Capítulo VI
I
Natsu às vezes encurtava as aulas para ir à Guilda. Cada vez mais frequentes, mesmo em plena tempestade de neve. Isso me preocupava. Poucas foram as vezes que eu tinha sido capaz de o induzir a ficar, que o Grande Mestre entenderia-o-no; por isso poderia relaxar um pouco. Mas quantas foram as vezes! Deu-me um abraço, um beijo e um afago e se despediu, saindo de minha casa para enfrentar a fúria da natureza sem nem olhar para trás. Não que fosse realmente perigoso, não para ele. Isso não. Mas sentia tristeza, como se ele não quisesse ir. Queria o segurar, o impedir e pedir para que ficasse mais; porém não tinha essa determinação.
Impedir não, porém, o acompanhar? Poderia?...
Foi, então, numa tarde friazinha igual as outras. Antes da quinta hora ele tinha se levantado da mesa, fez todo seu ritual de despedida e preparou-se para ir, dando suas desculpas para mim, que o Grande Mestre havia marcado uma outra reunião com ele para aquela hora. – Lá fora, a tempestade doutrora tinha dado trégua, nevava firmemente, apenas não tanto, o suficiente para até uma moça como eu caminhar, ainda cautelosamente, pela cidade.
"Posso te acompanhar dessa vez, meu professor?..."
"Está nevando muito! Seria perigoso para ti, Carla."
"Mesmo com você?..."
Parado à frente da porta, quase virando a maçaneta, parou; parecendo pensar. Indeciso. Virou-se, me encarou com aquela sua cara curiosa, tentando esconder sua suave alegria, e perguntou:
"Tem certeza que quer? Vou demorar bastante!, e acho que quando terminar vai estar de noite, ou o clima vai piorar; não, tenho certeza! Sabe o quão louco ele está."
Tinha sido mais simples do que eu tinha imaginado, admito.
"Qualquer coisa você me traz nos braços! E não é como se o frio me incomodasse tanto."
"Carla; Carla!..."
"Pare de drama. Se não quer que eu vá, diga; não enrole."
"Eu não lembro de ter dito isso!"
"Lady, está muito frio lá fora. O senhor Natsu tem razão, o clima está instável demais para caminhadas assim" Cecília aconselhou-me.
"Você não deveria estar cuidando de Helena, Cecília? Eu acho que ela está precisando de seus cuidados, não?"
Comentei, sorrindo para ela; mas um sorriso falso, descarado, para apenas ela ver, pois estava atrás de mim. E tentei usar minha voz mais doce. Ela parecia ter sido enviada por Wendy para me importunar! Não tinha outra razão.
"Ah! Acho que escutei o sino! Vá; vá ver ela. Acho que ela precisa de sua ajuda de novo."
"M-mas-"
"Deixe-me resolver-me com meu professor. Estou bem, pode ir! Sabe como Helena é."
Abanei o ar, nem mais a olhando. Revirei meus olhos e bufei.
"Não precisava disso, acho. Ela está apenas preocupada, Carla."
"Nananinanão!..."
Murmurei, mais perto dele.
"Ela me trata como se eu fosse uma criança! É irritante. Eu sei me cuidar."
"E como Helena está? Melhorou da gripe?"
"Ah. Ela melhora por alguns dias e depois de novo caí de cama... Sabe?..."
Escutou cada palavra minha com zelo. Sem que fosse porque sim, mas se preocupava também. Sua palma tocou minha cabeça, num gesto já comum entre nós, e balançou meus cabelos suavemente. O olhei, vi seu sorriso familiar, contagiante, carinhoso e quente. Dizia sem falar: vai ficar tudo bem.
"Amanhã posso dar uma olhadinha nela, o que acha?"
"Você?"
"Claro! Eu sou um homem completo, minha cara!"
"Oh. Não sabia disso!"
Brinquei, quando ele me deu o braço e o segurei.
"Mas chamei um médico para ela, ele é da família. Ele disse que deve ser anemia; ela sempre foi fraquinha desde sempre..."
Sua mana circulava pelo meu corpo bem rapidinho, e a minha pelo dele. Essa era uma das formas de eu trapacear para não precisar me focar em esquentar meu corpo. Ele fazia isso por mim!
II
Se houvesse cinco pessoas no salão principal era muito.
Vi a Duquesa Scarlet entre os poucos, esperando por Natsu. Bebia numa taça de prata, acredito que vinho, sentada no canto mais afastado de todos, ou todos os outros evitavam-a. Mais provável a segunda alternativa, pois seu carisma contagiante acabava não sendo do agrado de todos! Ó alegria que transpassava seu rosto de ferro-fosco. Tão brilhante quanto a noite de lua morta.
Eles subiram em silêncio após um aceno de cabeças sutil.
Na biblioteca passei meu tempo lendo um livro, acho, se não me engano: A rosa azul. Um antigo mito do Oriente, famoso por lá. E lembro bem do nome, pois foi marcante e narrava uma odisseia envolvente, de mitos orientais e um mundo estranho, ao mesmo tempo familiar...
A tempestade realmente piorou. O clima tenebroso, podia nem ver cinco palmos à frente. Demorando tanto tive de subir para o esperar logo lá em cima. Foi verdadeiro quanto ao tempo; uma, duas, três horas. Deveria ser umas nove da noite! Algo em torno dessa hora morta. As luzes dos postes mal iluminavam nada, geravam somente um ar pitoresco a mais nas ruas esvaídas de vida; e via tudo lá de cima. As grandes janelas estavam embaçadas pelo frio, uma suave casca de gelo se envolvia sobre a superfície, tornando-as meio azuladas, ou talvez fosse minha percepção.
Às vezes, as vozes abafadas lá dentro ganhavam forma, tornando-se mais compreensíveis, revelando um vislumbre do conteúdo de uma discussão unilateral. Erza lançava seus latidos raivosos com energia: "Esses desgraçados não podem fazer isso!" Enquanto isso, o Grande Mestre tentava responder em um tom mais controlado: "Eu sei, minha filha! Eu sei, vamos recorrer à Corte!" Era evidente que a situação era mais séria do que eu poderia imaginar. A duquesa interveio: "Você realmente acredita que a Corte pode resolver tudo? E quanto ao meu irmão? O que acontecerá com ele nesse meio tempo?" Um golpe seco ecoou, desta vez na madeira, e pude ouvir os estalos de algo rachando. "Eles não podem ir tão longe sem sofrer as consequências!..." As vozes diminuíram, e, distante como estava, não conseguia mais entender claramente o que estavam debatendo. A confusão tomava conta de meus pensamentos. Quem eram eles? O que não podiam fazer?... "Está bem, está bem. Como discutimos, minha filha, eles estão simplesmente atacando sem sentido, tentando nos desestabilizar! Pare de ceder às vontades deles!" A conversa era confusa demais para acompanhar. "Vamos encerrar por aqui. E quanto a você, meu filho, mantenha o ânimo! Já está tarde; é hora de voltar para casa. Eu os informarei quando tivermos notícias."
Sem tardar, Natsu saiu primeiro, deixando a porta aberta para que a Duquesa Scarlet passasse, e nessa curta fração de tempo, pela posição qual estava, pude ver o Grande Mestre sentado à mesa, ou o que sobrou, pois parte estava simplesmente arruinada como se uma marreta tivesse a alvejado com boas pancadas.
"De novo aqui, Marveel?..."
Indagou-me, cerrando os olhos.
"Está tudo bem, Erza!... Ela estava apenas me esperando. Perdão a demora, Carla; demorou mais do que eu esperava."
Confessou, segurando no ombro da condessa. Sua reação foi apenas revirar os olhos, dando com a língua entre os dentes.
"Tudo bem... Eu esperava por isso."
"Erza, vou levar a Carla para a casa dela. Está tarde e é perigoso nessa nevasca ela voltar sozinha. Você vai direto para para sua casa hoje?"
"Não; não. Tenho compromisso hoje; um jantar..."
Somente ele conseguia amansar aquela mulher, percebia. Até sorria; um sorriso de canto e recatado, mas ainda assim um sorriso conseguia dela arrancar.
"Mas depois me conte melhor sobre isso, quando tiver tempo."
Usando a ponta dos dedos igual uma pinça, arrancou a mão de Natsu de seu ombro, dando ligeiros passos para se afastar. Isso era eu; eu era esse incômodo para ela...
"Claro; conto sim. Boa noite, minha irmã! Vamos, Carla?"
Deu o braço para mim, e eu o segurei, sentindo a onda de calor passar por meu corpo, aconchegando-me na sua essência. Meu ritmo era o dele; lento, mais calmo. Passo a passo. E passo a passo, num momento parou.
"E Erza, Carla antes de ser Marveel ela é minha aluna... Peço que leve isso em consideração quando falar com ela, por favor..."
Parte de seu rosto podia ver, a outra só ela. E a rabugenta fez um som com a boca, confirmando à contragosto seu pedido. Sua seriedade no tom, pesando com o olhar afiado de um lince, fazia seu doce sorriso ganhar um toque um tanto... diferente.
"E vá pela sombra, Erza! Nosso jantar ainda está de pé?"
"Sexta-feira, nove horas. Não se atrase!"
"Erza; Erza. Jamais ousaria algo do tipo, minha amiga; me conhece bem."
III
Seus dedos estavam entrelaçados aos meus.
Envolvia meus braços em torno do seu; me aninhando em seu colo. Aproveitando nossa caminhada, ou melhor, jornada. Só o forte vento e neve forte podiam ser realmente um empecilho. Inspirei e suspirei, ergui minha palma, lutando contra o vento; calma; lancei um pulso de energia. Tomou uma forma leitosa, igual uma bolinha de sabão igual como quando juntamos nosso dedo indicador e polegar, soprando no círculo feito, criando uma bolha, mas essa nos envolvia.
O domo nos protegia da nevasca.
"Consegue manter a calma até em uma nevasca como essa, Carla? Estou impressionado!"
Meu professor me afagou, olhando em volta.
"Mesmo um pouquinho instável, é muito bom..."
"Se parar, sabe que vou me chatear, né?"
Nossos olhos se cruzaram. Entendia onde queria chegar.
"Larapia."
"Esperta – é diferente. E se me chamar disso de novo, sabe como vai acordar depois!"
"Numa cama bem quentinha e macia?"
"Se um caixão parece tão confortável para ti, posso agilizar seu desejo."
"Se for melhor que minha cama! Seria um favor."
Minha casa estava perto.
"Natsu..."
"Sim?"
"Por que não fica hoje?"
"Perdão?"
"Há quartos vagos lá em casa. Está tarde... E amanhã temos aula logo cedo! Fique; seria uma honra te ter lá..."
Comigo.
"Poderiam entender errado..."
"Eu insisto!"
"Não seria um incômodo? Não quero te dar trabalho, Carla."
"Jamais; nunca. Como pode pensar tão pouco de ti? Você é muito bem-vindo à minha casa, sabe disso."
"Tua irmã não acharia ruim levar um homem tão tarde da noite, e ele dormir ainda?"
"Pare de pensar tanto!"
Puxei seu braço.
"Vamos, aceite; senão vou pensar que minha casa não é o suficiente para ti!..."
"... Ok; ok. Fico essa noite!, mas só porque insistiu."
Festejei em silêncio, tentando manter minha compostura. Ele balançou meus cabelos de forma calculadamente irritante, rindo de leve. Uma risada gostosa e leve.
Uma empregada levou meu casaco e o pendurou. Outra correu para cima ao meu comando para preparar o meu banho. Natsu foi ver Helena, eu me trocar. – Cecília foi me ajudar, mesmo que eu preferisse Helena. Vesti-me com a seda mais pura e branca. Leve e solto. Tão suave.
"Lady, o Senhor Natsu ficará para o jantar?"
Ela perguntou-me.
"Para dormir também. Peça para as criadas ajeitarem seu quarto e levarem roupas limpas; aquelas da reserva mesmo... Ah, sem maquiagem, por favor. Isso não é um jantar social, Cecília!"
Resmunguei, afastando sua mão, limpando o rosto.
"E-ele irá dormir aqui?"
"Algum problema?..."
Já não estava gostando de chegar onde ela poderia chegar.
"Ele é um homem, lady! Se souberem que trouxe um homem à essa hora para casa, e sabe que homens como ele-"
"Cecília, perdão... Mas se ousar; ou pensar; cogitar dizer que ele pode fazer algo comigo ou outra coisa, prometo: tu dorme na neve e eu te molho com um balde d'água! Como ousa pensar tamanha maldade de Natsu? Ele é um cavalheiro!"
"N-não queria dizer isso!"
Virei meu rosto, sentada na cadeira, olhando bem nos olhos.
"O que queria dizer então?..."
Se calou.
"Fez bem. Contará isso à Wendy?"
"C-claro que não."
"Ótimo..." Seu cuidado em pentear meu cabelo acabava amolecendo um pouco meu coração. Mas, ainda faria ela andar com uma mordaça na boca pelo restante da semana.
"Eu que fui errada, lady. Apenas... Estou fazendo o que sua irmã me pediu."
"... Minha irmã?"
"Falei demais... Desculpe, apenas ignore o que falei."
"Quantos anos já faz que foi comprada por nós?"
"Dois."
"Interessante. Ela confia muito em você, não é?"
Penteando meu cabelo, Cecília respondeu:
"Acho... Que sim?"
"Minha irmã é complicada?"
Soltei uma pergunta vaga.
"Não! Jamais... Ela é a melhor mestra que poderia ter."
"Hum. Você é bem bonita, Cecília."
Isso não poderia mentir. Tinha seus vinte e poucos anos. Cabelo preto como carvão, cortado bem curtinho – deveria ser descendente de alguém do Norte, mas isso nunca vim a saber –, seus olhos castanhos como mel, quase amarelos; uma verdadeira mestiça, pois isso era um traço do Oriente. Pele branquinha pela falta de sol, magra e esguia; com mãos pequenas e macias. Porém, seu rosto fino dava seu charme; por isso Wendy tinha a escolhido, acredito. – Minha irmã e seus gostos excêntricos.
Pegou o perfume na escravinha à minha frente, usando em meu colo e nuca.
"E como se sente me servindo?... Não sou Wendy, muito menos sua senhora."
"Mas é Marveel, e irmã dela."
O jantar foi agradável.
Mesa farta e boa comida, bom vinho e uma boa companhia. Passou tão rápido! Na sala, em frente à lareira, antes da última hora, eu e ele estávamos conversando, admirando o fogo. Vestia roupas leves, e seu cabelo ainda parecia um pouco úmido. O som dos estalos da madeira abafavam o urro dos ventos do lado de fora.
"Por que é um mercenário?..."
Soltei aquela pergunta.
"Todo bom soldado no final é um. Muda apenas que uns te bandeira no peitoral e outros não..."
Zombou, olhando a janela.
"Mas entre um e outro não tem tanta diferença, Carla."
"Achei que havia..."
"Uns lutam por dinheiro, outros por honra; mas, alguns, para sobreviver..."
"E por que luta?"
Silêncio.
"... Eu... Nunca me perguntei isso. Foi uma boa pergunta... Talvez honra; necessidade? Não sei, orgulho?"
"Orgulho?"
"Talvez. Apenas chutei. Levantar uma espada, um escudo... Isso é pesado, mas quando fazia isso, sentia que tinha um motivo: que por eu fazer isso outros não iriam precisar... Meio bobo, mas acho que isso..."
"Queria ser um herói?"
"É. Acho que sim, mas heróis... Os heróis são virtuosos."
Suspirou, bebendo vinho em sua taça de ferro.
"Mas me senti como um algumas vezes..."
"Me conta essas histórias?"
"Claro, Carla; conto sim."
Um sorriso fraco germinou no seu rosto.
"Essa história começou bem além desse mar, onde as terras eram verdes e o vento suave; onde o sol era meigo, e durante todo o ano podia se plantar e se colher... Uma terra distante, do outro lado desse grande oceano. – Onde um garoto erguia pela primeira vez sua espada, onde outros já eram calejados pelo fogo... Onde crianças como eles também não faziam nada disso...
Porém tinha motivos desse garoto, assim como tantos outros ter de erguer pela primeira uma espada; mesmo com seus pequenos braços mal aguentando o peso do balanço da arma. Da constelação de cetus eles vinham, vinha do mar qual antes, um dia, tanto se orgulhavam. Em barcos grandes como baleias, ocupando todo o horizonte, avançavam para conquistar; em busca de tudo o que não os pertencia. Aaron, o Conquistador junto a seu exército iriam sitiar aquele próspero reino. – E esse reino, Lorien, clamou por ajuda. Aaron tinha dúzias e mais dúzias de grandes encouraçados, guardando centenas de bárbaros em seus deques. – Alguns atenderam seu socorro, e Fiore, orgulhosa Harpia, percebeu a fumaça no horizonte; o rei logo convocou os nobres para uma campanha além do mar. Muitos foram erguendo orgulhosos seus brasões, com seus cavalos de guerra e lanças afiadas, declarando guerra contra o inimigo tirano, lançar-se ao mar. Oh, corajosos eram; e lá, entre eles, estava eu. Nem escudo, nem armadura direito tinha; apenas tinha minha capa e minha espada – um pouco tão cega quanto eu era – um hoplita!
Lá lutei logo quando os barcos chegaram na costa, tomei um cavalo para mim e junto a meus camaradas partimos em direção ao sul. Tão jovem; tão tolo; como me importava com a batalha! Com a guerra! Em trazer orgulho ao império. É um pouco engraçado lembrar disso, mas disso não me orgulho tanto – do que hoje vejo como trabalho, na época via como motivo de vida. – Dum escudo sendo rompido por uma lança, de vencer o inimigo... Ah, Carla. Como era tonto; tolo; idiota!... Mas essa história não é, mesmo sendo, sobre mim; é sobre três crianças.
Posso lembrar como se fosse hoje ainda. Estávamos lutando por Zalara, uma capital; o inverno era rigoroso, não tanto quanto esse, mas pior. Pense de tudo e o impensável. Fontes envenenadas, armadilhas lá e cá, soldados escondidos atrás de escombros, armados!, em mãos arcabuzes e pistolas. Se para nós estava uma desgraça, para os civis podiamos multiplicar pelo dobro; e pensar nas crianças nessa guerra!... Dói lembrar, Carla; e mal tínhamos comida para nós mesmos, e eles? As vítimas? Essas três crianças vinham sempre no nosso acampamento, davam vida para nós. Uma mancha branca na nossa pretidão de alma. E sorriam, nos ajudavam dando frutas, ervas e vinho. – Era uma menininha e dois garotinhos. Não lembro seus nomes, pois não falávamos a mesma língua; nossas "conversas" eram por gestos, quase mímica, Carla. Crianças extraordinárias. Tão frágeis, tão pequenas... Desculpa... Me emociono um pouquinho quando lembro... Um dia eu estava na linha de frente; tiros e mais tiros, como flechas incandescentes, passavam por minha cabeça, ricocheteavam ou estouravam as paredes onde nos abrigávamos.
O ar cheirava a pólvora, sangue... Uma cena feia de ver. Eu inundei toda a rua em chamas, devastando o que eu via; consumindo os prédios, as casas. Empurrando e obrigando os inimigos a recuarem, porém para atacar tinha de me expor... Vê? Foi aqui que levei um tiro; sorte a minha, sou um mago. Um humano teria sido partido ao meio. Tudo ficou preto depois de sentir o coice e ser lançado para trás. Um borrão na minha memória. Lembro de cair, de escutar mais tiros, gritos; cavalos; explosões. Frio... Senti bastante frio e dor. Um soldado morto, não?... Mas a história não acaba aí, relaxe; eu, Natsu, sobrevivi!... Eh, não me olha assim... Era pra descontrair... Foi mal assim? Ok; ok. Continuando. Quando tudo ficou preto, achei que tinha morrido. Meu rim esquerdo tinha estourado, tinha um rombo; na linha de frente de uma das piores batalhas que lutei já... Ah!
Achei que acordaria nos Campos Elísios, o sol batendo no meu rosto, vestindo linho e podendo comer do bom e do melhor por todo e todo sempre. Só que acordei, pelo que acho, uma semana depois com três crianças à minha volta, mas uma enxugando meu rosto. No meio do mato, não sabia onde; numa cabaninha, deitado em cima de folhas sem minha camisa; minha capa sendo usada tapete, e sem espada. Se pudesse eu iria me levantar, não minto, tomar minha capa e minha espada, mas estava debilitado; cansado; dolorido; com febre. Um caco. E sem um rim. Melhor, impossível, não? – A mocinha me limpava e cuidava dos meus machucados, pondo ervas e panos, e os garotinhos iam por aí e pegavam frutas, mas muitas frutas. – Eu, um soldado, sendo cuidado e guardado por três crianças órfãs de uma guerra sem sentido, cuidando de uma pessoa como eu sem sentido. Sem motivo de estar lá. – Sorriam tanto; felizes; mesmo em meio à desgraça. Como podiam sorrir?
Os chamava pelos olhos; Ágata, a garotinha dos olhos de fogo; Jade, o garotinho dos olhos verdes, e Âmbar, o dos olhos castanhos. Os dias foram se passando dessa forma, lentos e dolorosos. Sem informação nenhuma de meus... Colegas... Talvez estavam mortos, talvez estavam vivos; mas talvez desejassem a morte; sofrer na mão de inimigos como eles? Não, não. Isso não. Contudo, eu estava vivo – por causa de três criancinhas inconsequentes. Corajosas. Fortes. Aprendi muito com elas; a compaixão; o amor; a doação... Três pequenos heróis vestidos de trapos, sem capa ou sapatos, sem espada ou pistola, nem bandeira federada tinham, só a branca; só a dos seus lençóis. – Quando melhorei podia caminhar aos trambiques. Minha espada virou uma bengala, minha capa a coberta de Ágata, Jade e Âmbar durante as noites frias às quais se alinhavam ao meu entorno. Sem fogueiras, sem nada disso; podíamos ser vistos e eles sabiam.
Fugimos da floresta. Cada um passo dois doíam, mas os deles doíam mais; lá dei minhas botas para Jade, minha capa para Ágata e minha camisa, quase um casaco, para Âmbar. O frio congelante acabava sendo somente um sopro para mim, algo frívolo para ser sentido, e pouco menos do que um incômodo. A infecção, a doença, a fome, o medo; tudo nos rondava. Três crianças e um soldado mal acabado, agora, em terreno dominado pelo inimigo, onde tropas e mais tropas caminhavam a torto e a esquerda. Uma cidade sitiada, onde só por lá poderíamos passar, pois a floresta, o clima fazia ser extremamente instável, e muito perigosa para caminhar. Tinham um rio cortando, só uma ponte, cair naquele rio era a morte, até para mim. A hipotermia... tínhamos que atravessar a única ponte!... Carla?..."
"Ah... Não... Estou aqui; continue..."
"Ok... Mal me mantendo de pé, mandei elas correrem, abanando minha mão. Seguraria a frente inimiga pelo tempo que pudesse; mesmo mal me mantendo de pé. Era noite sem lua. Uma luta perdida, mas... Se elas sobrevivessem já estava bom; não lutava pelo meu império; não lutava por mim; lutava pelo que era certo; por almas inocentes. Um sentimento estranho me tomava, não era medo; não era raiva; também não era calma; porém, não era desgosto. Era, acho, determinação. Pela primeira vez lutaria por algo além de mim ou falsa honra; lutaria por quem não poderia se defender. Por quem merecia viver... Ergui minha espada ao tropeços, a inundando em chamas vermelhas como o sangue que escorria de meu corpo; e se tornou azul como o céu celestial. Elas correram sem olhar para trás, e eu estava sozinho com dezenas de inimigos à minha frente. Minha mente estava vazia. Meu corpo se movia sozinho. Só pensava: vocês não vão tocar nelas, seus putos!
Uma luta perdida, mas seus golpes não doíam mais. Cada corte, cada tiro; minha carne sangrava, chorando como aquelas crianças, porém, minha alma estava em paz. Foi a primeira vez que usei realmente também d'kardia numa batalha: as balas estavam mais lentas conforme se aproximavam de mim, as espadas e os homens estavam parados; o tempo congelou na minha percepção. Cortei e cortei, abrindo caminho, foi uma fração de segundos, pouco antes de cair no lago congelado após uma salva de tiros; porém, de novo minha sorte, balas de chumbo atiradas de simples arcabuzes pouco dano faziam à mim... Fui carregado pela correnteza até ser deixado na beirada do rio, sangrando, morto. A cidade em chamas, podia ver ao longe a fumaça... Pouco depois perdi a consciência de novo, acordando em um acampamento do império. Como? Deve pensar. De novo tinha sido resgatado por aquelas crianças, nem sei como; nem tento mais por sentido nisso. Conseguiram chamar soldados conhecidos delas, os puxando para onde eu estava. Causalidade, destino... Sei lá, era pra eu tá morto. Tantas coincidências. Acho que não era minha hora mesmo..."
"E elas?..."
"Disseram que enviaram num barco militar para cá, mas nunca mais as vi... Devem ser quase adultos já. Gosto de pensar nisso..."
Sussurrou.
Inspirei e suspirei bem devagarinho. Os meus olhos pesavam bastante. Meu corpo parecia leve, pouco respondia a mim. Lerdos movimentos podia fazer. E Natsu caminhou em minha direção, quase um vulto na escuridão. Seus braços rodearam meu corpo, erguendo e levando seu colo. Dormia acordada.
"Senhor Natsu, permita-me levá-la ao quarto."
Uma empregada argumentou.
"Não precisa fazer isso, é meu dever."
"Não; não. Relaxe. Onde é o quarto da Carla?"
"No segundo andar; na primeira porta à esquerda, senhor."
"Ah; sim. Obrigado. E boa noite."
Ajeitou-me. Ainda entre o despertar e o sono, acomodei-me ao seu corpo, aproveitando seu calor e cheiro doce. Passo a passo, caminhava sem luz alguma, nos emergindo na escuridão como se fosse dia. Talvez fosse para os seus olhos, não sei. Sentia subirmos as escadas. Passarmos pelo corredor. Entrarmos no meu quarto...
Fui deitada cuidadosamente no colchão.
Sua presença estava ao meu lado, e segurei a ponta de sua manga antes de ir.
"Não vá..."
Murmurei.
"Está frio..."
Ele sentou-se na beirada de minha cama. A luz da lua inundava meu quarto, fraca, o suficiente para ver o vulto de suas costas, sem detalhe algum. Seus dedos tocaram meu rosto, subiram e afastaram meus cabelos dos olhos.
"Tenho que ir..."
"Só mais um pouquinho..."
"Só mais um pouquinho."
Afagava meus cabelos, tocava meu rosto com o dedão, um carinho meigo. Delicado. Tão bom para dormir... Escutava seu coração bem baixinho. Tum! Tum! Parecia um pouco agitado.
"Você... Cantaria uma música para eu dormir se pedisse?..."
"Se quer dormir, acho melhor eu ficar bem quietinho..."
"Bobo. Faria?"
"Faria..."
Deu-me um beijo.
"Mas não sei cantar muito bem."
"Mentiroso..."
"Sabe bastante de mim, parece. Estava me vigiando, garotinha?"
"Hm... Hum..."
"Essa música minha mãe cantava para mim... Numa época não tão boa para nós dois..."
Sua voz entoou, chegando a um tom suave, leve. E começou: "Quando a noite cai e o sono não vem, olhe para o céu e veja a luz... Uhum... Huhum... É a estrela do amanhã, que brilha no escuro e faz sonhar com um futuro melhor... Hum... Huhum... Ela que trás esperança, que há promessas e vitórias, que pode superar os desafios da vida....... Ela vai te acalmar e te confortar, vai te levar para um lugar onde possa descansar e se preparar para o dia... Estrela do amanhã, obrigado por estar aqui, você é a minha guia e a minha inspiração...... Ó, estrela do amanhã....."
Sua palma me tocava, acariciava meu rosto e me confortava em sua presença, conforme cantava, ou contava.
"Eu te amo..."
Murmurou quando acreditou que eu estava dormindo.
"Durma bem... meu bem..."
Um beijo ele me deu. Seus lábios tocaram meu rosto, eram suaves e quentes. Foi um pouco mais demorado. O colchão se afundou à minha volta levemente, e o peso de seu corpo pendeu sobre o meu quando o fez. Meu coração batia tão rápido; e podia sentir o dele quando seu peito pressionou o meu. Coração sobre coração. O ar faltou em meus pulmões, e ergui minha mão buscando seu rosto, sua pele era macia, tão suave. A escuridão nos acobertava
Tentou se afastar, mas também não queria, a disputa da sua mente contra seu coração, podia sentir a indecisão de seu corpo. – Silêncio. – O puxei... Nos olhávamos sem nos ver. A pouca luz pouco ajudava. Podia sentir sua respiração, seu ar eu também respirava; podia sentir em meus lábios seu arfar. Podia quase sentir, também, a textura de seus lábios com os meus...
"Eu... também te amo."
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