Prólogo
Toda garota que veste um collant e calça um par de sapatilhas de ponta, ao executar um grand jeté, sente como se pudesse tocar as estrelas. E por mais que seus pés e músculos estejam doendo, nada a deixa mais feliz do que a sensação incrível de poder voar. Mesmo que só por dois segundos.
Parece tão pouco.
Na verdade, é tudo. Nesse pequeno tempo em que a bailarina desafia a gravidade e salta depois de tomar impulso, ela deixa de ser uma garota como tantas outras e se transforma num cisne.
Num gesto de rebeldia adolescente, tiro os fones dos ouvidos depois que me canso de ouvir Debussy e os guardo com o celular num dos bolsinhos laterais da mochila. Só então me dou conta que só faltam quinze minutos para o exame.
Não sei por quanto tempo fiquei perdida em devaneios. Pelo menos já estou pronta, com o coque preso com grampos e redinha, e vestida com o uniforme do exame. Collant regata preto e meia calça cor de rosa. Para manter minhas pernas aquecidas, estou usando um par de polainas pretas.
Me levanto do chão frio do vestiário e ando com minha mochila até um canto onde não tem bailarinas com olhares angustiados, confessando entre si seus medos. Não sei se conversar ajuda num momento como este.
Sempre me senti sozinha antes de me apresentar, mesmo recebendo um abraço ou alguém pondo uma mecha do meu cabelo atrás da orelha e me dizendo: você vai arrasar como sempre. Só posso contar comigo.
Como que numa exibição de flashes, toda minha vida passa diante de mim quando paro diante do espelho e olho nele uma garota loura, de olhos azuis claros com contornos pretos, e rosto com sardas infantis, usando collant.
Uma garota cheia de sonhos, que usa aparelho de dente com pedrinhas azuis, que sabe o que quer da vida, e que apesar de transmitir para as pessoas um ar de bondade, tem três rosas tatuadas no braço direito.
Enquanto toco com delicadeza minha tatuagem, me lembro da Letícia. Sorrio ao lembrar das palavras que ela me disse naquele dia, no estúdio, me segurando pelos ombros.
Danny, eu não tenho mais nada pra ensinar a você.
Antes que uma garota afoita venha para perto de mim tentando puxar assunto, me sento para dar um último ajuste nas fitas de cetim das minhas sapatilhas de ponta. Quando termino de amarrar os laços, as fitas não são mais pedaços de pano, mas partes do meu corpo.
Só quem nasceu para ser bailarina sabe o quanto uma sapatilha de ponta é importante, muito mais do que um sutiã, porque é ela que nos dá impulso para girar e saltar, fazer aquelas coisas incríveis que impressionam as pessoas.
Como toda garota que sabe desde pequena o que quer da vida, eu persegui um sonho. Muitas vezes voltei pra casa chorando depois de aulas ruins e sempre me reinventei, porque não sou de desistir.
Faço balé desde os dois anos de idade, quando Françoise me matriculou num pequeno estúdio de Joinville, e desde os dez, as pontas e eu somos amigas de sangue.
Agora, já adolescente, para que eu possa tomar impulso para um vôo mais alto, alguns dos melhores bailarinos do Rio de Janeiro decidirão se estou apta ou não a ingressar no Ballet Imperial de Petrópolis, depois de me avaliarem numa aula em que serão considerados vários critérios. Flexibilidade, alongamento, expressão artística.
Por mais que eu tenha me preparado, também estou um pouco ansiosa, com aquela vontade de fazer xixi que a gente sente antes de pisar num palco. Tudo piora quando de repente um grupo de mulheres entra no vestiário, distribuindo entre as meninas as placas com números e dando ordens com prepotência.
— Dirijam-se à sala Ludmila Shushunova.
Uma delas, de olhos cinzas e frios como aço, pára diante de mim e me entrega a placa de número 25, e soltando o ar com irritação, aponta com o indicador para as minhas polainas. São proibidas pelo regulamento do exame.
— Tire — ela ordena.
Quando estou saindo do vestiário atrás de duas garotas que fizeram sinal da cruz, meu celular vibra dentro da mochila e fico um pouco para trás para ler a mensagem de whatsapp. Um sorriso se forma em minha boca assim que vejo que é do meu namorado, me desejando merde.
Te amo, ele diz.
Eu sei, respondo.
Essa mensagem curta e tão cheia de significado me dá tranquilidade, faz com que eu acredite que meu objetivo está ao meu alcance, que eu posso. Eu sei que só depende de mim.
Todas aquelas semanas de aulas particulares, ensaios e coaching de variação têm que valer a pena.
Pareço ouvir minha mãe me dizendo que tudo vai dar certo, e eu tenho certeza que ela está aqui comigo, torcendo por mim. Minha boca delineia um sorriso.
A primeira coisa que me deixa impressionada é o tamanho da sala. Enorme, com duas paredes de espelhos e janelas pelas quais dá para ver os prédios envidraçados do Leblon e um céu azul lindo.
Outra, é a seriedade dos avaliadores entrando depois que fazemos um breve aquecimento com espacates no chão de linóleo. Parece que meu coração começa a dançar um pas de deux com as minhas costelas assim que os olhares deles se fixam em mim, me avaliando da cabeça aos pés.
Ela é linda, comenta o diretor emérito com a Carla Ramos, Primeira Bailarina do Balé Municipal do Rio de Janeiro.
Imagine o que ela pode fazer com o corpo que tem, esta responde .
É a filha do Cisne Branco.
— Vamos lá — o mestre de dança acena com o queixo para o pianista enquanto ando até meu lugar na barra, tirando da minha bunda o collant que entrou durante o espacate. — Lado à barra. Reverence!
Faço a pose inicial. Inspiro, expiro.
O acorde é tocado e nesse momento, a garota tímida deixa de existir.
Foi uma de minhas melhores aulas.
Não consigo esconder minha felicidade. Lágrimas descem pelos cantos do meu rosto e borram a maquiagem que tive tanto trabalho para fazer enquanto corro pelo interminável corredor junto de algumas garotas que também foram aprovadas.
Odin está encostado em sua moto. Salto os degraus da escadas, seus braços me seguram pela bunda ao mesmo tempo que entrelaço minhas pernas compridas em volta de sua cintura.
— Como foi? — ele me pergunta com o mais adorável dos sorrisos.
— Fui super bem — respondo. — Eu passei.
Ele me desce no chão e toca meu rosto com seu indicador. Dou meu melhor sorriso, mostrando meu aparelho de dente com pedrinhas azuis. Deixo que seus olhos azuis escuros me sondem por dentro.
A gente troca um beijo longo, as mãos dele apertando minha bunda quase toda exposta, já que, durante o exame, o collant se alojou dentro dela.
Minutos depois, já devidamente vestida meu namorado e eu vamos a um restaurante de comida contemporânea. Olho fixamente para o copo de suco de laranja à minha frente, como quem faz uma prece para um amigo que partiu. Ainda não consigo acreditar que passei. Parece um sonho.
De vez em quando olho para as pessoas, reparando no jeito despojado como se vestem. As moças usam saias, sandálias, estão bem à vontade. Como sempre gosto de estar linda, estou usando uma calça jeans ultra justa, um cropped regata preto e botas de cano alto.
— A comida daqui é boa — Odin quebra o silêncio.
Dou um sorriso, concordando com um movimento de cabeça.
— Verdade que os professores ficaram emocionados com a sua aula? Essa galera não é muito de mostrar sentimentos.
— Ficaram. A Carla disse que eu tenho uma graciosidade única.
— Estou feliz por você. Por nós dois.
Sorrio timidamente, passando os dedos por entre meus cabelos.
— Ela me pediu pra não criar uma expectativa de ser como a minha mãe. Disse que a Françoise foi única e que eu nunca vou ser um Cisne Branco.
Um suspiro foge por entre meus lábios.
— A Carla disse que tem o dom de enxergar a alma de uma bailarina jovem, e que embora eu seja uma garota doce e gentil, minha alma abriga uma mulher sedutora, decidida e ousada.
Odin sorri, estreitando os olhos, pondo uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha. Seus dedos deslizam por meu rosto, tocam a tatuagem no meu braço direito.
— Ela disse que um dia eu vou ser um Cisne Negro.
Prólogo de 1,3k de palavras
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