Os Espinhos Inevitáveis
Navegando nas águas turvas da inércia, Elizabeth recorreu, para habilitar sua mente consciente, a estímulos externos, esfregando a carne dos pulsos nas cordas escarpadas que produzia um atrito doloroso. A insistência em distender as amarras drenaram os resquícios de vigor que lhe restaram da luta, reduzindo seus recursos físicos a nada mais que pequenos e expressivos gestos que a jogava para frente e para trás. Não pôde deixar de se associar, com desgosto amargo, com uma carcaça exposta pronta pro abate, disposta para quem desejasse adquirir.
Seu corpo não demorou a apresentar os estágios iniciais de fraqueza muscular que se acumulou nos braços estendidos em um ângulo pouco natural, irradiando para as demais áreas como os ombros e as costas. A ausência de estabilidade pela distância das pernas com o chão por estar pendurada fazia a pressão nas regiões superiores se intensificarem, acrescentando uma dose desagradável de mais pulsões doloridas, impedindo-a de prosseguir com as investidas de liberdade. Apesar do curto período impossibilitada de fugir, tudo nela gritava em agonia como se estivesse assim há dias.
Estalou, sem querer, a articulação do braço e rodopiou ligeiramente. Um artefato afiado lhe proporcionaria uma vantagem, além, é claro, uma oportunidade de escapulir.
É isso!, pensou em alarde.
Elizabeth costumava carregar, em sua bota, um canivete minúsculo para uso de emergência como fora ensinada. Se conseguisse se dobrar o suficiente para alcançá-lo, teria uma chance, ainda que minúscula, de cortar a corda e soltar as mãos. No entanto, arriscar atrair atenção indesejada com sua empreitada lhe renderia mais problemas que custariam sua integridade. Não se sustentava na ideia de que Robert, delirantemente caótico, ignoraria sua ação — aquela altura esperava que ele a dissecasse de maneiras inimagináveis.
Alongou as pernas, checando se a diminuta faca estaria ali, torcendo para que, no intervalo entre a interceptação e a prisão, não tenham descoberto seu segredo. Sentir o objeto duro lhe arrancou um suspiro discreto de alívio e, engolindo a queimação lancinante, se contorceu, as pernas se pressionando contra o peito e, em seguida, se erguendo sobre sua cabeça em uma posição de V digna de uma contorcionista dos circos que frequentava quando criança. Treinou para atingir esse nível de flexibilidade e usaria os métodos que forem necessários para sair da armadilha.
Só um pouco...
O ruído, um crack surdo, ecoou pelo espaço escuro, denunciando uma nova presença. Vibrando em um terror desvairado, Elizabeth chacoalhou levemente as pernas, o canivete escorregou para que conseguisse pinçá-lo com os dedos e roçasse a lâmina no material seco da corda, demoraria para fazê-la ceder e romper por fim. No entanto, dada as circunstâncias, o tempo era um luxo que não possuía e quanto mais demorasse mais difícil seria sair do cerco ameaçador no qual se encontrava. Retorceu os braços para afrouxar mais o amarro e parou ao escutar passos reverberando para si, abalando sua determinação por efêmero segundo.
— Isso só poder ser brincadeira! — Robert vociferou com os olhos inflados em ódio vil, direcionando a arma para as sombras. — Desgraçado, desgraçado! Apareça verme!
Eliza engoliu em seco e parou sua ousada façanha. Para benefício e prudência, escolheu mitigar os riscos e, no estado no qual se encontrava, Robert não hesitaria em puxar o gatilho para findar com sua vida.
— Gilden! Gilden! — berrou colérico. — Isso não pode estar acontecendo! Não pode estar acontecendo!
Passou os dedos trêmulos pelos cabelos, despenteando-os.
— Não pode acabar assim! — os olhos injetados se fixaram em Elizabeth. — Eu vou acabar com você primeiro, sua vadia! — ele riu de um modo quase psicótico, os olhos brilhando em satisfação perversa. — Eu queria rasgar você, te desmembrar e mandar suas vísceras como um lindo presente pra Margareth. — respirou fundo, o suor orvalhando na testa e deslizando pelo rosto rosado pela expressão beligerante. — Ah... Margareth, eu a faria tão feliz se tivesse aceitado, sido submissa.
— Não conhece a Margareth, ela não se submeteria a você, seu porco asqueroso!
— Cala a boca! — rugiu, mirando a arma sem estabilidade. — Não vão me pegar, vou sair ileso. Vou pisar em todos os insetos!
Elizabeth retorceu os braços para não virar um alvo fácil de um maluco enraivecido. Os braços latejaram pela falta de circulação, suas mãos estavam dormentes e as movimentações descoordenadas, os ombros estalaram o que ela considerou como um avanço.
— Eu vou te matar e vou fugir. É isso que farei.
— Consigo ver... Superioridade, prepotência, desprezo e, claro, o mais importante: o medo. — uma voz entoou na escuridão. — Não há nada mais sincero que as cores do medo, chega a ser belo contemplá-lo.
— Quem é!? — berrou girando nós calcanhares. — Responda!
— A cortesia demanda que antes de perguntar o nome, deve falar o seu. — o homem encoberto pelas trevas sussurrou com languidez, quase melíflua demais para os ouvidos. Elizabeth escutou o misterioso ser murmurar uma citação de uma das obras de Shakespeare, uma que não conseguia recordar o nome exato... MacBeth?
Não precisou apurar a audição para reconhecer o timbre, a eloquência e a leveza na forma que verbalizava. Somente uma pessoa, em seu meio, que fascinaria com o sopro melódico e um versado conhecido teatral: Jack Smith.
— Isso não é um circo, apareça!
— Certamente.
Jack emergiu das sombras em toda sua glória ostentando um sorriso tão pérfido que abalou Robert.
— O que...? Quem é você? O que está fazendo?
— Eu não estou fazendo nada... Por enquanto. — Jack fitou Elizabeth e a cumprimentou com um aceno educado de cabeça. — Lamento a demora, senhorita.
— Agora entendi... Você é o amante dela. Que patético. — escarneceu. — Acha que vir aqui, sozinho e desarmado foi uma grande ideia? Você é um completo idiota!
Robert disparou.
Elizabeth prendeu a respiração involuntariamente, temendo o desfecho.
Jack desviou do disparou com a sutileza de uma folha dançando sob a influência do vento frio do inverno, deixando um corte diminuto na bochecha dele.
— Isso é impossível... — riu. — Não tem como desviar! Você e ela são aberrações e vou matar os dois! Vou enterrá-los juntos para irem ao inferno de mãos dadas!
Elizabeth, ignorando os pulsos em carne viva, puxou um dos braços e lançou o canivete no dorso da mão esquerda de Robert. Com um rugido estridente, ele largou a arma e tentou arrancar a faca encravada no local.
— Gilden! Gilden! Gilden! — gritou imperativo.
Uma silhueta escura de passadas pesadas e feições duras se encaminhou para zona na qual a luz inconstante atingia, revelando um homem alto feito uma muralha desgastada com cicatrizes que cobriam cada centímetro do corpo musculoso. Jack o mirou com indiferença, não esboçando nenhuma emoção evidente com a nova companhia, porém manteve o olhar vigilante sob ele.
Duas forças antagonistas se opondo, Gilden ergueu a cabeça e fitou Elizabeth e, em seguida, para Jack como se avaliasse os sinais do serviço antes de decidir que iria fazer. Ele emitiu um longo suspiro, estalou o pescoço e disse, em um tom quase frigido:
— Lamento pelo ataque, não costumo bater em mulheres. Mas trabalho é trabalho.
— Para de falar merda! Eu te paguei, você tem que fazer o que eu mandar, escutou? — Robert ganiu exasperado.
— Você é um homem interessante. — Jack disse cauteloso. — Calmaria, eu posso ver.
Elizabeth usou a mão livre para segurar a corda e não despencar enquanto realizava a proeza de romper a última liga, observando a tensão evidente entre os dois homens. Em um manejo veloz, Jack lançou uma faca na estrutura torcida da corda com força e precisão o suficiente para rasgá-la, dando a mulher a oportunidade de impelir o corpo para frente e saltar, um pouco desajeitadamente, entre alguns caixotes velhos largados que serviram de amortecedor para o impacto.
— Não! — Robert gritou com ódio venenoso crescendo.
Jack se interpôs no caminho de Robert ao vê-lo se prontificar a ir atrás de Elizabeth.
— Jack. — a ouviu chamar.
— Atrás. Há uma sala atrás que deve ter outras vítimas. — informou, ajeitando as luvas pretas. Abandonando o ar indolente, Jack adotou uma postura de diversão extravagante, um sorriso capaz de estremecer até mesmo a criatura mais vil.
— Eu não posso te deixar sozinho com...
— Você precisa. — ele interrompeu, olhando-a de soslaio. — Não se preocupe com nada a partir de agora. Apenas faça isso, senhorita.
Sem alternativa e temendo atrapalhá-lo, Elizabeth correu, entre tropeços, até uma porta com um aviso de “entrada proibida”, irrompendo sem cerimônia pela sala e sendo recepcionada por uma visão paralisante. Coladas nas paredes havia uma coleção macabra de fotografias, de um lado, mostrava as vítimas vivas em poses espontâneas como se não soubessem que estavam sendo fotografadas. Na parece oposta, se encontrava uma versão distinta dessas mesmas senhoras desfalecidas e em estados degradadamente violentos demais para conceber. Para seu total assombro, viu uma foto de si mesma saindo de uma loja.
Recordou desse dia e do quão imersa em pensamentos estava para não notar interações estranhas em seu entorno. A maioria das mulheres que Robert catalogou nessa lista asquerosa se tratavam de mulheres da periferia que não tinham recursos financeiros tampouco o respaldo das autoridades. A idade das presas variava muito entre 20 a 47 anos.
Entorpecida pelo horror visceral e a repulsa, vasculhou mais o espaço confinado e descobriu os utensílios e materiais que Robert se equipava para dar um fim nessas pobres almas e, depois do seu entretenimento doentio, se ocupar de desovar os corpos. Leu o que aparentava ser uma lista com nomes e um deles reconheceu de imediato com o frescor do caso em sua mente “Elizabeth Jackson”, uma das mulheres identificadas do “Assassino do Torso”.
Um gemido, baixo e entrecortada, despertou Elizabeth do torpor difuso que enublou momentânea sua razão, obrigando-a a investigar a origem do som. Deitada sobre uma fina camada de lençóis sujos, uma mulher agonizava; ao checar sua temperatura notou a febre alta. A adrenalina jorrou pelo seu organismo e procurou o necessário para tentar, ainda que em vão, salvar a mulher.
— Ei, qual é o seu nome? — sussurrou querendo trazer a mulher para a realidade, embora estivesse plenamente consciência que, aquela altura, seria inútil. — Por favor, me escute. — examinou superficialmente o corpo da mulher, vendo o abdômen parcialmente aberto. — Droga.
Detestava apelar para obter uma resolução, mas com escolhas escassas e o tempo discorrendo com o peso de uma tragédia, Elizabeth segurou, com delicadeza, a cabeça da mulher e se concentrou para ver os derradeiros momentos da senhora que beirava entre o mundo real e a morte.
O poder a acertou de todas as formas possíveis, a corrente de memórias a golpeou e, tonta, selecionou a que precisava: ela era uma moça pobre que trabalhava como doméstica quando foi abordada por Robert que a iludiu com trabalho e uma moradia segura. Após levá-la, ela foi raptada e chegou ali, onde ele decidiu o seu destino decretando sua morte.
Elizabeth grunhiu com o choque atordoante e recuou, sendo amparada por braços familiares.
— Precisamos... Foi ele... Matou essas mulheres... — balbuciou. — Ele faria o mesmo... Comigo. Temos que ajudar essa mulher... Se não fizermos nada...
— Durma. Eu cuidarei do resto. — Jack sugeriu gentilmente. — Durma, doce Elizabeth.
Ele falou meu nome, pensou antes de cair na escuridão reconfortante.
“Hush-a-bye, baby, on the tree top”
Uma voz carregada de ternura cantava, ainda que não estivesse plenamente ciente do mundo que a rodeava, o canto lhe trouxe uma paz profunda, afugentando o terror dos pesadelos que se espreitavam a margem da consciência.
“When the wind blows the cradle will rock;”
Conhecia a música, era uma canção de ninar e alguém a estava embalando... Mas quem?
“When the bough breaks the cradle will fall;”
Elizabeth se remexeu em meio ao sono desejando descobrir quem lhe preenchia com doçura, que amansava seu coração tão ferido.
“Down will come baby, cradle and all.”
O despertar fora ofuscante sobre um fulgor sereno e inócuo e um sentimento estranho de irrealidade, sem saber como processar os estímulos externos sem se sobrecarregar. Se habituando a própria movimentação, Elizabeth fitou as faixas em seu pulso.
A visão fora o bastante para recobrar as lembranças do sequestro e das palavras de Jack ao vir em seu socorro.
— Oh, que bom que acordou, senhorita Borton. — a enfermeira saudou com um sorriso simpático.
— Onde estou? — perguntou atônita.
— No hospital. Não se preocupe, descanse mais um pouco.
— Hospital... Como vim parar aqui?
— Oh, um cavalheiro. — a enfermeira esclareceu. — Ele pagou todas as suas despesas e de outra senhora.
Eliza respirou aliviada por ele ter salvado a pobre mulher.
— Foi tão gentil, ficou com a senhorita quase que o dia todo, zelando pelo seu sono. Infelizmente ele teve que partir, mas avisou que voltaria.
— Jack... — resfolegou com o coração cheio.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro