Mini contos
Bom, deixo aqui um grande abraço na colega Tati. Espero que dê tudo certo, sempre que precisar de um amigo, estou aqui.
Aos leitores que nos acompanham deixo meu mais sincero pedido de desculpas. Estou atrasando com as postagens e reduzindo a qualidade. Talvez seja culpa da falta de tempo, talvez mero desleixo da minha parte. Mas farei de tudo para melhorar.
E, fim, aviso que o conto de hoje é bem mais longo que o convencional. Acabei de escrever aquilo que me veio ao coração. Alias, falando em coração, deixo aqui um grande um beijo à Isabela Santos, a garota que há seis meses é a musa de minhas poesias.
À mesa redonda.
Não se sabe onde nem quando aquele encontro foi realizado, mas ali os litigantes estavam reunidos. Os três convidados sentados à mesa estavam perfeitamente ajambrados, concentrados e armados. Por fora, como notava aquele que presidiria a "audiência", eram distintos pacificadores, mas por dentro estavam preparados para a guerra.
Será que algum deles cederá, pensava o homem de pele chocolate, examinando cada um dos quatro convocados. Suspirou descrente. Ajeitou o nó da gravata vinho e deu por iniciado o evento daquela tarde.
— Senhores, senhora, como combinamos, todos terão tempos iguais para falar. Se tiverem qualquer objeção ao que está sendo dito não precisam interromper a vez do colega — apanhou a caneta que estava a sua frente e rabiscou na folha de papel que com ela fazia par. — Cada um de vocês tem uma caneta e uma folha de papel. Anotem aquilo que desejam contestar e ao final da sessão lhes será dada a oportunidade de resposta.
Os três convidados assentiram e o homem de olhos castanhos e cabelo curto continuou seu discurso introdutório:
— Se acontecer de interromperem uma vez eu aplicarei uma advertência; duas, tornarei a advertir; na terceira a audiência será cancelada e, se for do agrado de cada um, marcaremos uma nova. Entendido?
Os três tornaram a assentir sem que nada fosse pronunciado.
— Vocês foram chamados a esta audiência para que possamos buscar uma solução para suas rusgas. Peço que colaborem e procedam como o instruído. Antes que decidam optar por levar isto a vias extremas, aconselho que busquem um dialogo. Muitas vezes um pedido de desculpas pode evitar as dores de cabeça de um processo judicial longo e insatisfatório. Podemos começar?
Pela terceira vez todos assentiram com um menear de cabeça. Aquele que presidia mirou o senhor de terno cinzento e cabelos penteados para trás com excesso de creme.
— Senhor Alberto, como foi combinado anteriormente, você será o primeiro a pronunciar-se. Tem alguma proposta de acordo ou gostaria de se desculpar com seus colegas?
— Não senhor.
O conciliador anuiu e Adalberto deu início à narração.
— Era domingo, lá pelas onze da manhã. Eu lembro que o dia tava bem bonito; as arvores cheias de folhas e os passarinhos voavam no céu. Lembro-me de tudo. Eu tinha beijado minha família e saído para vender minhas cocadas, como de costume. — Apanhou a caneta e começou a fazer pequenos traços no papel, como se tentasse ilustrar o mapa de suas recordações. — Todo dia eu saio de casa às nove da manhã e volte lá pelas cinco da tarde. Preciso ganhar algum dinheiro, senão minha família morre de fome, senhor mediador. Todo homem tem que trabalhar, não acha?
O homem de gravata vinho respondeu com toda elegância cabível:
— Senhor Alberto, não estou aqui para dar opiniões quanto ao que narrarão, mas sei que todos nesta sala compartilham de sua afirmação. Gostaria de prosseguir?
—Todo domingo — Alberto continuou — naquele mesmo horário eu vou vender meus doces na porta da Catedral de São Francisco. Ali é o ponto forte do meu dia. — Baixou a cabeça e pigarreou. — Mas naquele dia esse homem de nome João saiu da missa todo furioso. Foi até mim e começou a me empurrar, me chamando de... — balbuciou, sua voz fanhosa, esfregando o dorso da mão no rosto. — Não consigo repetir, doutor. Eu só queria vender os meus doces; eu estava só trabalhando; não tenho direito de dar o pão aos meus filhos?
— ALÉM DE LADRÃO É MENTIROSO — João, um homem de cabelos grisalhos e testa rugosa, gritou espalmando a mesa enquanto colocava-se em pé. — NÃO FOI BEM ASSIM QUE ACONTECEU!
— Senhor João, esta é a primeira advertência — admoestou o conciliador. — O senhor em breve terá a palavra. Enquanto isso anote aquilo que discordar e poderá responder na sua vez.
João franziu a testa. Chegou a fazer menção de algo dizer, mas conteve-se e fez uso da folha que lhe fora dado.
O conciliador fitou Alberto e pediu que continuasse com a narração.
— Sim, senhor. O João saiu da igreja me xingando, chamando de tudo que é coisa ruim e dizendo que eu, por ser evangélico, não podia vender doce ali. Disse que eu não devia vender minhas cocadas ali; que eu devia criar vergonha na cara e ir para juntos dos meus semelhantes, os... os... meu Deus — respirou fundo, tentando engolir as palavras, mas no final as regurgitou — eu devia procurar outros ex-ladrões e ex-presidiários. Começou a me empurrar e a chutar como quem chuta um cachorro. Eu tava indo embora, mas quando ele disse que eu... bom, doutor, não tenho vergonha do meu passado. Já fui ladrão, já pertenci a este mundo enganador, mas a palavra do nosso Senhor me salvou e agora prego a santa profecia com amor!
O conciliador mirou discretamente João e Tainá. O que eles teriam a dizer, se perguntava.
— Sou contra toda forma de violência, por isso resolvi engolir meu orgulho e ir embora, mas quando esse indivíduo disse aquilo... não aguentei. Soltei meus doces na calçada e fui pra cima. Se eu explorasse os fiéis da minha igrejinha, porque trabalharia sete dias por semana para comprar o feijão de cada dia para aqueles que dependem de mim? O trabalho que faço à noite é com amor, não ganância — enfiou a mão no bolso do paletó e tirou um lance amarelo com o qual secou o suor da testa. — Sou um trabalhador, um pai de família e acima de tudo um servo de Deus. Pode me chamar de ladrão, assassino, até de veado se quiser, mas nunca insulte a minha fidelidade a Deus. — Fitou a jovem de cabelo na altura do pescoço e piercing no lábio inferior. — E se já não bastasse tudo com esse homem, ainda ela terminou de me desmoralizar. Terminou de zombar da minha fé! Precisava ela ter feito aquilo? Precisava ele ter me proibido de trabalhar apenas porque não beijo um terço nem tenho imagens em casa? Humilhou-me só porque eu falo diretamente com Deus, não preciso terceirizar o serviço com santos.
O conciliador levantou sutilmente a mão, interrompendo o discurso de Alberto antes que o clima se acalorasse.
Direcionou a João o olhar e deu a deixa para que ele se desse a sua versão para a rusga daquele domingo. A situação estava bem menos ruça do que o elegante homem de pele morena previra.
— Agora o colega se faz de coitadinho — João começou. — Tentar jogar pra mim toda a culpa do que aconteceu. Mas nobríssimo doutor, ele esconder a verdade, a origem de tudo. É uma amaríssima verdade que me enfureci quando o vi vendendo aqueles doces na porta da igreja na hora da missa; é veríssimo que deixei o padre a falar e fui tirar satisfações com aquele hipócrita!
— OLHA COMO FALA DE MIM — Alberto rebateu, cerrando os punhos e pousando o cotovelo sobre a mesa. — "Hipócrita" é a s...
O conciliador levantou mais uma vez a mão direita. Mão mágica! Todos se aquietaram.
— Senhor Alberto, esta é a segunda advertência. Mais uma e a sessão será encerrada.
Alberto fechou a cara como uma criança inconformada com a bronca.
Aquele que presidia a audiência olhou o senhor de cabelos grisalhos.
—Senhor João, esta advertência se estende a você. Peço que mantenha ao máximo a lhaneza em suas palavras. Lembre-se que não estamos aqui para discutir, mas para buscar uma conversa.
João, de certo modo descontente, acatou as palavras do homem de gravata vinho e prosseguiu.
— Esse homem, o Alberto, não devia estar querendo tirar lucro daqueles que tanto persegue. Se o senhor conciliador entrar na internet e pesquisar o nome dele vai achar vários sermões onde ele diz que todos da minha religião estão condenados ao inferno; que os crente vão ir pro céu montados nas costas dos católicos — seus olhos encontraram por um breve segundo os de Alberto e se esquivaram. — Ele zomba da gente. Nos chama de tratores: aqueles que tentam alargar a estrada do paraíso. É doloridíssimo, doutor.
O conciliador viu as rugas na testa de Alberto desaparecerem e a cabeça ser baixada em sinal de constrangimento.
— Na tarde do dia que antecedeu o acontecido, ele tinha realizado um culto ao ar livre, na praça em frente à catedral. Ali ele gritou, pulou, disse que iriamos todos pro inferno e no final... amaríssima recordação. — Juntou os dedos sobre o colo e focou os olhos na porta às costas do conciliador. — Eu estava saindo da igreja. Não tinha missa, mas tinha assuntos a tratar com o padre. Enquanto eu descia os degraus vi o nobilíssimo senhor Alberto atirando com violência no chão imagens de nosso santo padroeiro, de Nossa Senhora, Santo Antônio e tantos outros... — Estendeu as mãos na frente da fronte e focou o olhar nelas como se examinasse cada traço de suas palmas. — Ele quebrou e pisoteou todas. Meu coração doeu tanto. Corri para a casa e chorei. Chorei tanto, doutor.
Tainá chegou a cogitar sair da sala, mas resistiu. Não queria fazer parte daquela sessão de desabafes, mas precisava.
— Ele zombou de mim e dos meus semelhantes e no dia seguinte foi tentar vender seus doces pra gente? Eu não aguentei! Briguei com ele, acertei um soco bem no meio dos olhos dele e acertaria outro. Só pra ele aprender a não mexer com a fé dos outros! — Olhou para a jovem Tainá. — Mas essa garota... não bastasse a dor que assolava meu coração, essa garota ainda gravou aquele vídeo e publicou debochando de mim — fechou os olhos, sentindo um nó na garganta — zombando de mim, do pastor, de todos os cristãos. Ela nos ridicularizou.
Alberto levantou a mão, pedindo a fala. Talvez sentisse em si o mesmo que se passava no coração de João.
O conciliador sabia que conceder a fala a Alberto não seria ético, mas estava curioso para ouvir oque seria dito. Repousou o cotovelo sobre a tábua da mesa e o queixo sobre o punho cerrado.
— Tenho que concordar com o senhor João. Ela acabou com algo a mais que a nossa imagem. Aquela gravação gravada onde ela diz "o 'Pai' mal morreu e os herdeiros já estão brigando pela herança" e "eis o amor que tanto pregam" não é ofensa apenas a nós. Tudo que ela disse foi para ofender não apenas eu e o João, mas todos os cristãos.
—Isso mesmo, pastor Alberto — João falou, unindo sua cólera à de Alberto e direcionando tudo contra a bela mulher. — Ela persegue aqueles que servem a Deus. Bem diz a santa escritura. O mundo tá perdido. Vai chegar o dia em que nós, os escolhidos, seremos perseguidos pelos adoradores da besta!
— Esse dia chegou, senhor João — Alberto concordou, estendendo a mão ao homem grisalho. Uma oferta de paz. — Estamos brigando entre nós, mas todos nós temos o mesmo Deus, o mesmo Jesus. Temos que nos unir contra aqueles que vieram para enganar almas e destruir o exército do Homem.
O homem de gravata vinho levantou a mão pedindo o silêncio da dupla.
— Acabou aqui — Alberto se adiantou — sabemos disso. Mas quero que saiba de uma coisa, doutor, essa umazinha persegue a igreja há muito tempo. Zomba da nossa fé, ironiza nossos rituais; profana nossos encontros trocando beijos com as "outras".
— profana aquilo que acreditamos — João enfatizou.
— Ela persegue os servos de Deus — Alberto enfatizou, espalmando a mesa. — Abominação, pensa que ganhará o perdão do Pai assim? O que você ganha com tudo isso? Acha que Deus se agrada quando você invade um culto para trocar beijos com outra mulher? Acha que Deus se agrada quando você difama dois sacerdotes?
O conciliador se pôs em pé. Se aquele momento fosse um furacão, haveriam acabado de chegar ao seu olho.
— A audiência acabou aqui — disse, gesticulando com as mãos para que nos ânimos se amenizassem. — Voltem para a casa. Não haverá acordo hoje.
Mas Tainá levantou a mão.
— Doutor, ainda não tive a minha oportunidade de falar.
— Não há necessidade — mediador respondeu — deste mato não sairá coelho.
— Não é mais pelo acordo — Tainá rebateu, traçando espirais com o indicador na mesa. — Eles me ofenderam, e a nossa Carta Magna me reserva um direito a resposta proporcional. Por ser como sou já sou privada de tantos direitos e o senhor agora que me tirar mais um?
O homem de pelo moreno respirou fundo. Temia que a rusga se agravasse, mas deveria obstar a palavra de Tainá?
— Doutor conciliador, tanto o senhor João quanto o pastor Alberto contaram suas histórias hoje. Um narrou aqui que é pai de família e que vive da venda de doces na rua; o outro, que se sentiu ofendido com as barbaridades do anterior. Ofendidos? É! Eles são inimigos de velha data. Um usa dos cultos para zombar dos costumes do outro. O pastor diz que o católico não presta por "X", e o católico desdenha do evangélico dizendo "nessa igreja tem Ex-tudo, menos ex-homem de bem". Eles trocam farpas desde antes daquele domingo.
A jovem apanhou a folha que fora posta a sua frente, amassou e jogou no lixo.
— Eles se odeiam, mas existe algo que é capaz de unir cão e gato: o desprezo que sentem por mim — olhou fundo nos olhos do moreno. — Eu gravei aquele vídeo, postei, distribui e disse com todas as palavras "o Deus que eles seguem eu não conheço".
— Você não o conhece — João retrucou, interrompendo a jovem. — E ele não conhece você, abominação!
O mediador chegou a fazer menção de repreender João, mas, antes que o fizesse, Tainá já estava prosseguindo com o discurso.
— Será que ele conhece alguém? Eu já pertenci à sua igreja, pastor Alberto, mas quando me descobri você e seus colegas me expulsaram. E, mais, ainda estumaram todos contra mim e minha namorada. Perdi emprego, perdi amigos, perdi meu lar, minha imagem, mas não a vontade de viver. Seu Deus se agrada com isso? — Fitou João. — Quando precisei de um teto para pernoitar busquei a catedral, mas vocês (que tanto se declaravam contrários aos "ladrões de paletós") fizeram o mesmo e nem um copo de água me deram. Busquei um lugar para exercitar minha fé e crer em uma "salvação", mas todas me negaram. Vocês tiraram tudo que eu tinha, e quando pedi uma esmola em troca, não me deram. Vocês se dizem homens de Deus, mas não passam de generais.
Alberto e João baixaram a cabeça. Estariam envergonhados?
— Seu Deus se agrada com o que fazem — Ironizou. — Graças a vocês agora pertenço à religião da minha namorada, o direito e minha igreja se chama STF. Acredito nos direitos humanos: não os posso ver, mas sei que estão zelando por mim.
Os quatro ficaram mudos por alguns instantes até que o conciliador rompeu o silêncio.
— Acho que daqui não sairá um acordo, mas, antes de dar por encerrado nosso encontro, gostaria de fazer algumas colocações. Não deveria, mas me sinto obrigado a isso.
Olhou para Alberto.
— Senhor Alberto, não sei quem está errado nisto tudo, mas você, como um profeta das escrituras, deveria pregar aquilo que foi ensinado. Quando Jesus andava pelo mundo ele curou quem não tinha cura e perdoou os condenados. Se o senhor se julga superior aos outros, não deveria também orar por eles, pedindo que Jesus os perdoasse, pois aqueles não sabem oque fazem?
Mirou João.
— Senhor João, você é um veterano da adoração. Conhece a bíblia de início ao fim. Compreendo que tenha se sentido ofendido com a conduta do colega, mas não foi o seu Jesus que disse "se lhe ferir a face direita, ofereça também a esquerda"? E mais, senhores religiosos, quantos pecadores Jesus ordenou que fossem perseguidos? Querem realmente cercear o direito desta jovem a ter fé?
Mirou Tainá.
— Seria fácil agora olhar para você, jovem do STF, e enaltecer aquilo que fez, mas eu seria hipócrita. Tudo que eles fizeram a você foi errado, eu sei. Eles falharam com a própria fé, mas e você, será que não violou os seus próprios mandamentos? Assim como eles usam a Bíblica Sagrada, você usa a Constituição Federal. Lá está escrito que você tem o direito à dignidade e a não sofrer qualquer tipo de discriminação
— levantou o indicador. — Mas também diz que eles têm o direito aos cultos religiosos. Quando você resolve se vingar, atentando contra os atos deles, está jogando mais gasolina na fogueira. Erro não sana erro. E da mesma forma que eles violaram seus direitos, você violou a imagem deles. Será que os ministros, seus sacerdotes ficariam felizes com isso?
Enfiou as mãos nos bolsos.
— Por fim, nobres convidados, espero que reflitam sobre tudo isso. Será que algum de vocês tem razão nisto tudo?
Virou-se na direção da porta e se foi.
— Sessão encerrada. Não perderei tempo marcando uma nova.
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