6
Quando o relógio bate oito da manhã, já estou sentada na beira da piscina. Não porque acordei cedo, mas simplesmente porque não dormi, e não tem jeito melhor de esconder olheira do que cobrindo metade do rosto com óculos de sol gigantescos.
Depois de trocar meia dúzia de mensagens com Nicole e suspirar satisfeita porque ela vai chegar em algumas horas, relaxo na espreguiçadeira e aproveito o sol. Ajeito o biquini para garantir que o bronzeado esteja perfeitamente no lugar. A ausência de crianças berrando ao redor da piscina me agrada, mas o silêncio não dura muito, porque logo ouço passos se aproximando.
Arrumo-me no lugar e escancaro o meu melhor sorriso.
— Bom dia — cumprimento Túlio quando ele para de pé ao meu lado, dentro de uma roupa um tanto mais despojada do que das últimas vezes que o vi, mas ainda assim profissional o suficiente para eu saber que ele não tem qualquer pretensão de sentar aqui e pegar um sol comigo.
Que pena!
Ele puxa a espreguiçadeira do lado para mais perto, sentando-se até que seus joelhos quase me toquem. Túlio inclina-se na minha direção e me beija, pegando-me de surpresa. É inevitável comparar esse toque com outro beijo, recente demais, e a boca de Túlio simplesmente parece errada.
— Bom dia — diz contra minha boca.
Desvencilho-me um pouco ao sentir sua mão subir pela minha barriga despida e parar muito perto do meu seio.
— Comporte-se — brinco, cobrindo sua mão. — Estamos em público, tenho uma imagem a zelar — comento com um sorriso tranquilo no rosto.
A cara de pau aqui não pensou nisso noite passada. Claro que não. Hipocrisia é só um dos meus muitos sobrenomes. A verdade é que o toque dele é desconfortável, um tanto invasivo. O de Miguel não é, nunca foi, jamais será, não importa o quanto eu o odeie.
— Tenho alguns compromissos hoje — diz, a mão ainda onde está, os dedos brincando um tanto intimamente demais com a borda da parte de cima do biquini. É verdade que ele fez algumas boas investidas durante o jantar na noite passada e ficou mais do que claro que esperava terminar a noite na minha cama, mas não imaginava uma atitude tão firme assim, do nada. — É provável que não consiga te ver muito amanhã, só preciso confirmar a festa.
Pisco algumas vezes, um tanto incomodada demais, o que faz o sorriso no meu rosto ser muito difícil de manter. Mas mantenho. Anos de práticas não serão jogados fora assim, tão facilmente.
— Estou contando os minutos — minto descaradamente. Parece agradá-lo o suficiente.
— Ótimo — responde. Puxa minha mão e deixa um beijo. — Faremos nossa primeira aparição pública oficial, então — decreta.
Túlio saca a carteira e puxa um cartão. Não um cartão qualquer. É preto. Daqueles que garantem passe livre ilimitado para qualquer coisa, viagens de primeira classe, assistente pessoal para te indicar os melhores restaurantes da região e produtos exclusivos para os clientes vip. Sei disso porque tenho um igualzinho na minha bolsa. E é aqui que o tom da conversa está determinado: Túlio não está tentando me conquistar. Ele tentou ontem e não conseguiu o que queria, então, agora estamos falando de negócios.
Ah, vejam só quem virou mesmo um produto à venda.
Túlio aproxima-se novamente e alcança minha boca mais uma vez.
— Por que não me deixa te presentear com um par de brincos que combine com o vestido que vai usar? — pergunta, arrastando os lábios nos meus.
— Obrigada — agradeço com um sorriso falsamente encantado.
— Ah, eu que agradeço, Lorena — murmura, mordiscando minha boca. — Você tem se mostrado perfeita. Valentim não mentiu quando disse que você seria ideal — constata. — Foi um tiro certeiro nos apresentar. Seu pai sabe o que faz.
E como sabe.
— Tenha um ótimo dia, querida — conclui, lançando-me um olhar luxurioso antes de se levantar. — Mal posso esperar para selar nosso acordo.
Giro o cartão nas mãos e assisto-o se afastar. Quando sai do meu campo de visão, quebro o plástico ao meio.
Meu destino parece estar definido. Túlio parece decidido a fazer de mim a próxima senhora Monteiro Diniz. Posso apostar todos os dedos da minha mãozinha de unhas bem-feitas que não vai demorar mais do que uma semana inteira para que eu tenha o primeiro vislumbre daquele tal anel de diamantes no meu dedo.
Uma sensação conhecida me atinge. A mesma que aparece sempre que isso aqui deixa de ser uma caçada divertida e platônica e começa a se tornar real.
Livro-me dos óculos e mergulho na piscina. Só lembro de me preocupar com o estrago que o cloro vai fazer no meu pobre cabelo depois que já estou submersa. Paciência. Nicole vai ser obrigada a passar o restante do dia comigo de molho com pepinos nos olhos e óleo de coco no cabelo.
Não sei quanto tempo fico na água, mas saio em um pulo quando vejo a coisinha loira mais linda do universo sentada com um coquetel na mão.
— Não se atreva a me abraçar molhada desse jeito — Nicole diz, estendendo um dedo para mim quando me aproximo.
— Você é má comigo — dramatizo, roubando sua bebida e sentando-me novamente na espreguiçadeira.
— Você ficou trancada aqui ontem o dia todo ou já foi explorar o mundo lá fora? — Nic pergunta, distraidamente mexendo no celular. — Ouvi dizer que tem uma boate ótima por perto.
Tomo um gole da bebida e arqueio uma sobrancelha para ela.
— Que horas nós saímos?
Depois de horas de fofocas e massagens nos pés, entramos no local barulhento de todos os jeitos certos. Nic não é tão festeira quanto eu, mas, quando decide me honrar com a sua presença, não se importa nem um pouco com convenções sociais: fica bêbada e dança como se o mundo fosse acabar amanhã.
Não lembro a última vez que fiz isso, afinal, minha vida inteira é uma negociação constante. Nós sempre frequentamos lugares exclusivos, caros e destinados a outra pessoas que frequentam o mesmo mundo que eu. Sendo assim, minha imagem de princesinha impecável precisa ser mantida a todos os momentos. Não queremos nenhum marido em potencial bancando o troglodita machista do século passado e não me considerando uma boa esposa em potencial porque estou bêbada e batendo a bunda no chão na pista de dança, não é mesmo? É sim.
Mas, agora, já sentindo o peso do diamante maior que a minha cabeça que sei que já está destinado a encontrar meu dedo no máximo nas próximas semanas, decido que não preciso sair à caça nem ser a garota-modelo do papai, então decido me juntar à minha ovelha negra favorita.
— Como você tem tanta certeza de que esse cara já decidiu que vai te levar pro altar? — Nic pergunta, brindando o copo no meu.
— Liguei para o papai — explico. — Pelo visto, Túlio teve uma longa conversa com ele sobre o acordo pré-nupcial que aparentemente o advogado dele já está redigindo — repondo, levantando minha taça em um cumprimento.
Nicole franze o cenho.
— Espera, sem falar com você? — questiona, e concordo com a cabeça. — Isso é um absurdo, Lorena. Nem ele nem papai estão te dando nenhum direito de escolha. Estão te tratando como uma mercadoria.
Sorrio e aperto o nariz arrebitado dela.
— E é exatamente isso que eu sou, chérie — brinco. — Papai decidiu que meu objetivo de vida seria arrumar um casamento que fosse bom para a família quando eu ainda era uma menina. É só como as coisas são — explico, dando de ombros.
Nicole revira os olhos.
— Me poupe, Lorena. Você pode simplesmente não fazer isso. Aliás, já fez muitas vezes. Já perdi a conta de quantas vezes você "quase fisgou" um ricaço e arrumou algum defeito imperdoável nele nos quarenta e cinco do segundo tempo — ela aponta, em uma acusação descarada.
Dou de ombros e desvio os olhos, tentando fugir da pergunta implícita. Quando a olho novamente, já estou vestindo meu bico dramático e piscando meus enormes cílios em uma manha descarada.
— Mas aí papai vai cortar meu cartão de crédito — choramingo. — O que eu vou fazer da minha vida sem meu cartão de crédito?
— Não sei, arrumar um emprego de verdade? Agir como a mulher de vinte e sete anos que você é? Parar de se comportar como se nossos pais pudessem decidir seu futuro desse jeito?
Dispenso-a com a mão, mas Nicole não desiste.
— Eu lembro quando você era mais nova, Lola. Vivia enfurnada na cozinha, gritando aos quatro ventos que não via a hora de ser velha o suficiente para estudar para ser uma chef renomada. O que aconteceu com aquela garota?
— Eu era idiota e inocente — minto.
Não sei bem por que minto, mas por algum motivo não quero admitir a verdade. Papai se ofereceu para me comprar um restaurante quando bati pé e disse que era o que eu queria, mas deixou claro que eu jamais seguiria essa insanidade. Que já bastava uma filha rebelde que se recusava a carregar o nome da família e honrar suas tradições. Que ele não deixaria que a família toda fosse manchada por duas garotinhas impertinentes.
Eu poderia ter feito o que Nicole fez, é verdade. Saído de casa aos dezoito, negado qualquer controle que eles pudessem exercer sobre mim, arriscar minha vida lá fora. E eu estava tentada a fazer isso. Tinha planos, com Miguel. Ele insistia para que simplesmente fosse com ele, mas nunca achei que pudesse. Nunca achei que fosse boa o suficiente para isso. Cresci ouvindo que deveria preservar esse rostinho bonito que tenho e fazer bom uso dele enquanto tivesse tempo, que não deveria perder tempo com bobagens. Demorei anos demais para reunir a coragem e arriscar, e, quando o fiz, era tarde demais.
— Eu vou dançar — aviso, bebendo um longo gole da bebida doce, forçando-me a tirá-lo da cabeça.
Nicole se junta a mim um segundo depois e gastamos boas horas em uma cumplicidade que sempre tivemos. Ela é uma das poucas pessoas com quem me permito ser... eu.
Quando estou com os pés doendo e certa de que minha maquiagem não existe mais, entre risadas e implicâncias, começamos a andar de volta para a pousada. Nicole carrega os saltos nos dedos e pula igual uma menina animada, tagarelando sobre o namorado. Quando estamos chegando na entrada muito bem iluminada e decorada da pousada, toco seu antebraço.
— Falando em namorado... Por que você não me falou que Miguel trabalha aqui?
Vejo seus olhos arregalarem e um sorriso aberto cortar seu rosto. Nic dá dois pulinhos no lugar e bate palmas: a prova cabal de que está completamente bêbada.
— Vocês já se encontraram? — pergunta, parecendo entusiasmada demais. — E você está fazendo o que aqui que não está enroscada no pescoço dele, sua idiota?
Reviro os olhos e balanço a cabeça, incrédula. Passo a mão pelo cabelo e dou um tapa no braço dela.
— Você perdeu o juízo? Tem o que na cabeça que achou que era uma boa ideia me colocar no mesmo lugar que aquele filho da puta?
— Filho da puta que você ama — ela aponta, erguendo um dedo como quem pede permissão para falar. Aproximo-me dela e aperto suas bochechas com as mãos.
— Nic, amor, você bateu a cabeça? — pergunto.
Ela revira os olhos e tira minha mão de cima dela.
— Lorena, vocês estavam juntos desde que você tinha o que, dezesseis anos? — pergunta, erguendo uma sobrancelha espertalhona.
Quinze.
Nicole é a única que sabe disso. Miguel apareceu na minha vida quando o pai dele foi contratado para trabalhar na casa dos meus pais. Seu Tenório era viúvo, então o filho adolescente foi morar com ele na casa dos patrões. Coisa de uma semana depois, nós estávamos juntos.
Papai sempre ergueu as mãos aos céus por eu, diferente de Nicole, nunca aparecer em casa com namorados aleatórios e claramente inapropriados. Sempre encheu a boca para dizer que a princesinha dele era uma menina direita, comportada. Mal sabia que a menina comportada dele passou boa parte da adolescência escapando no meio da noite.
Foram anos nesse relacionamento escondido, clandestino, que era a melhor parte da minha vida. Foi somente quando Nic saiu de casa que as coisas começaram a ficar complicadas. Mas ela não sabe disso. Ninguém sabe. Miguel foi embora sem saber.
— Estávamos juntos, irmãzinha querida — corrijo, dando um peteleco na ponta do seu nariz. — No passado. Existe um motivo para ser no passado.
Nicole faz uma careta debochada.
— Passado, Lorena? Jura? Tem no máximo uma semana desde que você se derreteu nele pela última vez — debocha.
Franzo as sobrancelhas, puxando da memória, incapaz de encontrar.
— Do que você está falando, sua doida?
— Na Tiffany. Quando a gente foi comprar o anel que você cismou que queria para a virada do ano porque você é a pior irmã do mundo e tem coragem de usar coisas que não sou eu que desenho — ela diz, apontando um dedo acusador para mim. — Acha que não vi você passeando por aqueles cordões estilo militar que ele usa?
Abro a boca para negar e dizer que Miguel não patenteou aquela porcaria, que ele não é o único a querer bancar o bad boy tatuado com aquela plaquinha pendurada no pescoço, mas é inútil, então poupo saliva.
— E daí? — pergunto, dando de ombros.
— Daí que não entendo por que você não engole o orgulho, não desce do salto e vai atrás dele. Não entendo por que continua se comportando como se fosse uma pistoleira descerebrada tentando dar o golpe do baú quando já é herdeira de uma das maiores fortunas do Brasil.
Mordo a língua para não responder. Sua acusação não devia doer, afinal, é verdade absoluta e indiscutível. Mas dói. Talvez eu estivesse esperando que, apesar do meu esforço digno de Oscar para passar essa imagem de mulherzinha fútil e interesseira, Nicole fosse capaz de ver por trás do meu teatro. Mas ela não é.
Então, cumpro meu papel, sigo o roteiro e banco a pistoleira que pelo visto eu sou.
— Porque aquele cordão que eu estava olhando custava oito mil e novecentos reais, e os que o Miguel usa custam no máximo vinte. Amor não enche barriga, irmãzinha, nem compra Prada. — Dou de ombros, contando com a escuridão da noite mal iluminada pela luz errática de alguns postes para encobrir meus olhos marejados. — Além do mais, foi ele que terminou comigo.
Nicole solta uma risada ácida, cheia de julgamento e decepção.
— E pelo visto ele fez muito bem em te largar — diz, sacode os saltos para mim e entra na pousada.
Ela tem razão. E se eu fosse uma pessoa melhor, deixaria as coisas como estão. Mas, com a perspectiva de estar prestes a assinar um acordo pré-nupcial em breve e a certeza de que essa é provavelmente a última vez que o verei, mais uma vez decido só ser uma pessoa ruim, egoísta e mesquinha.
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