O que eu sou?
Após as longínquas caminhadas do lobo perdido e da garota sem destino, o melhor pensado por ambos é descansar na casa de Afonso. Sem nenhuma objeção, permite que fiquem por lá o tempo que desejarem.
Em um quarto, com duas camas separadas, eles dormem por toda uma noite. A primeira de Aurora, após o acontecimento com sua família.
Na manhã, o Sol não passa das cortinas escuras da janela do quarto. Os lençóis não são nem tão finos e nem muito grossos, o que os torna super aconchegantes, e o colchão parece que os prende com tanta maciez.
A rua possui um intenso silêncio, o único barulho que importuna o sono salivado de Aurora são os roncos de Baal. Ela, aos poucos, abre seus olhos, enquanto o seu corpo, pesado pela preguiça, tenta se sentar na cama.
Olha para a sua esquerda e lá está seu amigo, a pele negra dele pinga suor. Ao mesmo tempo em que a sua cabeça nega constantemente, algo acontece em sua mente, pois suas garras rasgam com força o lençol.
Aurora, com medo do que está ocorrendo com seu amigo, tenta chegar perto dele no momento que ele vira de costas para ela. Ao encostar nele, Baal se reorienta bruscamente, arranhando o braço dela.
O grito de dor acorda o lobo. Vendo o que havia feito, assustado e testemunhando o sangue escorrendo pelo braço de sua amiga, ele a puxa para a cama, pondo-a em seus braços. E pede desculpas diversas vezes.
Aurora, surpresa, percebe a fragilidade do lobo nesse momento. Com isso, ela apenas fica ali e ignora sua dor para poder sanar a dele.
Depois de um bom tempo abraçados, ela se levanta e sai do quarto. Vendo que está no segundo andar da casa, bate à porta ao lado de seu dormitório, sem resposta, ela a abre.
É o dormitório de Afonso, com uma enorme cama de casal e algumas flores na janela. Ela adentra o quarto e nota algumas bonecas no canto direito, sobre uma cômoda branca.
Os bonecos de pelúcia possuem dois colares de prata que chamam a sua atenção, mas ela resolve não se meter.
A menina ouve o barulho de panelas batendo no primeiro andar e, por causa disso, sai. Descendo as escadas, o ruído de metal se chocando contra a madeira fica cada vez mais alto. Aurora, ao chegar na entrada da cozinha, vê o senhor picotando frutas.
Afonso cozinha um aroma doce e forte em uma panela, um caramelo que borbulha e derrete a cada vez que a colher de pau sobe da calda.
Ao terminar de picar as maçãs, bananas, peras e morangos, coloca todas as frutas na panela, misturando com a calda. Isso faz com que a barriga de Aurora trema de tanta fome, fazendo um barulho tão estrondoso que o homem percebe a presença e o sorriso doce da hóspede na entrada da cozinha.
— Aurora! Bom dia.
— Bom dia, senhor Afonso. — Ela se senta à mesa.
— Dormiu bem? — Afonso começa a tirar as coisas da panela, colocando em um pequeno prato para entregá-la. — Eu consegui ouvir os roncos de seu amigo, ele realmente deve estar cansado.
— Estava tão cansada que nem consegui ouvi-lo. — Ela toca na ferida em seu braço.
— Pelos deuses! — Afonso tira, de um armário embaixo da pia, uma garrafa do líquido verde que os avós da menina usavam para curar as pessoas. — Como foi que isso aconteceu?
— Nada demais...
— Foi ele, não é? — pergunta Afonso. — Na época que ele vivia com Sophia eu o vi por poucas vezes. Ele sempre tem esse semblante raivoso. Tome cuidado! Caso queira, pode ficar por aqui...
— Ficar... Com o senhor...? — Aurora percebe a sinceridade e confiança que o vetusto passa, então aos poucos começa a pensar na possibilidade.
"Por que tive vontade de segui-lo?", pergunta-se.
— Bom dia — diz Baal com uma expressão um pouco mais seca.
— Bom dia — respondem ambos.
— Está melhor? — Baal separa a franja da garota e beija a sua testa.
— Estou sim, Afonso me ajudou. — Eles se olham e o lobo abaixa a cabeça em forma de desculpas.
— Coma, você deve estar com fome. — Afonso oferece um prato com as frutas caramelizadas, mas, ao sentir o cheiro de perto, Baal recua.
— Você tem... Carne? — O senhor e a garota riem.
Afonso indica à Aurora onde pegar a carne, enquanto o idoso sai por um instante e sobe as escadas. Baal procura um prato ao perceber que sua amiga havia encontrado o que queria. Eles então giram na mesa até chegar em duas cadeiras próximas para que possam se sentar um ao lado do outro.
A garota olha para os dentes da fera e se lembra da noite em que se conheceram, os caninos ensanguentados pela carne das pessoas que queriam matá-la. Quando ele a olha, a expressão de sorriso sai de sua face e um questionamento volta à sua cabeça enquanto ela come: "Por que tive vontade de segui-lo?".
O dono da casa volta à mesa para acompanhá-los no café da manhã. Ele põe o livro de magia de Aurora no balcão e o abre assim que se senta. Em seguida, encara a garota.
Aurora não percebe por tanto tempo, até que o lobo dá um leve toque de cotovelo em seu ombro. Ela para de quase pôr a cara no prato e limpa com a mão um pouco do caramelo que caiu em seu queixo.
— Fiz algo de errado? — Ela olha de volta para Baal, que encara Afonso.
— Você sabe, não é? — Afonso direciona suas palavras para Baal.
— Sei... — Baal responde em um tom seco.
— Não deixarei que a leve.
— Agradeço a sua hospitalidade, porém isto não é uma questão com alternativas, o matarei se necessário. — A fala de Baal assusta Aurora.
— O que está acontecendo!? — O tom da voz de Aurora aumenta. Olhando fixamente para Baal, sua íris treme, enquanto seu corpo se arrepia pelo medo.
— Conte a ela — diz Baal rispidamente a Afonso.
— Contar? — Ela se vira para o senhor, que suspira.
— Ontem peguei para ler o livro que seus avós deixaram, e como um costume meu de adolescente, abri ele em suas últimas páginas. Eu já desconfiava de você, Aurora. Você pode não ver ou sentir porque nunca mexeu com magia, mas... — Ele dá uma leve pausa. — A magia no mundo é algo acessível a todos que querem conhecer esse universo místico. Contudo, para alguns ela é algo mais "exposto", por vezes devido a... — Afonso, com as mãos, começa a fazer as representações de tudo aquilo que tenta dizer, uma energia verde fina dança em sua palma. — Genealogia... Por ter pais que conhecem tanto desta arte... — Afonso interpreta uma família com uma energia em suas palmas. Algo de tonalidade verde que dança como se estivesse vivo. — Você acaba tendo mais facilidade com esse ambiente de energia mística.
— Está dizendo que meus pais passaram isso para mim? — pergunta a garota.
— Não só isso... — Afonso deixa que a energia de suas mãos se esvaia para que possa coçar os olhos, enquanto acha algo para falar.
— Seres humanos... — continua Baal. — Eles existem em uma árvore muito específica nessa genealogia. Encontram-se duas classificações: os Elementais e os Escolhidos. — O lobo não a olha, apenas encara o homem. — Enquanto um possui uma facilidade absurda para ampliar e manipular seus poderes através dos elementos, o outro consegue utilizar magias feitas pelos próprios deuses ou invocar monstros poderosos.
— Antigamente — Afonso volta a pôr a energia azul na palma de sua mão. —, Escolhidos e Elementais eram duas casas de magos que nem sequer se falavam. Os dogmas e formas de reger o mundo são ainda muito distintos, então eles sempre acabavam em guerras impetuosas onde impérios vastos caíam ao chão, com tamanho poder esboçado por ambos. Essa guerra cessou quando a maga mais poderosa dos Elementais se apaixonou por um dos Escolhidos mais devotos. O amor e o cansaço das mortes fizeram com que as guerras tivessem um fim, contudo, ambos foram expulsos de suas designações e proibidos de utilizar a magia. Assim, eles descumpriram a regra e fizeram uma última magia, a mais poderosa de todas: — Nas energias azuis, uma mulher grávida surge. — A magia da vida. — E continua. — Um acontecimento super raro surgiu, o nascimento de um bebê que transbordava poder. Porém, não o poder que víamos em magos poderosos. Era algo destrutivo na mesma intensidade em que era inovador, por isso os melhores feiticeiros vieram ao encontro do casal e da criança. Alguns queriam matá-la, outros ansiavam protegê-la, mas seus pais só ambicionavam que ela vivesse. Ela era conhecida como Aberrante, uma nomeação que transcendia Elementais e Escolhidos, algo superior a tudo o que conhecemos.
— Sophia, antes de me selar, me pediu uma última coisa. — Baal olha para Aurora, que está perdida com tantas informações. — Ela implorou para que eu te protegesse como eu a protegi.
— Você é uma Aberrante, Aurora. Uma pessoa que nasceu com tanto poder místico que não sabemos se você pode mudar o mundo ou destruí-lo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro