Capítulo Dois
São 6h da manhã. Acordo na cama - quase um milagre. Toda dolorida, o que sinaliza que ele apareceu. Não sei mais o que fazer. Já tentei me matar, mas ele aparece e impede.
Já que tenho que viver, ouvir Djavan talvez salve o meu dia!
Os acordes me trazem um pouco de alegria. Tomo um banho, e sinto a água quente enxarcar meus cabelos, descer pelos meus ombros revelando os músculos doridos que eu não havia percebido. Depois desse momento de higiene corporal e mental, me visto e resolvo fazer alguns doces. Se eu conseguir vender algo na rua, talvez consiga juntar dinheiro para pagar as contas.
Preparo cuzcuz enquanto sonho em ter minha vida de volta. Me dirijo ao forno com pequenos passos de samba, e retiro o bolo de chocolate que cheira forte! Esse cheiro faz meu estômago roncar, me lembrando que ainda não tomei café. Enquanto o bolo esfria passo um café fresquinho, forte e com pouco açúcar, corto um pedacinho do bolo morno, e me sento de frente pra janela. Tomar café observando a cidade acordar sempre foi um de meus passatempos favoritos. O motor do capitalismo.
Termino meu café, preparo meus doces e saio cheia de esperança, cantarolando na mente para manter o sorriso. A vida não tá fácil pra ninguém!
Enquanto sigo em direção ao movimento que se forma na entrada da estação de trem, vejo ambulantes montando suas barraquinhas, mendigos enrolados em jornais para se proteger do frio matinal, pessoas andando apressadas com uniformes das mais variadas empresas. A vida é uma luta constante.
Mesmo sendo tão cedo vendi quase todo o bolo na entrada da estação. Se ficar mais um pouco por aqui vendo tudo. Espero que ele não apareça pra estragar tudo; eu preciso desse dinheiro!
- Ângela? - digo quase involuntariamente quando a vejo passar - É você?
- Sim, mas... - ela responde desconfiada - Ana? - ela me reconhece. - Meu Deus, Ana.. quanto tempo! Como você está?
- Sobrevivendo. - respondo tentando soar otimista.
- Hum... Não gostei dessa resposta. Precisamos conversar melhor pra você me contar direitinho o que está acontecendo!
Como ela pode saber tanto só de olhar pra mim? Já faz tanto tempo! Ângela foi o mais próximo de uma mãe que eu tive ao longo da vida. Minha mãe morreu quando eu era bem pequena, meu pai desapareceu pouco depois disso, e Ângela, nossa vizinha na época, cuidou de mim o quanto pôde. Algum tempo depois ela teve que me levar para um abrigo mas sempre me visitava, levava presentes. Nunca me abandonou!
- Tá bom! - respondo resignada - Não dá pra esconder nada de você mesmo né!
- Acho bom que você nem tente, mocinha! - disse ela sorrindo - Você pode ser grande, mas ainda posso te dar umas palmadas. - sentir que tenho uma mãe de novo, mesmo que por poucos minutos, aqueceu meu coração.
Fomos até uma pracinha ali perto e nos sentamos. Ofereci um pedaço de bolo a ela, e peguei um pra mim. Um pouco de açúcar não faria mal, pois a conversa seria bastante amarga.
- Tem certeza que não vou atrapalhar seu dia? - pergunto pela décima vez.
- Claro que não, filha. - disse docemente - Que espécie de madrinha seria eu se não pudesse dedicar um tempo à você?
- Você é bem mais do que isso. Sabe né? - e ela era mesmo.
- Ah, doce Ana. Senti muito sua falta! - confessou - Não se passou um dia sem que eu pedisse a Deus por você! Me conta como você está. E não esconda nada, por favor!
- Tudo bem. Por onde quer que eu comece? - perguntei.
- Hum... que tal me contar porque está vendendo doces na rua? - pediu - A última vez que nos falamos você trabalhava numa doceria.
- Ah, madrinha... aconteceram umas coisas muito estranhas nesses últimos anos. Minha vida não é mais a mesma. - disse. Tinha vergonha de dizer o que realmente está acontecendo.
- Que coisas estranhas? - sua voz carregada de preocupação - Não me esconda nada, Ana. Isso é uma ordem. - senti um frio na barriga, como quando era criança.
- Eu fui presa. - confessei entre os dentes - Acusada de matar um homem.
- O quê? - ela parecia completamente perplexa - Você matou um homem?
- Não! - disse imediatamente - Eu não matei. Disse isso aos policiais, mas ninguém acreditou em mim.
- Ok. - ela respirou fundo - Me explica a história desde o início. - pediu. Eu contei tudo a ela. Sobre ter apagado e do nada acordar com aquele pedaço de pau na mão, e sobre os episódios posteriores. Ela ouviu com atenção. Era visível a dor que ela estava sentindo.
- De novo não. - ela sussurrou.
- De novo o quê? - questionei.
- Preciso te contar uma coisa, mas não pode ser aqui. Você mora muito longe daqui? - o negócio era sério - Podemos ir pra sua casa?
- Claro, madrinha. Moro num prédio há uns dez minutos daqui. Vem comigo.
Durante o percurso falamos sobre amenidades pra tentar quebrar a tensão que se formou. Ela me contou que estava aposentada, que o tio Paulo faleceu - fiquei muito triste. Ela estava morando sozinha, ainda na mesma casa de quando eu era criança. Ela não teve filhos. Sempre fui muito grata por tudo que ela fez por mim, mas nunca entendi porque tive que viver num abrigo, sabendo que ela tinha condições financeiras para me criar. Talvez tio Paulo não quisesse, vai saber.
Quando chegamos ela olha em volta, e parece se agradar. Meu apartamento é pequeno, mas é bem aconchegante e confortável. E foi o que eu pude pagar com o dinheiro que meu pai deixou numa poupança pra mim. No abrigo disseram que ele mandou aquele dinheiro pra eu me virar quando fosse maior de idade. E foi o que fiz. Usei o dinheiro pra dar entrada nesse apartamento, e paguei o resto nos anos seguintes, quando eu ainda tinha um emprego.
- É agradável aqui. - disse minha madrinha - Fico feliz que tenha feito bom uso daquele dinheiro.
- Ter onde morar é o mais importante né. O resto a gente leva. - respondi.
- Boa menina! - ela sorriu.
- Quer um café? - perguntei.
- Só um copo d'água, filha. Obrigada! - ela parecia ansiosa.
Peguei a água, entreguei a ela, e me sentei no sofá à seu lado.
- Pronto, madrinha. Estamos aqui. - incentivei-a a começar.
- Tudo bem. - ela deu uma golada na água, e pôs o copo na mesinha de centro. - Vou te contar tudo que você precisa saber.
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