IV | O Senhor de Alphard
Sabia que o dia já havia amanhecido, notara a claridade iluminar o recinto além das suas pálpebras, mas optou por permanecer descansando os olhos. Havia muito tempo que não dormia de forma digna como na casa da vovó, a sua casa. Gostaria de levantar dali num salto e correr para seu canto aos pés da porta que dava para o quintal, lendo um livro com Gladiador descansando a cabeça em sua perna e ouvir a cafeteira assobiar enquanto o aroma da bebida perfumava toda a casa.
Permitiu-se sorrir fraco enquanto uma lágrima traçava uma linha tênue sobre sua bochecha.
— Como você está?
Na mesma hora, abriu os olhos ao reconhecer o dono da voz sentado numa cadeira ao lado da sua maca. Christopher.
Franziu as sobrancelhas com o súbito interesse do garoto. Apesar disso, ele a olhava com sinceridade; o que não durou muito, no entanto, logo se cingindo de um semblante forçadamente sério.
— Soube do incidente que ocorreu — disse ele. Limpando a garganta, explicou — Hendrik me contou. E Sir Beorren já está sabendo. Vim aqui ontem, antes da ceia, esperando que estivesse desperta para levar informações a ele, mas a enfermeira previu que só acordaria hoje, depois daquele negócio que ela disse haver te dado para dormir.
Mal conseguia processar tanta informação. Apenas se lembrou do mesmo ocorrido, quando pela primeira vez teve convulsão. Quase saltou de desespero.
— Quanto tempo fiquei desacordada?! — perguntou, baixando o tom ao fim da frase ao notar que Kade ainda dormia.
— Só essa noite.
Selena respirou fundo, aliviada.
— Sente ainda dor de cabeça? — perguntou Christopher.
Nem notara que tinha tido a dor, bem como a atadura que cobria sua cicatriz.
— Não.
As lembranças da visão que havia tido quando fora trasladada a Cicatrizoculta não tardaram em retornar, feito um maremoto que, por um instante, transportou sua atenção para o vale dos mortos Aemaki. Sentia seu coração ser moído pela memória; e se sua mãe estivesse ali? Ou seu pai, por se aliar a ela? Mais certo que isso era saber que Felicy estava entre os corpos.
Kit inclinou a cabeça para o lado quando notou que lágrimas rolavam pelo rosto da menina.
— O que houve? Quer que eu chame a Sra. Menrich?
— Não.
Sua voz ficara rouca. Infelizmente teria que ser ela a dar a notícia.
— A Felicy. Ela é a razão... — disse.
O jovem se endireitou no assento, e Selena teve a impressão que uma onda de calor sobreveio sobre o ambiente.
— Ela está morta.
Ele balançava a cabeça, em negação. Embora os olhos estivessem marejados, recusava cedê-las.
— Quê? Como sabe disso?
Conforme pensava na resposta que daria ao garoto, as estrelas pareceram se alinhar com a ideia absurda, porém inegável, de que a cicatriz em sua mão provavelmente era o novo elo entre ela e o mundo abaixo de seus pés. Só não queria acreditar que todos os episódios que lha levariam até lá seriam precedidos por um ataque convulsivo. Se fosse assim, poderia ocorrer a qualquer momento e a qualquer hora.
— Essa cicatriz arde toda hora e ontem foi a primeira vez que ela rompeu em sangue. Quando me vi já tinha perdido a consciência, só retornando quando identifiquei estar em Cicatrizoculta; em espírito, provavelmente, pois ninguém me viu e estive aqui o tempo todo, entrando em convulsão. Vi dois tenebraes conversando enquanto levavam um corpo a um lugar. Esse lugar era um vale cheio de... — a palavra lhe causava repulsa e precisou engolir o vômito que ameaçou atravessar sua gorja — corpos. Eram todos descendentes Aemaki e o monstro - cuspiu a palavra — disse sobre uma pequenina Corwenn...
Christopher respirava aceleradamente ao passo que as lágrimas cobriam seu rosto. Como se recusasse a se render ao fato, ergueu os olhos ao alto, mas logo baixou a visão, inconsolável.
— Sinto muito, Christopher...
Levou a mão sobre a dele, não sabendo quais palavras dizer. Conhecia aquela dor muito bem, dor essa que parecia se instaurar na alma, um vazio imensurável, a frustração de ser incapaz de desfazer o ocorrido, a raiva e o ódio por haverem interrompido uma vida inocente e a falta de controle sobre as próprias emoções; haja vista que o calor havia se tornado algo incômodo e até o garoto na maca ao lado se desvencilhava da manta que o envolvia.
Apenas o silêncio serviria de consolo àquele momento. Decidira descer da maca e, sentando-se no degrau mais alto da escadinha, recostou a cabeça sobre o ombro dele. Não o impediu de chorar e não o questionaria sobre isso. Lembrava que Artur detestava demonstrar fraqueza perto dela e ele nunca permitira que ela se aproximasse dele nesses momentos.
— Não contarei a ninguém sobre isso — prometeu.
Christopher respirou fundo e limpou as lágrimas.
— Pode me levar até lá? Para trazermos o seu corpo e dar a ela um enterro digno...
— Não sei se consigo. Não cheguei a encontrá-la.
Ele assentiu, finalmente olhando-a nos olhos.
— Obrigado por me contar sobre minha irmã. — Christopher pôs-se de pé, secando as lágrimas que ainda escorriam pelo rosto e após limpar as mãos úmidas na roupa, virou-se para a menina. — Consegue se levantar sozinha ou precisa de ajuda?
Selena o respondeu se levantando.
— Você contará ao seu pai sobre ela?
Christopher deu de ombros, ainda indeciso.
— Não sei.
— Bom, estou aqui para qualquer ajuda. Meu primo guardava muitas coisas para si e ele acabou piorando...
Selena não entendeu muito a razão pela qual Christopher franziu as sobrancelhas antes de assentir, porém não questionou.
— Okay — murmurou ele, partindo.
Não havia imaginado ter acordado tão cedo, aliás, os ruídos de muitos passos ecoando atrás da porta avisavam que os demais alunos já iniciavam sua rotina. Todavia, a Sra. Menrich ainda não havia saído do seu quartinho, detrás da porta ao canto da sala, e Lothaire não dava indício algum de que despertaria pelas próximas horas.
Selena tentou adormecer novamente, mas seus pensamentos faziam questão de relembra-la o instante em que vira os infinitos corpos jazendo no vale. Griffith Daenholt. Felicy Corwenn. Dalienne Alliand... A lembrança do rosto da amiga era tão clara e vívida, quase tangível. Não sabia há quanto tempo Christopher havia visto a irmã pela última vez, lamentava bastante se havia muito tempo. Sentiu seu coração apertar so de imaginar que chegaria um dia que não lembraria mais com tanto detalhe o rosto de Dalie ou esquecer como soava sua voz, a sensação de carregar nas mãos água escorrendo pelos dedos. Afinal, vovô não passava de uma única gotícula ainda em seu palmo.
Estava prestes a pular da maca, ansiando por ar que bastasse ao sufoco que era lembranças trazidas à tona, quando a portinhola ao canto da enfermaria se abriu e a Sra. Menrich, vestida à caráter de seu encargo.
— Ah, quem te despertou? — Aproximava-se abotoando o último botão que restava de sua túnica. — O sol, os alunos ou Lothaire?
Lothaire roncou tão alto que acabou despertando de susto.
— Tem um porco aqui?!
— Um alto e esquelético — respondeu ela. Dirigindo-se a Selena, checou sua temperatura dando uma piscadela à menina. — O Sr. Corwenn...
— Ele me despertou — disse Selena, interrompendo-a.
— Ótimo. Ele insistiu em querer falar com você ontem.
— Insistiu mesmo — reafirmou Kade Lothaire atrás de si. — Vocês namoram?
Selena arqueou as sobrancelhas na mesma hora.
— Claro que não. — Que ideia insana...
Não podia contar sua ligação com Sir Beorren, Christopher era um intermediário entre eles, provavelmente viera à mando do cavaleiro.
— Alguma dor essa noite? - perguntou Sra. Menrich tomando cautela ao pegar em sua mão e desfazer a atadura.
Balançou a cabeça.
— Bom. Talvez os eventos de dor retornem com mais intensidade conforme o efeito da solução passe, o que durará pelos próximos vinte davs.
Isso era ótimo. Não suportaria outra visita ao vale, desta vez em meio aos corpos ou sabe-se lá para onde seria trasladada caso o evento retornasse nos dias seguintes.
— Estou liberada?
A Sra. Menrich pareceu ser pega de surpresa com a pergunta.
— Pensei que gostaria de perder a aula de hoje. — Sussurando a seu ouvido, disse — até porque os professores te liberaram pelo resto dessa semana. — Ela se afastou de modo que pudesse olha-la no olhos e ergueu uma das sobrancelhas. — Ou quer ir agora?
Sorriu esperta com a proposta. Uma semana não seria nada mal.
— Sabia que ia gostar da ideia — disse Sra. Menrich, orgulhosa. — Também não será necessário que ao fim de cada dia venha passar aqui para fazer um check-up.
— E eu não tenho opção... — resmungou Lothaire.
— Não tem mesmo — concordou a Sra. Menrich, aproximando-se do seu leito. — Por mim, liberaria-o hoje!
Lothaire franziu o cenho.
— Seja igual à Srta. Carter.
Os dois pares de olhos caíram sobre ela, que não sabia identificar sobre que característica a enfermeira se referia.
— Só por que ela é quietinha? — questionou Lothaire com um quê de desprezo.
Ei!
— Exatamente. Sábio é aquele que menos fala e mais observa — disse Sra. Merich, sorrindo para ela.
— Obrigada... — murmurou.
— De nada. — E voltou-se para o jovem — nem tocarei no seu tornozelo. A dor da torção pode perdurar por essa semana. Talvez eu possa liberá-los no mesmo dia.
Jogar xadrez não estava dentro dos seus planos, afinal. Preferiria estar desenhando, mas não estava nem um pouco ansiosa para usar a mão enfaixada, tampouco a usava para mover as peças do tabuleiro. A Sra. Menrich ensinava-lhe algumas táticas ao seu ouvido a fim de não perder para o Mestre da Lógica bem a sua frente. Vez ou outra era pega de surpresa por um movimento que não esperava vir de Kade Lothaire. Aprenda a prever o futuro, repetia a enfermeira quando Selena insistia em seguir suas próprias intuições.
Quando a Sra. Menrich não lhe dava dicas sobre o jogo, falava sobre seu irmão, com quem havia aprendido as estratégias do xadrez. Sir Earace Menrich cumpria seu serviço como cavaleiro guardião das irmãs do Rei de Ambre, Princesa Maia e Princesa Líria. Viviam em Marlester e fora de lá que a enfermeira veio. Havia recebido uma carta recentemente do irmão, na qual informava ser a Princesa Maia a possível próxima pretendente do Príncipe Ralpherd; aguardava-se somente a concessão de seu irmão.
Selena engoliu com dificuldade as palavras afiadas que insistiam em serem proferidas. Substituiriam Dalienne com a mesma facilidade que se troca uma peça inútil de dentro de um relógio. Tão fácil.
Foi sobre o tratado que seria assinado entre as Casas Vhalorne e Emeraki — sobrenome adotado pelo próprio monarca de Ambre a fim de substituir a negatividade carregada pela Traidora em seu sobrenome — que Selena permaneceu divagando quando todos foram convocados a assistir a partida da Corte Real.
Não se juntou à sua turma ao chegar na Rua Principal, mas não foi difícil identificar Hendrik entre os demais, afinal, era o mais alto de todos. Ao seu lado, Kade Lothaire se mantinha em pé apoiado em duas muletas quando seguiu seu olhar.
— Aquele não é o irmão do Delos?
— Hendrik — respondeu. — Meu melhor amigo.
— Hum... Delos disse algo sobre o irmão mais novo dele viver falando de duas meninas.
— Eu e... — calou-se ao se lembrar da amiga. — E Dalienne.
— A falecida filha do lorde? — Kade se inclinou para olhá-la nos olhos e conferir se era o que imaginava.
Selena assentiu, baixando os olhos. Naquele instante, a Corte iniciava sua marcha de despedida. Em meio às trombetas que anunciavam a passagem da Corte pela cidade até a saída, Selena identificou no silêncio de Lothaire tudo se alumiar ao seu entendimento.
— Sinto muito por sua amiga.
Eu também.
Mesmo a sinfonia diminuindo conforme a Corte se afastava do castelo, todos permaneceram em seus postos. Havia sido uma ordem estabelecida pelo Lorde Alliand e comunicada aos professores, responsáveis pela organização das turmas. É claro que não tardou para os alunos esboçarem em seus semblantes a insatisfação de permanecer por tanto tempo em pé.
Selena percebeu um incômodo vir de Lothaire e imediatamente se lembrou do problema em seu tornozelo. Portanto, emprestou seu ombro de apoio ao jovem, visto que não havia qualquer assento por perto.
— Valeu, Cicatriz — agradeceu.
— Cicatriz?
— Gosto de dar apelidos aos meus amigos...
Sua voz se perdeu no burburinho que começou a emegir dentre a multidão, no qual avançou de aluno a aluno até chegar ao ouvido de todos.
— Há uma comitiva na cidade, é isso? — perguntou Lothaire à enfermeira e a Selena, mesmo sabendo que nem elas faziam ideia.
— De Alphard? — perguntou um aluno à sua frente para outro.
— Alphard? — deixou escapar Selena.
— Isso mesmo — confirmou o outro aluno. — O Senhor de Alphard.
— Mas Alphard não é uma estrela? — perguntou ela.
Não houveram respostas; todos se voltavam para a mencionada comitiva se aproximando da escadaria. Não passavam de vinte soldados. Na mesma hora, todos tornaram suas atenções ao Lorde de Polus, que descia as escadas evitando esboçar qualquer emoção no semblante.
Seu olhar, todavia, se manteve sobre o cavaleiro que caminhava à frente dos outros.
Não é possível...
Selena estava a poucos metros do Senhor de Alphard. Melhor, do homem que a havia abandonado sem razão alguma. Agora, ele estava ali, em carne e osso. Os longos fios prateados. Os olhos, naquele momento, castanhos. Era inegável não ser ele. Como? Não conseguia imaginar.
— Kyrios?
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QUE TIRO FOI ESSE?
Não sei vocês, mas eu amo um plot twist recheado de BOMBA. Essa ideia não lembro direito como surgiu, mas sei que em algum momento eu estava terminando o Legado da Aurora (escrevi pela primeira vez, na segunda, retoquei, e na terceira, revisei) quando me veio Kyrios dar um perdido na Selena e voltar encarnado. Só que falei: tá aí, super concordo, porque nós, escritores, amamos deixar nossos protagonistas em situações que nós mesmos não gostaríamos de passar nunca. Eu só sei que no lugar da Selena eu ia ficar louca, não ia querer nem papo.
AGORA, DEIXO AQUI UMA PERGUNTA:
QUAL A FRASE MAIS FILOSÓFICA DE UM LIVRO QUE VOCÊ AMOU?
Me: "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas." - Pequeno Príncipe
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