Capítulo 24
O ataque não vem. Espero, em silêncio. Não me atrevo a mover um músculo, prendo a respiração apenas para ter certeza de que não emito qualquer ruído que me ponha em uma situação pior do que estou agora. Ainda posso sentir o seu gosto em meus lábios. Doce, como imaginei que seria. Minhas mãos ainda estão em seus braços, ela ainda repousa em meu colo, uma mão no pescoço vazio onde antes habitava o colar. E ela me olha, me encara com olhos ferinos que fazem com que eu me sinta como uma criança insolente que foi pega no meio de uma travessura. Quero me desculpar, mas não me atrevo. O ataque ainda não vem.
Seus longos fios castanhos estão embaraçados e sujos pelos dias de maus-tratos que esse lugar a forçou a viver. Seu vestido, antes impecável e perfeitamente arrumado, agora mostra o peso do tempo. Falta um pedaço da barra que ela cortara para fazer uma bandagem. Qualquer outra mulher da realeza teria voltado, aos prantos, para casa, mas ela está aqui. Firme como uma rocha, firme como no dia de sua Cerimônia. Não existe Kya sem coroa, e ela a veste mesmo quando o adereço não esteja consigo. Portar a coroa é uma postura de vida, e não há quem o faça melhor do que minha rainha.
- Quando? – Kya pergunta, quebrando o silêncio esmagador que começava a consumir minha alma. Não entendo sua pergunta, contudo. Permaneço em silêncio. – Você recusou minha proposta de casamento por pensar que eu estava completa e perdidamente apaixonada por você e não queria manipular meus sentimentos. Mas foi naquele mesmo dia que você se livrou da postura de cavalheiro honesto e superior que não se apaixona à primeira vista e começou a me cortejar. Então quero saber quando. Quando, entre nossa conversa no pé do monte e você ter decidido aceitar minha proposta algumas horas após a leitura da Profecia, quando você decidiu que eu valia os seus sentimentos? – Ela pergunta, fazendo-me engasgar em minhas próprias palavras não ditas.
De todas as perguntas possíveis, jamais imaginei que seria essa a primeira a ser proferida por ela. Por que você me traiu? Por que jogou fora o cordão de meu pai? Foi esse o único motivo de você ter me beijado? Você me enganou todo esse tempo? Essas eram perguntas esperadas e plausíveis. Mas não essa. Sequer sei por onde começar a responder o que ela quer saber. Há resposta para isso? Digo, como é possível saber o exato momento em que seus sentimentos venceram minha razão? Foi ali, no pé daquele morro, quando ela gargalhou ao dizer que não estava apaixonada por mim, que eu não pude evitar de me encantar com o tamanho de seu comprometimento para com seu Reino a ponto de estar disposta a oferecer sua vida e futuro a um homem que não amava? Foi quando vi em seus olhos a incredulidade quando disse que eu seria o representante de meu Reino a cumprir a Profecia ao seu lado? Ou o momento em que eu decidi que não confiaria sua vida a ninguém além de mim mesmo? Por que eu decidi isso?
Talvez tenha sido quando atravessamos aquele maldito rio que quase a tirou de mim, ou quando as Ruínas desabaram e ela sumiu por dias. Talvez eu tenha me apaixonado à primeira vista como dizem todos os livros de romance, empoeirados na grande biblioteca do Castelo. Talvez tenha começado a amá-la antes mesmo de pousar meus olhos sobre seus olhos.
Eu não sei.
- Eu não sei. – Respondo. É a única resposta honesta que posso dar, e ela concorda com a cabeça. Silêncio faz-se por um minuto mais e desespero começa a corroer minha alma.
- Nunca mais chegue perto de mim de novo. – Kya diz. Pisco apressadamente e muito mais vezes do que o necessário, sinto minha cabeça girar. Espero por gritos, tapas, ameaças de morte, revolta, raiva, acusações. Não esperava por... nada. A completa ausência de emoções que circunda sua voz, o vazio em seu olhar e a frieza com que ela diz essas palavras cortam minha alma em uma profundidade muito maior do que jamais achei ser possível.
- Kya... – sussurro, sem ter certeza de quais são as palavras seguintes a serem ditas. Ela se inclina em minha direção, seu rosto está tão próximo do meu que posso sentir as vibrações de sua pele me tocarem. Fecho os olhos e sinto seu cheiro, sua presença dominante.
- Vossa Majestade. – ela sussurra contra meu rosto, seu hálito quente me acertando como navalhas afiadas. Com dificuldade, ela se retira do meu colo, e não me movo. Ameaço estender a mão para ajudá-la, mas sou impedido.
Vejo Kya mancar pela ponte, com dificuldade andar sobre o chão de madeira envelhecida, apoiando na margem, de costas para mim. Não me movo. Não em direção a ela, ao menos. Recolho o que ficou perdido, espalhado pelo chão, e arrumo rápida e desleixadamente de volta na bolsa. Levanto-me e espero. Quero desesperadamente ir ao seu encontro, mas sei que essa é a pior ideia possível.
Não tarda para que Laurunda e Cathal retornem e me encontrem paralisado, encarando-a.
- Onde ela está indo? – Laurunda pergunta e, em resposta, apenas balanço a cabeça. Não tenho forças para responder algo que sequer sei a resposta. Ela suspira. – O que foi que você fez?
Dou os ombros. O que foi que eu fiz? Arranquei dela e arremessei em águas profundas a última lembrança de seu pai? Essa parece ser a resposta correta, mas algo no fundo de minha alma me diz que não é esse o motivo pelo qual Kya agora anda sozinha para longe de mim. O que eu fiz foi quebrar sua confiança. E não tenho certeza se há como voltar disso.
Lembro o instante exato em que ela apareceu com o colar em seu pescoço e uma onda de familiaridade me atingiu. Não o reconheci naquele momento, apesar de uma imagem desfocada pulsar no fundo da minha memória. Quando ela desapareceu após o desmoronamento das Ruínas e voltou, contando que uma alma misteriosa ordenou que ela o queimasse, foi ali, então, que lembrei.
Lembrei do dia em que eu estava sorrateiramente brincando pelo Castelo do Reino do Sul durante alguma celebração para a qual havíamos sido convidados, perto do escritório de meu pai, área completamente proibida para crianças – coisa que eu era. Lembrei de estar procurando por Valentina, uma menina com quem fiz amizade na época, debaixo da grande mesa de madeira escura, quando ouvi vozes e, assustado, me escondi.
"Acha que vão acreditar nessa história?", uma voz masculina perguntou. Eu estava detrás de uma grossa cortina e me inclinei, apenas o suficiente para que pudesse espiar por entre frestas do tecido grosso e empoeirado. Ouvia passados apressados e o som se alguém revirando gavetas. Vi quando uma pequena caixa de madeira foi posta sobre a mesa por entre os dedos de uma mulher.
"A mãe das princesas era amiga íntima da família. Se dissermos que ela os presenteou com esse colar antes de sua morte, o Rei do Norte não tem motivo algum para desconfiar. E mesmo que desconfie, não temos outra escolha. Precisamos que esse colar esteja no Norte, e precisamos agora. Você estava lá e ouviu tão bem quanto eu. Ele ordenou, vamos obedecer. Já mantivemos essa joia aqui por tempo demais de qualquer forma", a mulher respondeu.
Mal consegui ver os rostos das pessoas que conversaram, estavam fora do meu campo de visão. Mas consegui ver o colar quando a caixa foi aberta. A joia brilhava, uma luz violeta profunda cintilando pelo pingente em forma de espelho. O homem sussurrou algo inaudível e a mulher retornou o colar para a caixa.
"É melhor que isso funcione. Vamos estar em maus lençóis se alguém descobrir isso. Você, boce fechada. Não esqueça que a punição para traição é morte. Não quero minha linda cabeça pendurada em uma forca", a mulher anunciou antes de os dois saíres da sala. Por dias, sonhei com aquela cena, e por meses não consegui tirar a imagem de minha mente.
Traição contra quem nunca descobri. Mas agora, nesse momento, com tudo que aconteceu, tenho certeza que Kya está no meio de tudo isso. Não sei se direta ou indiretamente, mas não posso arriscar.
Espero não ter cometido um grande erro por excesso de cautela, mas nada a respeito desta Profecia parece claro ou concreto. Meu maior erro talvez tenha sido agir sem antes tentar convencê-la a me dar razão, mas verdade seja dita, a mim falta clareza sobre o que fiz e sobre minha motivação para ter feito. Custo a acreditar que ela se desfaria de um presente do pai baseado apenas na minha lembrança incerta de um evento que ocorreu há quinze anos. Talvez eu apenas esteja tentando justificar minhas ações. É difícil saber. O que sei é que agora é tarde demais para voltar atrás.
Começamos os três a andar e facilmente alcançamos Kya, que está parada logo ao fim da ponte. Estou a ponto de perguntar o que ela está fazendo quando vejo dois homens caminhando em nossa direção. Instintivamente, ponho-me à frente dela, separando-a dos invasores desconhecidos. São as primeiras pessoas que vemos desde que cruzamos a fronteira e não estou disposto a permitir que toda essa jornada tenha sido em vão. Ouço Kya bufar com a minha intromissão e sei que ela quer gritar aos quatro ventos que não precisa de proteção, mas, dessa vez, não vou me mover. Já cultivei sua raiva por mim, não há mal nenhum em adicionar um motivo a mais à lista se isso significar que ela vai sair viva daqui.
Vejo Cathal se posicionar ao outro lado dela e agradeço silenciosamente. Os dois homens que nos alcançam são altos, talvez mais altos do que deveriam ser. Com pele de coloração amendoada e adagas em punho, eles cruzam as mãos à frente do corpo e encaram Kya. Ignoram por completo a minha presença, bem como a de Cathal e Laurunda. Não nos dirigem o olhar ou qualquer palavra. Ficam em silêncio por tempo o suficiente para que eu, inquieto com a aproximação, comece a temer que, finalmente, o momento em que nossas vidas serão postas em perigo real tenha finalmente chegado. Pergunto quem são e o que querem, e recebo apenas silêncio em resposta. Quando decidem finalmente falar, é à Kya que se dirigem.
- Estávamos esperando por você, Majestade. Por favor, nos acompanhe.
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