é amigo dele.

- O teu irmão não pareceu muito contente por o ver. – Observo.

- Depois do que aconteceu, ele devia ter-lhe partido a boca outra vez, isso sim.

― Outra vez?! – Interrogamos em unissom.

- Não me digas que o Andrew deu em cima de alguma namorada do teu irmão! – Exclama Mathilde.

- Não. Ele plagiou um dos projetos que o meu irmão fez para a faculdade.

- Que filho de uma grande cadela! – Exclama Mathilde, em tom menor, olhando em redor para confirmar que estamos só nós na loja.

- E traiu-me com uma ordinária da Faculdade de Economia.

Sinto o meu queixo cair. Se eu já não tinha boa impressão daquele Andrew, agora sentia repulsa dele.

- Boa tarde.

O meu coração dispara e Mathilde vira-se atrapalhada. Lilly sorri.

- Aqui está ele.

Mikael.

Ele lança-me um breve olhar tímido e sorri. Sorrio de volta, pressionando os lábios para não demonstrar que estou mais feliz por vê-lo do que aparento. Talvez devesse pressionar também o meu peito, porque o meu coração bate como se estivesse embriagado de red bull, mas após seis cafés, os sintomas devem ser os mesmos.

- Estava difícil arranjar lugar para estacionar.

Lilly avança até ele e enlaça o seu braço esquerdo do direito dele. – Estava a pensar que poderíamos fazer um jantar lá em casa, logo, para compensar o bullying que sofri.

Mikael olha-a confuso e eu só consigo sentir o meu coração bater contra as paredes do meu peito. Devo estar maluca por estar tão afetada por alguém que só conheci ontem. Mas é o carisma no olhar. A culpa é toda dele. Dizem que os olhos castanhos são banais. Há-os aos pontapés. Mas quem diz que olhos castanhos são todos iguais é porque nunca olhou para eles verdadeiramente. Não é a cor que torna um olhar especial, é o que ele diz.

- Lá em casa, é na minha ou na tua? – Ele enruga a testa erguendo o sobrolho esquerdo e aproveito para olhar com atenção para as suas feições.

Merda. Ele é mesmo uma obra de arte.

- Bobo! – Lilly exclama. – Na tua, óbvio! A minha mal tem espaço para mim, quanto mais para cinco pessoas.

Mikael sorri. ― Vais cozinhar?

A expressão facial de Lilly muda de divertida para pânico e acabamos por rir.

― Sabes que sou péssima na cozinha. – Diz ela. – Podemos pedir sushi. – O entusiasmo volta para o seu rosto e tanto ela como Mikael se viram para nós. Mas Mikael fixa o seu olhar em mim e sinto o meu rosto ruborizar novamente. – O que acham?

Quebro o contacto dos nossos olhos e foco-me em Lilly.

― Tenho um trabalho da faculdade para acabar. – Desculpo.

― Tens? – Pergunta Mathilde e fito-a. Sei o que está a fazer e não posso deixá-la ganhar.

― Mas vais ter de parar para jantar. – Observa Lilly expressando um sorriso largo.

Fito Mikael sentido o nervosismo fervilhar na minha barriga e ele retribui um sorriso contido.

― Ótimo. Estou mesmo com vontade de jantar sushi. – Diz Mathilde.

― Então está combinado! – Afirma Lilly. – Mikael, dá o teu número à Tess para lhes dares indicações para a tua casa.

O meu coração falha uma batida e olhamos os dois para ela. Juro que me sinto um tomate. Ela está armada em cupido?

― Basta a morada num papel. O Google maps pode ajudar com o resto. – Digo, sorrindo, porque percebo que Mikael foi apanhado desprevenido.

A sua expressão de pânico chega a ser cómica.

― A última vez que confiámos as nossas vidas à galdéria do Google maps, acabámos perdidas em becos sem luz num bairro duvidoso, com um homem encapuçado atrás de nós. – Diz Mathilde. – Não obrigada. O telemóvel, se faz favor. – Gesticula, pedindo o telemóvel a Mikael.

― É, ficaria mais descansado se soubesse que não estarão dependentes dessa galdéria. – Diz ele, confiante, e retira o telemóvel do bolso das calças.

Mathilde agarra no telemóvel e digita.

― E as peças, serviram para o propósito? – Pergunto a Lilly.

― Estás a falar da fralda que vou usar para limpar o pó?

Rimos e por instantes desvio o olhar para ver a expressão de Mikael.

Mathilde passa-lhe o telemóvel e ele guarda-o sem lhe dar importância.

Duas mulheres entram na loja e lamento porque sei que é o momento em que eles vão sair para que nós possamos trabalhar.

― Vamos deixar-vos trabalhar. – Diz Lilly. Já sabia. Ela agarra no braço de Mikael e começa a empurrá-lo em direção à porta. ― Vemo-nos às oito.

Quando eles saem, Mathilde aproxima-se. ― Vais dizer que agora também não reparaste.

― No quê?

Mathilde olha-me de lado. ― Também estás interessada! – Exclama surpresa.

― Oh meu Deus! Como podes ser tão casamenteira?!

― Ele está interessado.

― Ele conheceu-me ontem.

― E o que tem?! – Pergunta escandalizada. – Eu também só o conheci ontem e não me importava nada de passar a mão naquele corpinho.

― Podes aproveitar, agora que ele tem o teu número.

Mathilde limpa a garganta e paro o que estou a fazer para olhar para ela.

— Pois.... Sobre isso...

― Mathilde!

― O que foi?! - Retruque decidida. ― Só lhe dei o teu número. Não é propriamente o mesmo que te meter na cama dele. – Mathilde semicerra os olhos e olha para o nada, a imaginar algo. ― Se bem que vamos jantar na casa dele. Como será a cama?

― Eu não acredito que estou a ouvir isto.

― Há quem tenha fetiches por cozinhas, outros por casas de banho, eu tenho por camas. E não estou com pensamentos pecaminosos agora. Tarde demais, agora estou.

A tarde acabou por ser movimentada. Não parámos até que encerrámos a loja às dezanove horas.

Deixo-me cair no chão, atrás do balcão e expiro pesadamente. ― Que dor de costas! – Exclamo.

Mathilde espreita do outro lado do balcão.

― Tira o rabo do chão.

Deito-me e cruzo os braços sobre a cara.

― Deixa-me descansar ou vou acabar corcunda.

― Tess! – Adverte. – Tira esse rabo do chão, agora!

― Já te disseram que és chata?! – Resmungo.

Saio do chão a custo e agarro-me ao balcão.

Mas quando espreito, vejo Mikael parado à entrada da loja.

― Achei melhor vir buscar-vos. – Diz, focado em mim.

― Não confias no nosso sentido de orientação? – Intervém Mathilde.

Mikael sorri-lhe e avança.

― Vais recusar a minha oferta?

Mathilde expira. ― Ótimo poder de argumentação. – Rende-se. ― Vou despachar-me. Vais a seguir, Tess.

Abro a boca para argumentar, mas Mathilde já está nos fundos da loja.

Fito Mikael e sinto um nó na garganta, no estômago... até no meu cérebro.

― Então, de onde conheces a minha irmã?

― Através da Mathilde.

― A Mathilde é tua colega de casa?

― Não. – Sorrio. ― Moro com uma futura psicóloga.

Mikael sorri. ― Consultas gratuitas enquanto cozinham?

― E quando fazemos a limpeza.

Ele gargalha e a sua descontração faz-me comprimir um sorriso satisfeito e a vibração deixa-me nervosa. Lembro-me das paixonites que temos na escola básica. Aparecem de um momento para o outro e desaparecem da mesma forma. O problema é que não tenho idade para essas paixonites que destroem corações até à próxima.

― Foi a Lilly que te obrigou a vir buscar-nos?

― É tão difícil de acreditar que vim sem influência da minha irmã?

Rio. ― Tendo em conta que te obrigou a vir buscar-lhe lingerie...

Mikael gargalha. E quando o riso cessa, fita-me. ― Vim porque quis. Fui comprar algumas coisas para o jantar.

― Tess, estou pronta.

Ouvimos Mathilde gritar.

― Vou tomar um duche. Não demoro.

― Espero o tempo que for preciso.

Ele não devia dizer estas coisas que mexem com as minhas entranhas e me deixam tão nervosa ao ponto de achar que vou vomitar, ou cair, porque as minhas pernas começam a tremer e eu esqueço-me de como se anda ou respira.

Tento manter a respiração equilibrada, mas de repente o ar parece pesado e o oxigénio parece que não chega aos meus pulmões.

A culpa é do olhar.

E do sorriso.

E da cara de Deus Grego.

E...

― Então, do que falaram?! – Pergunta Mathilde quando entro no vestiário.

― Nada de especial. Da Lilly, por exemplo.

― Nada de conversas entre linhas?! Que desilusão.

― Por que haveria conversa entre linhas?

― Porque ele tem cara de quem diz que te quer beijar quando sorri.

Rio.

― É por isso que não tens namorado.

― Hey! Tu não estás melhor que eu.

Dispo-me e entro no chuveiro. Quando ligo a água, duas batidas na porta fazem-me pular de susto e escorregar no polibã ao mesmo tempo que grito.

― Oh Meu Deus! Tess, estás bem?!

― Quase parti o coxis. Quem está a bater na porra da porta?!

Mathilde aproxima-se da porta e duas novas batidas são dadas.

― Mathilde? Tess?

― Mikael? Não podes entrar aqui, meu querido.

― Nem pensar! – Afirmo. ― Estou nua!

Ouvimos Mikael rir.

― Não te quero ver nua, Tess. Só quero dizer que tenho de sair, deixei o carro num parquímetro. Preciso trocar a senha para mais tempo.

― Ok, Mikael. - Diz Mathilde a rir.

― Não seria melhor vires trancar a porta da loja, Mathilde?

Faço sinal para que ela saia e vá fazer o que tem a fazer.

Quando Mathilde sai, tomo um duche rápido e visto-me. Sinto o corpo tão mole que até no chão da casa de banho eu dormia.

― Espero que seja sushi do bom, porque estou esfomeada. ― Argumenta Mathilde quando regressa. ― Ainda não acredito que eles são irmãos.

― Ficaste a pensar nisso? - Brinco.

― Fiquei.

O meu telemóvel toca, mas ignoro.

― É melhor atenderes.

― Sabes que nunca atendo números que não tenho. ― Observo.

― Pode ser o Mikael.

Inacreditável.

― Sim?

― Olá.

A voz dele é tão bonita ao telemóvel!

– Olá.

― É o Mikael. Só para teres a certeza de com quem estás a falar.

Percebo a diversão na sua voz e deixo escapar um sorriso, fazendo com que Mathilde me olhe interrogativamente.

― Calculei.

― Estão despachadas?

― Cinco minutos.

― Vou tirar o carro do estacionamento e espero à frente da loja.

― Ok. Até já.

― Até já, Tess.

Sinto um calafrio percorrer-me a coluna quando ele diz o meu nome. Foi como se o tivesse sussurrado ao meu ouvido e o efeito que tem em mim não me deixa propriamente tranquila. Ele vai trazer-me problemas.

Desligo a chamada com o coração a bater a mil.

― E então? – Pergunta Mathilde. – Só por esses sorrisos já me devias agradecer ter-lhe dado o teu número.

― Ele vai trazer o carro para a porta da loja.

― Espera! Vamos com ele?!

― Não era suposto? ― Pergunto confusa.

― A minha única questão é: como pensas voltar, se nenhuma levar carro?

― Tens razão. Vamos no meu e dizemos que o seguimos.

Saímos da loja e Mikael está estacionado mesmo à frente. Explicamos-lhe que precisamos levar um carro e ele aceita. Estaria a mentir se dissesse que não reparei que o seu olhar se demorava quando parava em mim, mas também não quero fantasiar com uma atração momentânea.

Quando Mikael para o carro num bairro na periferia da cidade, procuro um lugar perto do seu. Mikael espera-nos perto do carro e conduz-nos para o Lote 9 de uma fachada de prédios forrada em pedra preta e cinzenta com acabamentos de vidro.

― Moras sozinho? ― Pergunta-lhe Mathilde, quando entramos no prédio.

― Sim. ― Sorri-lhe.

Reparo que cumprimenta o porteiro com um sorriso e que o mesmo o retribui.

No elevador, subimos até ao quarto andar em silêncio.

Chega a ser desconfortável, não ter assunto para falar com o dono da casa onde vamos jantar.

Mikael abre a porta do apartamento e ouvimos a voz animada de Lilly.

― Chegaram!

Quando entramos ela está perto da porta, com um copo na mão.

Avança para nos dar um abraço e percebo outro homem aparecer.

― Meninas, espero que não estejam com muita fome porque quem vai cozinhar é o meu cunhado. ― Diz o homem com um sorriso divertido no rosto.

― E o meu sushi?! – Exclama Mathilde incrédula.

Eles riem.

― Mathilde, Tess, este é Kyle.

Kyle avança até nós e cumprimenta-nos.

― Então são vocês as responsáveis.

― Pelo quê? – Pergunto.

Lilly sorri e enlaça o seu braço no de Kyle. ― Pela fralda que usei esta noite.

O meu olhar abre e Mathilde ri.

― Usaste o paraquedas?! – Inquire Mathilde.

― Usou pois! – Afirma Kyle. ― Quase tive um ataque cardíaco quando ela disse que a partir de agora só usa aquilo.

― Podia ser pior. – Advirto.

― Pior?!

― Pelo menos aquelas eram de cetim, pretas e rendadas. Se fossem de algodão, azuis com flores amarelas...

Kyle levanta as mãos e balança a cabeça. ― Estou convencido. Não lhe deem ideias.

― A culpa é inteiramente do Mikael. – Diz Mathilde. – Ele é que pediu cuecas.

Kyle olha sobre o ombro e vejo Mikael acabar de dar um trago no copo de vinho que tinha na mão.

― Aposto que também não sabias a diferença entre cuecas e slips. ― Observa.

― Meu amigo, eu teria apontado para um manequim e dito: quero aquelas. Pode despir a boneca.

Rimos e Mikael desaparece para o que parece ser a cozinha.

― Vamo-nos sentar. – Diz Lilly. – Querem beber alguma coisa enquanto ele faz o jantar?

― Lilly, onde é a casa de banho? ― Pergunta Mathilde e a sua conversa sobre cozinhas, casas de banho e camas, surge na minha mente e fito-a. Mathilde olha-me maliciosamente e Lilly diz-lhe onde é.

― E tu, Tess, o que queres bebes? ― Pergunta-me Lilly.

― O que tens?

Lilly ergue as mãos. ― Não faço ideia. Mas sei que o meu irmão tem bom gosto para vinhos. ― Ri. ― Mikael! ― Mikael espreita e Lilly diz-lhe para me mostrar a garrafeira.

Avanço até Mikael e ele sorri ligeiramente.

O silêncio que fica entre nós é constrangedor e imploro para que ele o quebre. Ou Kyle. Ou um telemóvel. Mas o silêncio torna-se ensurdecedor e não sei mais se quero que algo o quebre porque é viciante.

― O que queres beber?

― Que vinhos tens?

Mikael vira-se indicando que entre na cozinha. Kyle está virado para a bancada e vejo a ilha no centro da cozinha com travessas cheias de sushi.

― Pensava que tinhas sido tu a fazer o jantar. – Observo.

Ele sorri.

― Oh, mas foi. – Diz Kyle.

Olho para ele e vejo que à sua frente está uma tábua e que está a enrolar arroz em folhas de alga.

― Vocês sabem fazer sushi?! – Pergunto surpresa.

― Ele sabe. – Diz Kyle. ― Eu só faço imitações baratas.

Rimos e Kyle saiu para a sala com uma travessa nas mãos.

Mikael deu-me a provar os dois vinhos que tinha abertos e depois mostrou-me a pequena garrafeira que tem numa das portas do armário de cozinha.

― Podes escolher. – Diz.

― Não sou perita em vinhos. – Comento.

― Mas sabes que vinho escolher para sushi?

― Verde?

Ele sorri e confirma. ― Os próprios japoneses disseram que o vinho verde é quase tão perfeito quanto o saqué. Agora só tens que escolher que garrafa queres abrir.

Olho-o surpreendida e ele retribui um sorriso contido.

Volto a minha atenção para as garrafas porque aquele sorriso iria prender-me novamente. ― Soalheiro, Defesa, Casal Garcia, Portal da Calçada... - Nomeio à medida que levanto as garrafas para ler os rótulos. – Este não ganhou um prémio qualquer?

O sorriso dele abre. ― Sim. Foi galardoado com ouro como vinho verde branco no Best of 2016 em Portugal, com jurados de dez países.

Mikael olha-me nos olhos e isso mexe comigo. Ele aproxima-se de mim sem desviar o olhar e de repente o ar torna-se saturado. Levanta o braço e tira a garrafa.

― Vamos abrir este. – Murmura, sem desviar o olhar.

― O premiado?

― Tens uma escolha melhor? – O seu timbre provoca-me calafrios.

― Não é suposto abrir em ocasiões especiais?

O sorriso de Mikael abre. ― Comprei um paraquedas para a minha irmã. Acho que abrir um vinho premiado é o mínimo que posso fazer.

Algo rompe a bolha que me envolvia e afasto-me. ― Ótimo. Então vamos jantar.

Começo a levar as travessas para a mesa e Mathilde fita-me. Já sei que vai querer saber o que aconteceu na cozinha, mesmo que não tenha acontecido nada.

― Mikael, podias ajudar Tess, com os trabalhos dela. – Comenta Lilly. Mikael olha-me confuso. ― A Tess está a tirar arquitetura. – Esclarece.

― Espera! És arquiteto? ― Pergunto. Mikael balança a cabeça afirmando. ― Arquiteto perito em vinhos e não consegue distinguir cuecas de slips?

Kyle e Mathilde gargalham.

― Tess, sou teu fã! – Diz Kyle. ― Sempre podem fazer uma troca. Ele dá-te explicações de arquitetura e tu de lingerie.

Nesse momento, sinto o meu coração disparar.

― Tenho a certeza de que ele tem mais que fazer no seu tempo livre. ― Tento ganhar algum ponto na conversa e Lilly ri.

– Ele?! Amiga, o tempo livre dele é família ou trabalho.

― O bom de ter uma irmã como tu, é que nem preciso dizer nada. ― Retorque Mikael.

No fim do jantar, Mikael e Kyle fazem questão de levar a loiça para a cozinha e nós ficamos as três a conversar na sala.

― Amiga, desculpa, mas tenho de repetir, o teu irmão é lindo de morrer. – Confessa Mathilde com a mão no peito.

Lilly gargalha. ― E graças a Deus, tem a cabeça no lugar.

― As duas.

Lilly cospe o vinho e eu rio. ― Já vi que é melhor termos cuidado quando bebemos perto de ti.

O meu telemóvel toca.

― É a minha colega de casa. Tenho que atender. – Levanto-me e vou para a varanda. ― Hei, aconteceu alguma coisa?

― Só para confirmar que estás viva e posso ir dormir descansada.

― Vim jantar com a Lilly e a Mathilde. Mais uns minutos e vou para casa descansar. Amanhã estou de folga, prometo que não faço nada.

Oiço-a rir. – Tudo bem. Até amanhã.

― Aconteceu alguma coisa? – Pergunta Mathilde.

― Não. Estava preocupada.

― Porque não estavas em casa às oito? – Brinca Lilly.

― A Tess está com horários impossíveis e nós andamos preocupadas com a falta de descanso. – Comenta Mathilde sem entusiasmo.

Lilly olha-me preocupada. ― Falta de descanso a que nível?

Esboço um sorriso. ― Elas estão a exagerar eu...

― Tu não dormes, Tess. – Corta-me Mathilde. Entretanto Mikael e Kyle voltam para a mesa. ― Faculdade, trabalho, horas extra em ambos. Para não falar nos trabalhos que tens que fazer em casa para a faculdade porque tens um professor filho da puta que não gosta que chegues atrasada porque estavas a trabalhar. Dormes o quê, três horas por noite há meses?

― Que exagero.

― Amanhã estás de folga. É bom que durmas o dia todo! A não ser que tenhas um convite irrecusável.

― Netflix e arquitetura. – Brinco.

A conversa flui e as horas passam. Perto da uma da manhã despedimo-nos.

Mikael está mais afastado, perto da porta.

― Vou voltar a ver-te? – Murmura, quando se despede com dois beijos.

Sorrio-lhe. ― Sabes onde trabalho.

― Adeus, sedutor. – Brinca Mathilde, aproximando-se.

Mikael fica vermelho e isso faz-me sorrir.

― A tua sorte é não vendermos roupa interior para homem.

― Graças a Deus! – Exclama aliviado.

Saímos em direção ao elevador e antes das portas fecharem, vejo Mikael à porta, encostado à ombreira, a olhar para nós.

― Ele está a olhar para ti. – Murmura Mathilde.

― Está a olhar para nós.

― Não. Tenho a certeza de que é para ti. – As portas fecham e ela vira-se para me encarar. ― Vamos fazer o seguinte. Na próxima semana, eu faço duas das tuas horas todos os dias.

― Estás maluca?!

― Estou a falar a sério, Tess! Eu não me importo. São duas horas. Não me fazem mal algum, já a ti, são duas horas que tens para dormir.

― Mas...

― Uma semana! Eu sou a gerente da loja, eu faço os horários.

Duas horas a mais por dia para dormir, podem realmente aliviar as minhas dores de cabeça.

― Tudo bem.

O sorriso dela abre. ― Ótimo! – Exclama e saímos do elevador. ― E ele passou o jantar a olhar para ti.

― Mathilde!

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