Capítulo 8 - parte 1
I know that you can love me
When there's no one left to blame
So nevermind the darkness
We still can find a way
'Cause nothin' lasts forever
Even cold November rain
Guns'n Roses, November rain
Duda e eu estamos conversando por quase uma hora. Ela ficou muito feliz por eu ter lembrado que hoje é seu aniversário de dezesseis anos, e contou que Letícia e Tânia estão dando uma festa surpresa num salão de Perdizes.
Estou feliz por minha amiga ter se recuperado totalmente da fratura que sofreu no pé esquerdo logo no começo do ano, no Curso de Verão da Promoarte e por ela não ter ficado com nenhuma dor residual. Não vai demorar para nos encontrarmos num festival de dança. Estou ansiosa por isso, já que quero que ela veja o quanto estou evoluindo como pessoa e como bailarina.
Não faz nem uma semana que estou no Rio de Janeiro, e tanta coisa aconteceu em São Paulo. Não é que puseram uma bailarina à minha altura como Primeira Bailarina Promoarte Fantini Júnior? Agora é a Emanuelly quem vai representar a marca de collants e sapatilhas nos festivais da produtora. Estou contente por ela, e ao mesmo tempo, chateada.
Droga, fui eu quem conquistou esse título ano passado, e só porque mudei de escola, tive que abrir mão dele porque uma cláusula idiota de um regulamento ainda mais idiota diz que, em caso de transferência para outra instituição de ensino, a bailarina perde seu título.
Acho isso tão injusto. Se eu não soubesse que é normal, com certeza teria entrado em parafuso. Pelo menos vou continuar como modelo nos catálogos da Fantini, usando modelos de collants com meu nome até que outra coleção seja lançada.
Digito um tchau para a Duda com um emoji mandando um beijo, voltando minha atenção para a passarela à minha frente por onde passam alguns dos modelos mais lindos que já vi. Todos eles são adolescentes, alguns são atores e atrizes de um seriado jovem que passa antes do horário nobre, e por isso, têm uma altivez natural.
As luzes deste salão são mais incômodas do que as de um teatro. Agora eu não tenho mais nenhuma dúvida de que não nasci para o mundo da moda, como Odin não nasceu para ser bailarino. Tânia Dressler bem que tentou mantê-lo numa escola de dança para quem sabe ele fôsse, um dia, partner de uma Alina Somova, uma Natalia Osipova ou uma Misty Copeland. Mas Odin nasceu para desfilar.
Um sorriso maroto se desenha em minha boca quando um rapaz negro com dreadlocks, que veste algo parecido com uma calça jardineira, dá meia volta, andando até o lugar de onde ele veio. Odin surge, vindo em minha direção com um porte decidido e sensual ao mesmo tempo. Máquinas fotográficas e celulares captam seus melhores ângulos. Parece que seu rosto ganha tons fosforescentes por causa dos flashes, que mais lembram relâmpagos num céu nublado pronto para precipitar chuva.
Ele tem um brilho próprio capaz de deixar qualquer garota tonta. É perfeito, sem nada a ser acrescentado. Sou uma garota de sorte.
Quando ele fica bem próximo de mim e eu posso sentir o odor de seu perfume amadeirado, aceno com os dedos e recebo em troca um sorriso sexy. Só isso basta para eu me sentir envaidecida.
Me aproximo dele com passos sensuais assim que o produtor e o estilista o deixam para irem conversar com uma modelo morena que passa. De brincadeira, imito uma daquelas mulheres pondo uma perna na frente de cada vez, como se eu também estivesse desfilando. Odin sorri. Passa um dos braços em volta da minha cintura e sela meus lábios com um beijo.
— Obrigado por ter vindo — ele agradece.
Toco seu rosto com o dorso do meu indicador. Dou um selinho e logo em seguida, um sorriso.
— Eu não podia deixar de ver meu namorado brilhar — passo os dedos no meu cabelo.
Trocamos mais alguns beijos molhados aos poucos nos soltando, até que um pigarro faz com que descolemos nossos corpos. Uma mulher simpática nos olha com uma câmera fotográfica do tipo que faz a lente se projetar quase um metro.
— Oi, posso tirar uma foto de vocês?
Por mim, tudo bem, penso. Odin meneia positivamente, com um sorriso discreto.
— Obrigada — a fotógrafa agradece. — Só uma pergunta, moça: você é modelo também?
— Não, sou bailarina.
— Ah, que interessante. Em qual escola você estuda?
— Ballet Imperial de Petrópolis — sinto um pouco de orgulho ao afirmar que estudo na melhor escola de balé do país. — Eu me chamo Danielle — me antecipo à próxima pergunta; eu sei que as fotos nas páginas sociais têm também os nomes das pessoas.
Ela anota as informações num caderninho de capa púrpura, guardando rapidamente num bolso.
— Mais uma vez obrigada — diz ao se afastar.
O mundo da moda é um pouco parecido com o balé. Flashes de câmeras, envolvimento de patrocinadores, marcas. Ter um rosto bonito e linhas simétricas no corpo também é fundamental, sem falar que altura pode te barrar ou alavancar sua carreira.
Mas há uma diferença que faz com que o meu mundo seja muito mais bonito que o do Odin. No balé, pelo menos, nós sorrimos.
Tudo bem que todos os modelos que desfilaram hoje são lindos, mas por que tanta seriedade? Não consigo me imaginar desfilando com a cara de mau humor que as mulheres fazem, mesmo todo mundo dizendo que eu podia ser uma modelo famosa.
Odin segura minha mão e ficamos nos olhando de um jeito carinhoso, sem dizer nada, enquanto as pessoas passam por nós se desviando para não esbarrarem em nossos corpos.
— Você está muito linda.
Dou uma risadinha sardônica e passo meus braços em volta do pescoço dele, mordendo meu lábio inferior.
— Você diz isso todo dia — observo.
As mãos dele seguram minha cintura por instinto, nossos corpos chegam ao limite máximo possível de contato entre um homem e uma mulher vestidos.
Nosso beijo agora é cadenciado, alternado entre olhares cheios de mensagens, sem que nossas mãos se mexam.
— Porque é verdade — ele sustenta sua opinião.
Minutos depois estamos andando de mãos dadas numa calçada cheia de barzinhos, pubs e restaurantes.
Estou gostando de verdade de ter esse momento com ele, tão normal, longe da rotina louca de ensaios que eu tinha na Letícia Ballet. Se eu estivesse, eu ainda estaria ensaiando com as meninas.
Mas de tanto dançar, nossa mente acaba se moldando a essa vida e nosso corpo sente falta.
Quase não me reconheço ao de repente me olhar de cima para baixo e me ver só com um vestidinho preto, até a metade das minhas coxas, e calçando um par de sandálias pretas de salto com várias tiras em volta das minhas pernas. Me sinto um ser diferente.
Os dedos feios à mostra dos meus pés, com unhas encravadas, bolhas e calos grossos de tão velhos, são os únicos sinais de que sou dançarina.
A verdade é que me sinto suspensa no espaço, perdida, quando meu corpo não está se movimentando. É quando o corpo de uma bailarina dói que sua alma está em paz.
— Já te deram um papel importante numa montagem? — o timbre agradável da voz do meu namorado me tira dos meus devaneios.
— Não — balanço a cabeça negando. — Hoje foi meu primeiro dia. Acho que vai demorar um pouco para eu ensaiar com o elenco.
— Logo vão te dar.
— Tomara. Ah! Amanhã vou ter minha primeira aula de pas de deux.
Como eu imaginava, o semblante do meu namorado se fecha um pouco. Ele não consegue esconder que não gosta que bailarinos toquem meu corpo, mesmo sabendo que ele são gays.
Uma moça de saia curta e sorriso com aparelho de dentes vem ao nosso encontro, me dá uma rosa branca e continua andando.
— Vivemos pisando em espinhos, mas às vezes a vida nos oferece flores — olho para o espécime de flor como se ela fôsse um tipo de sinal.
— Sim — Odin concorda. — Ela pode ser boa às vezes.
Olho por sobre meu ombro, sorrindo por ver que ainda existem atitudes bonitas por parte das pessoas. Aquela garota está dando uma pequena contribuição ao tentar alegrar pessoas que talvez tiveram um dia difícil, oferecendo-lhes uma rosa branca e um sorriso, sem pedir nada em troca, senão um sorriso.
Deve ser uma garota pobre, com sonhos, projetos. Igual aquela garota loura de olhos azuis de Perdizes, que dança balé num farol e passa uma cartola entre os carros pedindo dinheiro para quem sabe manter vivo um sonho.
Me pergunto se eu tenho motivo para reclamar. Tudo bem que eu trabalhei muito para entrar no Ballet Imperial, mas não posso esquecer nunca que eu nasci bailarina e cresci nesse mundo cor de rosa das sapatilhas de ponta. Mas quantas bailarinas melhores do que eu não puderam realizar o sonho de dançar numa escola boa porque não tem dinheiro ou apoio?
Mesmo assim, elas não desistem. Não por teimosia, mas porque são os sonhos que nos mantém jovens e vivos. Se paramos de sonhar, começamos a morrer.
Quando já não posso mais ver a garota florista, um sorriso doce (com certeza o mais bonito que dei hoje) se desenha em meu rosto.
— Acho que o caminho sempre foi esse — digo ao me virar para Odin. — Viver um dia de cada vez, como se o amanhã não existisse.
Ele assente, pondo com delicadeza uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha. Mas não acho que ele tenha compreendido.
Na manhã seguinte, estou de camiseta branca e calcinha cor de rosa, encostada no fogão e esperando a água esquentar para despejar na cuia com erva mate. Canto a música Fly da Hillary Duff, que escuto através do fone bluetooth. Minha voz soa rouca, já que acabei de me levantar. Sei que a Luna está na varanda do primeiro andar — eu a ouvi cantando quando me levantei — , mas as outras garotas devem ter saído para caminhar ou comer pão de queijo num café da rua de trás.
Desligo o fogo logo que as primeiras bolinhas aparecem na superfície da água, então despejo um pouco na cuia e o restante na garrafa térmica.
Minhas sobrancelhas se juntam quando, ao me virar, vejo Kaune entrando na cozinha. Ela está com uma camiseta azul bem folgada e comprida, não dá para saber se está só de calcinha também ou um short. Só que não ligo pra isso.
— Bom dia — ela diz e posso notar que não está à vontade por me ver.
A garota índia também não é a primeira pessoa que eu esperava ser a primeira a ver. Mas minha educação veio ao Rio de Janeiro comigo.
— Bom dia — respondo sem emoção.
— Danny…
Empino o queixo para que ela continue.
— Por que você não contou pra madame Olga que eu te fiz ir para a sala das bailarinas da companhia principal?
— Queria que eu tivesse contado? — rio.
— Não.
— Então?
— É que você chamou pra si a culpa. Não me acusou. Qualquer outra garota teria contado a verdade.
— Eu não sou qualquer garota — desvio da bailarina amazonense e ando até a porta.
— Danny…
Paro de novo me perguntando o que mais a Kauane quer falar.
— Obrigada. E desculpe.
— Ok. Sem ressentimentos.
O fato de eu não estar ressentida com a garota não quer dizer que eu esteja pronta para confiar nela. E ela é amiga da Dominique, uma garota que não gosta de mim e quer dificultar minha vida no Ballet Imperial.
Subo a escada e atravesso o quarto, passando pelas portas duplas que dão acesso ao terraço. Luna está sentada numa das duas espreguiçadeiras, cortando com uma tesoura um pedaço da unha do dedão do pé esquerdo. Ela murmura um merda, só percebendo que estou ao seu lado quando digo oi.
A morena assente com respeito ao me fitar, logo continuando seu trabalho de manicure.
— Quer um gole? — sorrio, oferecendo a cuia a ela.
Os olhos de Luna se dividem entre prestar atenção nos meus olhos e na cuia na minha mão direita. Ontem ela confessou que sempre teve vontade de tomar mate quente, depois que contei que nasci e passei parte da minha infância em Santa Catarina.
Uma linha reta e bem fina divide os lábios dela. Nenhuma palavra sai de sua boca.
— Pega — insisto, sempre sorrindo.
Luna aceita o oferecimento após pensar um pouco. Toma um gole. A cara que ela faz é engraçada, embora não pareça estar para brincadeiras.
— Gostou? — pergunto.
— É meio amargo — ela volta a acomodar a lâmina da tesoura abaixo da unha.
Espero alguns segundos. Meu sorriso some diante da frieza da minha colega de quarto.
— Luna, você ainda está brava comigo?
Parece que a garota toma uma pedrada na testa. Ela levanta a cabeça e franze o cenho, corroborando minha suspeita.
Ela anda até a sacada, diante da qual está um prédio alto com árvores lá embaixo. Ouço um suspiro aborrecido e alto fugir de seus pulmões antes dela se virar para mim e me olhar chateada.
— Por que tu não contasse que é filha da Françoise e do Daniel?
— Porque eu achei que não tinha importância, só isso.
Luna põe a mão na testa, anda até a outra extremidade da sacada.
— Tu é filha do Cisne Branco — as palavras dela estão impregnadas de mágoa. — Desde que eu entrei no balé aos cinco anos, ouço falar dessa mulher. Todo mundo diz que ela é uma lenda, a melhor de todas, a top, e tu esconde de todo mundo? Por que?
— Porque ninguém sabe como eu me sinto quando as pessoas fazem comparações entre minha mãe e eu — respondo em voz alta. — E porque quando todo mundo sabe disso, me olha de um jeito diferente, como se eu fôsse uma cópia dela e como se eu fôsse obrigada a fazer o que ela fazia.
Dou dois passos em direção ao quarto quando de súbito Luna me faz parar.
— Danielle.
Primeiro a olho por sobre meu ombro, antes de virar meu corpo completamente.
A bailarina paraibana quase encosta seu corpo no meu. Sou pega de surpresa ao ter minha mão segurada por ela, percebo que quer dar um sorriso.
— Desculpa — só essas palavras bastam para que eu sinta vontade de dar um abraço nela e esquecer o que não importa.
— Tudo bem — meu sorriso volta.
Luna me olha de agora de um jeito tão doce e amigo que sinto que posso confiar nela, que não preciso ficar me escondendo. Porque se esconder é coisa de criança.
Com certeza vai rolar entre nós aquela rivalidade tão gostosa no balé, uma querendo mostrar quem salta mais, quem gira mais pirouettes ou mais fouettés, mas no que depender de mim, vou fazer de tudo para que nossa amizade dure.
A verdade é que eu não sou uma ilha. Eu preciso de pessoas. Preciso me abrir com elas, não só com um diário.
Luna por fim dá um sorriso mais atrevido, passa os dedos em meu cabelo, me olha bem dentro dos meus olhos.
— Prometo que não vai mudar nada — ela diz.
— Obrigada — agradeço.
Os olhos dela se direcionam para a minha mão que segura a cuia com mate.
— Me dá mais um gole?
Balanço a cabeça levemente para os lados, ofereço o mate para a bailarina morena e andamos ao lado uma da outra para dentro do quarto.
Com a Isabella e a Melissa foi mais fácil. Elas não mudaram comigo, a conversa entre nós flui normal até que do nada o futebol aparece como assunto. Se quer se indispor com alguém, basta falar sobre um esporte em que homens com pernas musculosas correm atrás de uma bola, e de repente, alguém falar mal do seu time.
Fico ressentida por Luna achar que, por estarmos no Rio, tenho que torcer para o Flamengo, o que para mim é ofensivo. Nunca vou deixar de torcer para o Corinthians, não importa para onde eu vá.
O que me deixa surpresa é que muito antes dela sair de João Pessoa, já torcia para o time rubro-negro. Realidade comum de quem mora em estados sem um grande clube, o que não é meu caso, já que minha mãe era corinthiana e meu pai também é. Meio que herdei deles esse amor pelo Timão.
Nossa conversa na bancada do café da manhã termina com muitas risadas. Nós quatro saímos juntas, com nossos conjuntos de moletom do Ballet Imperial de Petrópolis e mochilas cheias de cadernos, livros, collants e sapatilhas.
...
Ao me sentar à carteira, percebo os olhos azuis e frios de Yuri se conectarem aos meus por um instante, o que me sentir um pouco desconfortável. Seu rosto pálido denota desconfiança e hostilidade. enso que ele é um desses que sente raiva de alguém só pelo fato deste alguém existir.
Como não estou a fim de deixar que um garoto com pose de durão me intimide, ofereço ao russo um meio-sorriso desafiador ao mesmo tempo em que sustento seu olhar no meu. Ele interrompe o contato visual, voltando a se concentrar no livro que estava lendo quando entrei.
Continua...
Capítulo de 2,8k de palavras
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