mini contos
Então, aqui é o escritor da coluna "mini contos". O texto que se seguirá é a breve adaptação de uma das mais frias e degradantes histórias que já presenciei nos meus dias de existência. Boa leitura:
O advogado.
No primeiro ano da minha graduação, houve um professor que disse "o advogado é o primeiro juiz da causa". Se tal reflexão é sobrea e exata, sempre duvidei, pois o primeiro julgamento é feito pala consciência dos próprios litigantes. Má-fé ou boa-fé, isso é meramente subjetivo, assim como o sentimento de justiça que vem logo após ser proferida a sentença: aquele que tem as pretensões atendidas sentir-se-á justiçado mesmo que do outro lado uma alma carente seja lançada no abismo sem fim da miséria.
Nas jornadas da minha profissão, posso escolher entre patrocinar os interesses de alguém ou não. Este é o momento em que prolato minha decisão. Digo se acho, ou não, justa a causa que me é apresentada, mas engana-se quem pensa que sou o primeiro a julgar o mérito em análise. Muito antes que à porta do meu escritório estejam os litigantes, estes já passaram horas insones cogitando os prós e os contras da lide que estabelecerão. Será parcial, é óbvio, contudo, não titubeio em dizer, eles julgaram a si mesmos e chegaram a um parecer ético no âmbito da moral própria.
- Peço que nada omitam - disse, tentando decifrar a alma daqueles dois pretensos clientes e a criança que com eles estava. - Há assuntos íntimos que são dolorosos de se tocar, mas para uma melhor representação necessito conhecê-los.
O homem de chapéu e grande bigode e a mulher rechonchuda de vestido colorido como uma tarde de outono canadense assentiram. Estavam sentados diante da minha mesa, e entre eles, em pé como uma estátua de mármore, estava uma menina abatida. Eu pude ver aquilo dentro dos olhos da garotinha. Doze anos, a mesma idade que minha filha. Conheço aqueles olhos. Eles estavam com um brilho especial, mas não era animação nem alegria, estava mais para temor.
A ética me impede de divulgar nomes, mas os fatos que narrados a mim foram naquela tarde são como gás compactado dentro de um pequeno cilindro; tentando se expandir para os lados, alvoraçado, à procura de uma brecha por onde ganhar a liberdade, mesmo que disso resulte uma explosão dolorosa para muitos.
Careço de passar à posteridade este dilema que a mim foi divulgado em uma tarde de inverno. Aquela família tinha horário marcado para uma consulta. Não é costume da minha secretária minuciar o teor da demanda; nem posso exigir dela que o faça. Tudo que eu sabia naquele momento era o nome dos que me buscavam. Quando eles entraram pela porta do meu escritório, logo de imediato, vi que eram humildes. Dependendo do assunto, nem teriam condições de pagar meus honorários. Confesso que senti uma leve ponta de decepção dentro de mim, mas não deixaria de ouvir aquilo que tinha a me dizer.
-- Queremos um advogado pra tentar resolver a questão da Guarda da nossa subrinha - falou o homem, desviando de mim o olhar.
Direito de família sempre foi o forte do meu escritório. Não estranhei de imediato eles terem buscado a mim como o farol que evitaria o naufrágio das suas esperanças no mar da vida que suportavam manhã após manhã. Aquilo não era estranho. Contudo, a peculiaridade estava nos olhos daquela menina loura. Ela não sorria, na verdade, não parecia nem respirar. Aquela criança cinzenta assemelhava-se a uma recém-desperta de um sono cadavérico. Onde estariam as peripécias infantes, normais em outras crianças que adentravam meu escritório? Perguntei se a menina queria uma fruta, uma água ou um suco.
A pequena flor levantou o olhar, fitando as faces inexpressíveis dos responsáveis. Eles nada disseram, nem com palavras nem gestos. Mantiveram-se silenciosos. Aquilo deve ter sido uma resposta ensaiada. A menina nada pronunciou. Apenas baixou a cabeça e a meneou em negativo. Tal frieza deixou-me curioso. Onde estava o clima familiar entre aquelas pessoas? Independente da condição financeira, família é família.
- Então o assunto é "Guarda Judicial" - disse. - Por favor, digam oque está havendo.
O senhor de densos bigodes respondeu mais ou menos assim:
- Tudo começou há dois anos, quando a irmã da minha muié e o marido dela morreram num acidente de ônibus. Foi uma tragédia. Eles num tinham nada, só a criança. Pobre menina infeliz. - Subiu a mão atrofiada e afagou as bochechas da criança com uma ternura dissimulada. - Teria sido muito melhor eles terem levado ela também na viagem. Depois que os pais dela morreram, a coitada acabou indo morar com o irmão e a namorada dele... Não deu muito certo...
Perguntei se eles queriam tirar do irmão da menina a Guarda, mas o casal negou e o senhor continuou:
- Eles batiam muito nela. Achavam que eles eram selvagens nas correções que davam . A menina aparecia toda cheia de manchas rochas e marcas de vara nas costas. Os vizinhos estavam ameaçando de chamar a polícia... - O velho cerrou os dentes e bateu com o punho fechado na tampa da minha mesa. - Cretinos!
O irmão da menina é mesmo um cretino, eu pensei.
- Cretinos aqueles vizinhos! Eles não tinham nada com os assuntos da família. Mas não deu otra. Oito meses cuidando da menina. Antes que o conselho batesse na porta deles, mandaram a menina morar na casa da vó e do vô por parte de pai.
- Mas nem ela aguentou cuidar dessa peste - interferiu a mulher, ameaçando um beliscão na garota. - Aguentou quase um ano... Mas num teve jeito... Disse que essa fedelha só queria ficar na rua, namorando os piás... - Agarrou a garota pelos cabelos e puxou, a fazendo arquear-se para o lado. Aquilo me causou grande amargor na boca. A criança nem sequer gemeu, devia estar acostumada com tais tratamentos de indelicadeza. - Cê puxou a família do seu pai: aquele galinheiro!
Pensei em chamar tanto aquela mulher quanto a avó da criança de louca; afinal, onde já se viu pensar tais insanidades de uma criança de apenas 11 anos. Mas, atendo-me ao profissionalismo, detive-me em pedir que evitasse condutas violentas dentro do meu ambiente de trabalho.
- Desculpa doutor.
Pedi que continuassem a narrativa, e o senhor acatou:
- A vó dela num aguentou a menina em casa e mandou pra morar com o pai da minha muié. Mas essa pestinha começou a inventar histórias...
- Que tipo de histórias? - Quis saber.
- Histórias mentirosas... Dizia que o home tava passando a mão... Num deu pra ele aguentar a menina e mandou pra gente...
- E como posso ajudá-los?
Aquilo foi para mim um soco no estômago. Eu temia a resposta. O ser humano é o primeiro juiz das próprias causas. E no caso daquele casal, a justiça deles era abandonar uma criança. Eu muito duvidei que responderiam. Meu Deus, a criança estava ao lado deles. Como estaria a cabeça daquela garotinha?
- Ela num tem mais nenhum lugar pra ir... E nós num tamos mais dando conta dela. Queríamos ver se tem alguma forma dela ser aceita num abrigo ou adotada por outras pessoas...
Coloquei-me em pé. Barbárie! Mefistofélica família desnaturada!
- Para tais fins vocês não precisam de mim. Procurem a Vara de Infância e Juventude. - Sugeri, buscando conter a rispidez.
- Já procuramos. Mas eles querem abrir processo contra a gente, Doutor. Precisamos dum advogado. O Senhor é o melhor da cidade.
Abri a porta e os fitei, tentando esconder o repúdio.
- Peço que me perdoem, contudo não posso patrocinar tal causa. Posso indicar colegas de trabalho, mas eu mesmo não aceitarei a causa.
Assim que eles foram embora me coloquei a refletir se o meu julgamento foi correto. Até hoje não sei se recusar a causa foi uma decisão acertada. Talvez, por culpa dos meus escrúpulos, aquela menina não tenha saído do inferno a que era sujeita. É nessas horas que vejo os escrúpulos e a moral como uma armadilha; uma conselheira desleal.
Onde estaria melhor a criança: em um abrigo ou nos braços de uma família infame?
Refleti sobre isso por horas, segurando nas mãos o telefone. Pensei se ligaria para aquela família, oferecendo meus serviços, mas quando reavivei que a intenção deles era a impunidade e não o bem-estar da infante, guardei o aparelho, vesti meu paletó e sai para tomar uma. Fui o segundo, terceiro, talvez milésimo juiz desta causa. Na minha vã razão, fui justo.
E você, como julgaria tal situação?
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