10
— Seu telefone está tocando — Nic avisa, balançando o aparelho. Faço um biquinho, e ela revira os olhos antes de se levantar da espreguiçadeira e vir até onde estou, dentro da piscina com os cotovelos apoiados na borda.
Um ano novo começou.
Voltamos para a pousada no meio da madrugada; Miguel, correndo para resolver o pequeno caos que se formou na sua ausência. Quando finalmente acabou seu turno, bateu no meu quarto e não dormimos mais.
Sabe o que mais não fizemos? Acertou quem disse conversar.
Todos os mal entendidos ainda existem. Todas as questões pendentes ainda estão aqui. E eu estou morrendo de medo do que vai sair quando a gente sentar a bunda para conversar.
Por hora, ele está apagado na cama, exausto. Com essa loucura de fim de ano, Miguel estava trabalhando há quase três dias direto, e ainda teve que lidar comigo, coitado. É de sugar as energias de qualquer um. Então, deixei-o dormindo e vim para a piscina quando Nic me mandou uma mensagem.
Sei que o barraco está armado quando apanho o aparelho que toca ferozmente e vejo o nome de papai na tela. Respiro fundo e atendo.
— Boa tarde! — cumprimento com um tom alegre tão falso quanto minhas unhas postiças.
— Túlio me ligou — diz, indo direto ao ponto. Mordo o lábio e espero. — O que diabos aconteceu?
—Sobre isso... — respondo, sonsa como só eu sei ser.
Ouço um suspiro irritado do outro lado da linha e sei que ele quer me esganar. Uma pena, não é mesmo?
— É o quinto que você consegue fazer a proeza de assustar, Lorena — reclama, a insatisfação descarada na sua voz. — Até quando você vai continuar com isso?
— Pai...
— Não. Presta bastante atenção: arrume um jeito de consertar seja lá qual foi a papagaiada que você fez com Túlio.
Há uma ameaça clara na sua voz, contudo, pego-me me perguntando qual é, de fato, a ameaça que está sendo feita. Então, olhando para minha irmã, distraidamente folheando uma revista, pergunto:
— E se eu não fizer isso?
Há alguns segundos de silêncio. Não lembro qual foi a última vez que o questionei. Talvez nunca o tenha feito. Papai decidiu que assim seria, que eu era parte do patrimônio da família, disponível para ser negociado a quem oferecesse o maior lance e, por mais que tenha odiado a ideia e estivesse procurando uma força de me livrar dessa situação, nunca realmente me rebelei abertamente. Nunca consegui enfrentá-lo de verdade, porque sempre fui criada para ser obediente. Não boa, nem justa, nem correta. Obediente. O único que era capaz de despertar um fogo rebelde em mim era Miguel e, depois que ele foi embora, simplesmente parei de tentar.
— Alguém precisa trazer um casamento descente para essa família, Lorena. Se não você...
— Nicole — digo, e ela me olha, atraída pelo seu nome. — Você diz isso, mas eu estou aqui me perguntando como exatamente isso vai funcionar. Quer dizer, ela é maior de idade agora, não é como se pudesse ser obrigada a nada.
Vejo o cenho da minha irmã franzindo e ela aponta para si mesma com uma interrogação clara no olhar. Não digo nada, aguardando uma reação. Silêncio se estende na ligação e percebo que talvez não tenha passado de um belo blefe. Talvez ele realmente não tenha tanto poder assim nessa situação quanto imaginei.
— Posso deserdar vocês duas — declara por fim.
Meneio a cabeça, incapaz de questionar isso. Ele pode. Só que, ao contrário do que todo mundo pensa, não me importo tanto assim com isso. Eu sempre quis trabalhar, caramba. Ele quem nunca permitiu. Ele quem me jogou nesse cargo simbólico na empresa que serve apenas para que eu tenha que ir em reuniões com clientes e possíveis investidores para cruzar as pernas, mostrar o decote e conseguir um bom acordo com a empresa.
— Pode — digo, olhando para minha irmã, que ainda me encara confusa. — Me dê um segundo, sim?
— Lorena, o que...
Tiro o telefone do ouvido e me dirijo a Nic.
— Papai está ameaçando te deserdar se eu não me casar com Túlio — digo.
Ela me olha por um segundo a mais e, mesmo claramente sem entender o que está acontecendo, faz o que sempre me faz amá-la e saber que sou muito sortuda por tê-la na minha vida:
— Que deserde então — responde.
— Certo. — Pego o telefone novamente a tempo de ouvir algumas reclamações de papai. — Pode começar a mudar o testamento — aviso e encerro a ligação.
O celular em minha mão começa a tocar de novo imediatamente e quase posso sentir a raiva emanando através do aparelho. Papai está furioso. Então, faço a única coisa sensata a ser feita: jogo o celular dentro da água da piscina.
Instantaneamente, sinto-me leve. Consigo respirar. É como se uma corda tivesse sido tirada do meu pescoço e, honestamente, estou chutando minha bunda por não ter feito isso antes. Sinto-me meio idiota por ter precisado que Miguel voltasse à minha vida para que eu reunisse a coragem de enfrentar esse caos. Odeio-me um pouco por ter me permitido afundar nessa situação ao invés de jogar tudo para o alto e ir viver minha vida.
Mergulho, ficando submersa por alguns segundos antes de emergir e respirar fundo. Sorrindo, deparo-me com o olhar questionador de Nic, braços cruzados e sobrancelha arqueada. Respiro fundo e saio da piscina. Sento-me do seu lado e seguro suas mãos.
— Eu amo você mais do que qualquer outra pessoa nesse mundo, Nic — digo, encarando-a com toda seriedade que consigo. — Você é minha melhor amiga, minha garotinha, o amor da minha vida. E eu faria literalmente qualquer coisa pela sua felicidade.
— Do que você está falando, Lola? — pergunta, cautelosa. Mesmo que meu breve surto não tenha feito nenhum sentido, poucas palavras abrem um portal de possibilidades. Conhecendo papai como nós duas conhecemos, não é difícil fazer suposições.
— Há alguns anos, papai veio conversar comigo, dizendo que já estava na hora de eu me casar. Que ele precisava de alguém para assumir a empresa quando ele se aposentasse, que eu precisava "dar continuidade ao nome da família".
— Ah, pelo amor de Deus — ela resmunga, revirando os olhos. Concordo com a cabeça.
— Eu não aceitei, por causa de Miguel — explico. — Mas papai não sabia que nós estávamos juntos e eu não queria que ele descobrisse. Estava pronta para negar e dizer que não ia concordar com isso quando ele disse que era ou eu, ou você.
Nic arregala os olhos, e eu continuo:
— Você tinha dezessete na época. Ele podia te obrigar.
— Lola...
— Quando você fez dezoito anos e saiu de casa, achei que podia dar o assunto por encerrado. Mas daí você começou a trabalhar alguns meses depois e ele ameaçou cortar qualquer chance de sucesso que você tivesse. — Dou de ombros. — Você sabe que ele poderia fazer isso. Meia dúzia de ligações e você não conseguiria um mísero cliente.
Nicole me fita por alguns segundos, mas desvio o olhar quando vejo seus olhos marejados.
— Perdi um pouco da noção do tempo depois disso — admito. — Você cresceu, virou uma puta profissional, mas eu... só continuei, sabe? Acho que no meio do caminho comecei a acreditar que era só para isso que eu servia de qualquer forma. Para ser esposa de alguém.
Um tapa forte acerta meu braço e reclamo, erguendo os olhos para ela.
— Você é uma idiota — diz, os rosto molhado pelas lágrimas derramadas. — Não acredito que você... Lorena...
Sorrio, um sorriso fraco, e dou de ombros, sem realmente saber o que fazer.
— Então esse tempo todo, essa sua caça por um milionário solteiro qualquer...
— Papai concordou que eu poderia escolher. Foi a única concessão que fez. No começo, eu chorava toda noite. Então, comecei a fingir que era um jogo, uma peça de teatro. Eu interpretava essa personagem e fingia ser essa mulher. E tinha tanto nojo de mim mesma, Nic — confesso. Jogo o cabelo molhado por sobre o ombro e ergo os olhos para ela. — Em algum momento, comecei a me perder nesse teatro. Não sabia como ser outra coisa além da mulher que via todo homem rico como uma presa em potencial. Acho que foi o jeito que arrumei para não enlouquecer.
Nic segura minhas mão e aperta meus dedos, mas não me interrompe. Solto uma risada amarga.
— É incrível o que uma mulher é capaz de fazer para sobreviver... — Balanço a cabeça, suspirando.
— Por que você não falou nada, Lola?
— Acho que acabei esquecendo de verdade quem eu era, até ver Miguel de novo. Ele sempre teve esse poder de despertar um lado estranho meu. — Sorrio.
Nic me abraça, me puxa para os seus braços, sem reclamar que estou molhada, sem dizer nada. Não há o que dizer.
— Você ainda o ama — murmura no meu ouvido. Concordo com a cabeça. Não dói admitir isso. O que dói é saber que ficamos separados por tanto tempo e não ter certeza se isso pode ser mudado.
— Amo. Nunca amei ninguém além dele — admito.
Ela me solta e me olha confusa de novo.
— Nunca? — Nego com a cabeça. — Você estava chorando no sofá porque seu CEO dos sonhos vai se casar por que então? — pergunta com um sobrancelha erguida, referindo-se ao meu ataque de pelanca quando recebi o convite de casamento de Eduardo Rodrigues.
Eu me apaixonei por ele. Eduardo é um homem decente, honesto, bonito, gostoso e envolvente. Se era para me casar com alguém somente pela sua conta bancária, ele era, sem dúvidas, a minha melhor opção. Acabei me encantando por ele nas poucas vezes em que nos encontramos, unicamente a negócios. Tornei-me um tanto obsessiva, desesperada para conquistá-lo. Parecia minha última opção de ser minimamente feliz e eu estava disposta a qualquer coisa para agarrá-la. Não consegui.
Miguel sempre foi o dono do meu coração, mas, se não fosse para ficar com ele, Eduardo era uma ótima segunda opção.
Quando adolescente, eu tinha certeza que poderia fazer o que quisesse, conquistar o mundo inteiro com minhas próprias mãos. Não sei bem onde, ou quando, mas, em algum momento no meio do caminho minha maior esperança se tornou encontrar um homem que me tirasse do domínio de papai. Virei essa mocinha de romance de época que não consegue fazer nada sem o aval de um homem, que é nada além de uma propriedade alheia, nunca de si mesma.
Olho por cima do ombro de Nicole a tempo de ver Miguel com uma carinha amassada de quem acabou de acordar, mas já dentro do seu uniforme. Ele sorri para mim e meu coração se inunda, trasborda.
Mas não tenho certeza do que fazer agora.
De pé no quarto, encaro a única mala que trouxe comigo perfeitamente arrumada.
Nic foi embora mais cedo com Bernardo, e vou encontrar os dois para um improvisado jantar de noivado amanhã, com os pais dele. E depois... não sei. Respirando fundo, desço à recepção e, poucos minutos depois, estou pronta para ir embora.
Ou não estou?
Depois de colocar a mala no carro, sigo pela orla, caminhando até a pequena doca onde combinei de encontrar com ele. Contorno o local, seguindo até o ponto mais isolado, escondido de todo mundo, onde ele me disse que estaria. Aqui, não há nada além do mar na nossa frente, e me sento ao seu lado, chutando as rasteirinhas que uso antes de colocar os pés na água gelada. O sol está se pondo, o céu alaranjado toca a água azul cristalina em uma paisagem simplesmente deslumbrante. Mas, honestamente, a coisa mais bonita disso tudo é Miguel, dentro de uma camiseta branca que abraça seu corpo e deixa exposto o braço tatuado.
Ficamos em silêncio por tempo demais.
O amor que sempre senti por ele ainda está aqui, em cada poro meu, implorando para acabar com essa palhaçada sem sentido.
— Eu nunca duvidei, sabe — ele diz, fazendo-me encará-lo. Miguel está recostado em um poste de madeira e me olha, a barba rala fazendo-me ter vontade de tocá-lo. — Nunca duvidei que você me amasse, nunca duvidei que queria ficar comigo. Quando eu te vi com aquele cara, não fui embora sem deixar você se explicar porque achei que não me amava. Não foi por isso.
Franzo o cenho, sem entender. Ele suspira e continua:
— Eu te vi a adolescência inteira fazendo malabarismo para dar conta de atender às expectativas absurdas do seu pai e conseguir continuar sendo você mesma. — Miguel dá de ombros. — Acho que eu sempre soube que, em algum momento, você não conseguiria ter os dois. Teria que escolher, e ia escolher fazer as vontades do seu pai, e ia me mandar embora.
Ele fecha os olhos e abre um sorriso triste.
— Fui um belo de um covarde, essa é a verdade. Eu te vi com aquele cara e senti que esse dia estava chegando, então quis ir embora primeiro, antes que você me mandasse embora. Achei que fosse doer menos assim.
Miguel sussurra um "não adiantou" baixinho, não tenho certeza se para mim ou se para si mesmo.
— Nicole...
— Eu sei — ele interrompe. — Você faria qualquer coisa pela sua irmã, ruivinha. E se você tivesse me contado o que estava acontecendo, sabe que eu faria também.
Concordo com a cabeça. Sei sim.
— Mas se não fosse isso, ia ser outra coisa, Lorena — ele continua. — Se você me perguntar, essa história de te casar com um cara rico qualquer tem muito pouco a ver com dinheiro. Ele só queria controlar a situação.
— Igual faz com a mamãe — murmuro.
Percebo agora que é a primeira vez que penso nela em... muito tempo. Nunca tivemos a melhor das relações, mas nunca realmente parei para pensar muito a fundo sobre isso. Quando eu tinha lá meus dezessete anos e ficava revoltada com papai e seus desmandes, o único pensamento que me atingia era que eu a odiava por não abrir a boca para dizer nada, para contrariá-lo. Mas se Valentim Albuquerque pouco se importa com os sentimentos das próprias filhas, desde que consiga o que quer, imagine com os da esposa. Se eu me vi simplesmente presa às suas vontades, sem perceber e sem entender como aconteceu, assumindo essa personalidade de biscate sem coração para sobreviver a isso, posso somente imaginar como mamãe se sente.
Pior que papai, sou eu que a coloquei no mesmo saco que ele.
Sororidade e empatia mandaram um beijo.
— Ele ameaçou deserdar nós duas — conto com uma risada na voz. — Nic e eu.
— O que você fez?
— Joguei o celular na piscina. — Miguel solta uma risada gostosa e balança a cabeça em negativa. — Tem três dias já. Não tenho ideia do que aconteceu de lá para cá.
Ele me olha com diversão e uma boa dose de orgulho.
Agora, com o céu já escuro, o lugar está ainda mais vazio, mais isolado. Miguel parece perceber isso no mesmo instante que eu, porque me puxa para o seu colo. Eu me acomodo ali, enroscando as pernas na sua cintura, e o beijo. Sugo seu lábio e Miguel segura meu rosto, mantendo-me perto.
— O que você vai fazer agora? — pergunta contra minha boca.
— Não tenho ideia — respondo, beijando-o entre cada palavra. — Um curso, talvez? Acho que vou me aproveitar dessa maravilha chamada nepotismo e aceitar fazer um período de teste na cozinha da empresa de eventos do noivo da Nic. Depois que eu marcar um almoço com mamãe.
— Parece um bom plano — concorda, apertando-me mais, puxando-me mais para perto. Um pouco mais forte que isso e vamos virar uma pessoa só. Miguel desce a boca para o meu pescoço e ri, fazendo arrepiar cada pelinho do meu corpo. — Você precisa dar um jeito de eles colocarem aquele seu pão de mel no cardápio. Ainda não acredito que você parou de cozinhar.
Nem eu. Também não acredito. As besteiras que a gente faz na vida, não é mesmo? O bom é que dá tempo de consertar. Dá tempo de recomeçar. Eu estar batendo quase trinta anos pode significar que estou velha para brincar de garotinha interesseira desfilando com milionário velho, mas, para todo o resto, minha vida está só começando. Vai saber o que eu consigo fazer quando não uso toda a minha energia fingindo ser alguém que não sou?
Apoio minhas mãos no peito de Miguel e é impossível ignorar seu coração descompassado. Parece uma escola de samba inteira e estou a ponto de perguntar se ele vai ter um troço, mas sei muito bem o que está vindo desse seu olhar cauteloso.
— E... a gente? — pergunta.
Meu coração para e dispara, cambaleia e se perde por completo.
Amei Miguel desde o primeiro instante. Continuei amando a cada dia de cada mês de cada ano. Continuo amando agora e sei que vou amar amanhã, e depois.
Mas ainda existe um a gente? Depois que ele foi embora, cultivei mágoa, rancor, ressentimento. Tinha esse espaço vazio em meu peito, essa dúvida eterna por não entender o que caramba tinha acontecido. Agora, eu sei. Esse capítulo foi encerrado, colocamos um ponto final aqui.
Então... e a gente?
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