Capítulo 7 - parte 2
Parece que estou ouvindo mamãe conversando comigo, durante uma aula que fizemos juntas no nosso estúdio de paredes de vidro. Me lembro que eu estava emburrada por não conseguir girar uma pirouette.
Não importa que você errou. Continue mesmo assim. Dance para se sentir feliz, não para agradar sua professora.
Antes que a lembrança do abraço e do sorriso de Françoise aperte meu peito, lembro a mim mesma que eu sou uma Shushunova. E uma Shushunova é uma bailarina forte, nunca se deixa vencer pela emoção, nunca perde o equilíbrio.
Giro uma pirouette en dehor na barra, termino a sequência de grand battements. É o último exercício da barra. Todos os meus músculos estão queimando, mas um sorriso brinca em minha boca por ter chegado aqui sem errar muito.
Nastia e eu saímos juntas da barra e andamos para o fundo da sala em absoluto silêncio, sem olhar uma para a outra. Aproveito o pequeno intervalo para aquecimento e me alongo um pouco no chão, abrindo espacate. A garota ruiva se alonga em posição de sapo, boa parte de seu bumbum à mostra.
Voltamos quase lado a lado para o centro da sala. Dominique corta minha frente, como se quisesse mostrar que é a principal bailarina da turma e que eu tenho que saber qual é o meu lugar. Fico na segunda fila entre a Luna e a Kauane.
Quando os sons das nossas sapatilhas de ponta cessam e as alunas se perfilam, Olga para diante da parede de espelhos e de costas para nós. O port de bras que ela executa é absurdamente lindo, com os braços bem arredondados e fazendo movimentos cheios de delicadeza.
— Oito tempos — explica ao se virar para nós. — Preencham a música. Sem pressa, com graciosidade.
Fico em quinta posição de pernas croisé, com a perna direita à frente e a cabeça olhando para o espelho. Inspiro. O piano é tocado e meu corpo responde à música.
…
Quando mamãe me perguntou o que eu queria ser quando crescesse, não tive dúvida ao responder que queria ser bailarina igual à ela. Eu só tinha dois anos de idade, mas sabia que a dança é que me faria a garota mais feliz do mundo.
Tudo na dança me fazia lembrar de beleza. Mamãe, com apenas dezessete anos, usando collant púrpura com a estampa do Bolshoi. Seu coque sempre lindo, suas sapatilhas Grishko. Ela era uma Princesa de Cristal, sempre perfeita e linda.
Por ser filha de bailarinos, o Bolshoi era como se fosse minha segunda casa, e eu tinha o privilégio que poucas meninas têm: poder viver todos os dias naquele mundo de sonho, de beleza e glamour. Ver meus pais dançando como um casal de príncipes e me mostrando os primeiros passos do balé foi o começo de tudo pra mim.
Quem me acha só uma atleta de alta performance que estica os músculos e tem força e flexibilidade nunca tentou me entender de verdade. Sou muito mais do que uma garota flexível que salta e gira. Eu tenho sentimentos, que não os expresso com palavras, mas com meu corpo. Eu vejo o mundo com um olhar diferente de pessoas normais. Eu vivo neste mundo junto com elas, mas não pertenço a ele.
Formamos a fila para os exercícios de diagonal, com Dominique e Nastia à frente. As duas são tão diferentes, e ao mesmo tempo tão parecidas. Diferentes porque a garota de olhos verdes tem explosão, força e técnica, e salta e gira com controle. Já a russa é mais expressiva, graciosa. E são parecidas porque dão tudo de si.
— Caramba, ela dança muito — comento com Luna à respeito da irmã de Yuri.
— A Nastia tem as limitações dela — a morena responde —, mas dança demais mesmo.
Cada subida e descida de braços da russa é como um bater de asas de um cisne, simplesmente algo lindo. Parece que ela está dançando num palco, com dezenas de pessoas a admirando, e não numa sala de aula.
— Pronta? — Luna pergunta quando fico ao seu lado para começarmos nossa sequência.
— Claro — digo ao fazer port de bras para a pose inicial.
A morena e eu saímos juntas, em perfeita sincronia. Mas acho que errei alguma coisa porque Olga me olha à modo de reprovação enquanto ando na meia ponta e em bra bas ao lado da Luna pelo canto da sala. Como ela parou a aula várias vezes ainda na barra para corrigir meus erros, não vai ser diferente agora.
A professora espera as duplas terminarem o exercício. Isabella e Melissa parecem nem ter peso quando saltam depois de tomarem impulso no plié. Mas quem chama mesmo minha atenção é uma garota loura, alta, pálida e de olhos azuis, que faz par com a Kauane. A garota não sorri, na verdade nem me lembro de tê-la visto mexer os lábios. As duas terminam suas sequências e vão para o fim da fila, para que a gente repita o exercício no canto esquerdo.
— A Sasha é a bailarina de gelo da nossa turma — Luna sussurra ao meu ouvido.
Então, Olga vem até mim. Seu semblante não mostra muita predisposição em ser simpática, mas também não aparenta ser tão assustadora como as meninas disseram hoje de manhã enquanto nos sentávamos para tomar água em frente à praia.
— Com essas pernas lindas e compridas, você salta tão baixo? — observa secamente.
Não acho que eu tenha saltado baixo. Porque minhas pernas são compridas tenho que bater minha cabeça no teto para agradar a mestra de dança russa?
— Não pense em não dar o máximo de si na minha aula — ela continua. — Faça! — estende sua mão para o canto.
Com os olhares curiosos das bailarinas fixos em mim, caminho até a direção apontada pela mão de Olga. Concentre-se, você pode, digo a mim mesma.
— Port de bras, tombé, pas de bourreé, glissade, grand jeté.
Faço com as mãos os movimentos passados por Olga, a fim de não esquecer.
— Tombé, pas de bourreé, glissade, grand jeté.
Repito mentalmente.
— Caminhe dois passos, piqué e arabesque.
Aceno e executo estes últimos passos.
— Melhor, Danielle. Mas mantenha seu olhar num ângulo reto com seu dedo indicador quando subir na ponta. No arabesque, você tem que olhar para o infinito, ter uma expressão viva. Consegue entender? Seu olhar vai além do que está diante de você.
Confirmo com um balançar discreto de cabeça que entendi.
Quando Olga termina de passar todas as correções, volto para a diagonal e fico à espera de que o pianista toque de novo.
— Por favor, desta vez sorria — a mulher pontua. — É um grand allegro, não é?
Ok, respondo em pensamento.
Desta vez meus grand jetés saem mais altos. Parece que o mundo gira ao meu redor, tentando me confundir quando giro piqués e chainés, mas me mantenho equilibrada até o fim.
Faço a pose final e volto para o meu lugar atrás da Luna, que sorri em aprovação. Retribuo com uma expressão de felicidade.
— É isso que eu quero — Olga Fiodorovna enfatiza. — Entrega, ousadia, atrevimento. Não preciso ficar pedindo para vocês se jogarem, quando vocês sabem que não aceito menos que isso.
Um silêncio opressivo preenche a sala após a russa externar de uma forma direta que não gosta de lembrar coisas que devíamos ter aprendido.
...
Olga interrompe a aula muitas vezes, a maioria delas para me corrigir.
Danielle, seus braços de segunda posição estão atrasando na pirouette.
Mantenha o olhar acompanhando o movimento da mão.
Encaixe o quadril.
De tanto ser lembrada dos meus erros, de como eu tinha que manter meu alinhamento corporal e um monte de coisa, minha cabeça entrou em parafuso. Murmurei vários palavrões bem baixinho, suspirei aborrecida.
Pelo menos não sou a única que está errando. Quem diria que a princesa Dominique também tem seus dias de gata borralheira? Se ontem ela se saiu melhor que eu nos fouettés en tournant, hoje ela está deixando muito a desejar.
Ela me fuzila com os olhos quando me vê de braços cruzados e sorrindo com ironia. Claro que, quando a primeira bailarina júnior passa por mim, não deixo passar batida a chance de dar o troco.
— Pensei que você fosse o futuro do Ballet Imperial de Petrópolis — digo com voz insinuosa quase ao seu ouvido.
Dominique se vira para mim em choque. Com certeza não esperava ser afrontada por uma novata.
— Vá se foder, garota! — ela grunhe, me dando vontade de rir.
Balanço a cabeça para os lados, rindo baixinho da minha colega.
A aula dura quase duas horas. Conforme o combinado com minhas colegas de quarto, vamos à cantina, e enquanto rimos e conversamos (comendo pão de queijo e tomando suco), nossa atenção se desvia para Yuri e Nastia. Eles entram em silêncio e se sentam numa mesa com dois lugares ao lado da janela.
Os gêmeos são idênticos, em cada detalhe. O formato do nariz, as sardas, o cabelo ruivo. Mas a garota parece deslocada, nem parece pertencer a este mundo. Não deve ser só timidez, eu sei que há algo de peculiar com ela, que ela disfarça super bem quando dança.
E como aquela garota dança! Nas quase duas horas de aula puxada que tivemos, ela deu uma aula de graciosidade e leveza, poucas vezes tendo sua atenção chamada por Olga.
Pelo pouco que vi dela, percebi que está sempre concentrada, sempre focada em sua dança, e alheia à tudo. Em momento algum a garota russa olha para o lado. É como se não existisse um mundo à sua volta.
— Danny — olho de repente para Luna.
— Oi? — acordo do transe.
Minha amiga ri.
— Olhando para a Nastia?
Não gosto da malícia das palavras da morena.
— Garota, eu tenho namorado, tá?
Melissa e Isabella riem e tenho vontade de jogar meu copo de suco nos rostos das duas.
— Danny, só olhar não é trair — a garota da Paraíba explica.
— Não é nada disso — rebato com impaciência. — Eu estou olhando para a Nastia, mas não do jeito que vocês estão pensando.
— De que jeito então? — Isabella insiste.
— Na forma como ela olha para as coisas. Para as pessoas. Para o irmão dela — nesse momento, Yuri diz algumas palavras para a ruiva. — Ela parece olhar de um jeito tão…, sei lá, invasivo. Ela parece enxergar além do que os olhos dela vêem.
Luna bebe um gole de suco, cruza os dedos sobre a mesa.
— A Nastia é autista — esclarece.
Minha boca semiabre com a informação inesperada. Bom, isso explica muita coisa, inclusive a atitude protetora do Yuri com ela.
— Eu estava desconfiando — admito.
— Ela não tem amigos — Luna prossegue. — Fala muito mal o português, só conversa abertamente com o irmão, e com a Sasha. As duas russas dormem no mesmo quarto.
— Bem que podíamos ser amigas dela — sugiro.
As três trocam entre si olhares admirados. Em seguida me olham como se eu tivesse falado algo bem nada a ver.
— Tentamos muitas vezes — Melissa passa o guardanapo de papel na boca após comer seu pão de queijo —, mas ela não se abre.
— Talvez vocês não tenham tentado do jeito certo — cogito. — Talvez vocês tenham se aproximado dela por pena, compaixão, e não porque queriam ser amigas dela. Isso faz toda a diferença, sabia?
— Como ser amiga de uma garota que vive num mundo só dela? — Melissa insiste.
— Não é um mundo só dela — enquanto falo, olho de novo para os gêmeos. Nastia delineia um sorriso lindo enquanto Yuri parece estar dizendo algo que a faz se alegrar.
— Ela vive no mesmo mundo que o nosso, só o vê de um jeito diferente — continuo.
Não sei se é por estar vendo aquele momento de cumplicidade entre irmãos ou por querer ser amiga da garota — amiga de verdade mesmo, do tipo que conta tudo e que está sempre ali quando a outra precisa —, mas sinto que ainda existe espaço para sentimentos assim: de amor recíproco, de vontade de proteger alguém.
Yuri pode ser de poucas palavras. Pode ser frio quanto Sasha, mas é o melhor irmão que a Nastia poderia ter.
…
Mesmo havendo garotas no vestiário, fico nua e visto um maiô asa delta lilás, regata. É um modelo super cavado, que realça meus quadris e mostra todo o meu bumbum. Escolho não botar meia-calça. Boto um par de meias brancas, calço os tênis esportivos brancos, e após desfazer o coque de bailarina, prendo o cabelo num rabo de cavalo médio.
Me aproximando do espelho, sorrio pra mim mesma e puxo um pouco a parte de trás do collant para cima, a fim de mostrar um pouco mais meu bumbum. Ponho a mochila nas costas, vou para a sala de musculação da escola.
— Oi — me dirijo sorridente ao instrutor, que retribui.
Ele me faz várias perguntas às quais respondo de forma direta, e me mostra os vários aparelhos da academia. Conta que as bailarinas realizam exercícios específicos, conforme suas necessidades.
Logo de cara, o cheiro de suor dos bailarinos e o som dos pesos provocam em mim uma mistura de emoções que não sei definir. Um pouco de nervosismo misturado com ansiedade.
Escolho como primeiro aparelho o Peck Deck, que é o que trabalha os músculos do peito.
— Vamos lá. Sente-se, eu te mostro como funciona — Sergei me pede pra sentar na cadeira.
Ele começa ajustando a altura do assento, enfatizando que é importante eu estar na posição correta para ter conforto.
— Sente-se e ajuste o encosto para que suas costas fiquem bem apoiadas — sigo a orientação do russo.
— Agora, coloque seus braços nas alças das manoplas —ele continua —, e lembre-se de manter os cotovelos ligeiramente flexionados.
A textura fria do metal sob minhas mãos me traz uma sensação nova, que não sei explicar.
— Danielle, antes de começar, faça alguns testes para ver a carga ideal — o instrutor sugere, e com a destreza de quem trabalha na área fitness há anos, ajusta o peso.
Faço um movimento leve para frente, sentindo a resistência. A sensação é diferente, mas muito empolgante. Ele me observa com atenção e corrige minha postura.
— Mantenha o foco no peito, não use os braços para puxar — Sergei recomenda.
— Ok. Assim? — pergunto.
— Isso. Muito bem.
Depois de alguns minutos de prática, comecei a me sentir mais confortável. Sergei sorri em aprovação, e quando vê que peguei o jeito, me deixa me exercitar sozinha para observar outros alunos.
Meu maiô lilás já está molhado de suor. Dou uma pausa na série para tomar um gole d'água, tirando a garrafa metálica da mochila. Neste instante, Dominique entra. Ela usa um macacão regata cor de rosa, polainas e tênis, e parece estar segurando uma revista. Kauane, com um short lycra rosa e top preto, chega logo depois da amiga.
Um suspiro de puro tédio foge por entre meus lábios, mas tento não dar importância à presença das duas, me ocupando apenas em me hidratar. Porém, elas vem ao meu encontro, tornando impossível ignorá-las.
— A bailarina adolescente mais linda do mundo.
Levanto a cabeça rapidamente ao ouvir essas palavras. Droga! Dominique está segurando a edição da Ballet Ilustrated da qual fui capa no mês passado.
— Então, a nova bailarina da nossa escola é filha do bailarino Daniel Răducanu e da princesa Françoise Shushunova — a morena de olhos verdes folheia a revista e me mostra a página em que estou fazendo exercícios de barra com a Antonella.
— É, sou filha da maior bailarina de todos os tempos — corto com rispidez. — E daí? Isso tem alguma importância pra você?
Dominique dá de ombros.
— Nenhuma — diz com desdém. — O fato de você ser uma Shushunova não quer dizer nada pra mim.
— Ah, é? Que bom. Porque, se você quer um autógrafo, não tô a fim de te dar.
Dominique põe as mãos na cintura, ri ruidosamente fazendo minha paciência chegar perto de zero.
— Garota, você é sempre assim, marrenta? — ela pergunta com um sorriso zombeteiro dando a deixa para que eu dê em seguida uma resposta à altura.
— Só com quem eu acho que merece — dou de ombros. — Sorry, baby.
— Sei. Não espere isso de mim. Pra começar, nunca fui fã da sua mãe. E depois, mesmo que as pessoas te vejam como a princesa bailarina — ela faz um sinal de aspas com os dedos —, isso não tem importância alguma no Ballet Imperial. Não é de quem você é filha que importa para os professores, mas o que você pode fazer.
— Ótimo.
Dominique e eu ficamos nos encarando sem dizer uma única palavra por segundos que parecem uma eternidade. Só agora percebo que Luna, Melissa e Isabella estão atrás dela, e as expressões das três são pateticamente iguais.
— Quer ler? — Dominique me estende a revista.
— Obrigada — recuso. — Eu tenho uma edição. Em inglês.
— Então tá — a morena deixa a revista cair. — Eu só queria ler sobre o festival que teve em Nova York, e que você ficou em primeiro lugar. Bye, bye, pata choca.
Dominique me vira as costas e anda com Kauane em direção a um dos aparelhos.
Percebo que Luna está com uma sombra de ressentimento em sua fisionomia enquanto folheia a revista, o que me faz perguntar a mim mesma por que não contei à ela quem sou, e o que isso vai mudar de agora em diante entre nós.
Melissa e Isabella estão flanqueando-a, olhando com atenção cada foto, lendo cada frase do artigo.
— Bailarina adolescente mais linda do mundo, filha do Daniel Răducanu e da Françoise Shushunova — Luna fecha a revista. — Por que tu não contou pra gente?
Hesito antes de responder.
— Achei que não tivesse importância.
Luna expele o ar pela boca, deixa a revista com a Isabella e sai, murmurando algo, que não sei se é um palavrão ou um desabafo. Ela tem motivos pra se sentir ressentida comigo.
Capítulo de 2,8k de palavras
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