Capítulo 6 - parte 1
Nothing's fine, I'm torn
I'm all out of faith
This is how I feel
I'm cold and I am shamed
Lying naked on the floor
Illusion never changed
Into something real
I'm wide awake and I can see
The perfect sky is torn
Natalie Imbruglia, “Torn”
— Oi — a garota de pele oliva diz ao me ver andar em sua direção. — Desculpa eu ter te informado a sala errada. Sou péssima com direções.
Passo pelas duas garotas sem demonstrar emoção e me sento no banco de madeira que se encontra livre. Não sou idiota pra não perceber o divertimento no rosto delas, mas é meu primeiro dia aqui e não quero arranjar briga com ninguém.
— Tudo bem — dissimulo um sorriso. — Acontece. Eu gostei, fiz uma ótima aula. Foi incrível fazer aula com bailarinas que sabem dançar de verdade, e não com meninas de nível baixo que se acham.
A boca da outra garota se abre em espanto com meu mal disfarçado azedume. Pelo jeito, não vou conseguir me segurar e não arrumar briga vai ficar só na vontade mesmo. Posso ser meio romena, mas o sangue quente italiano corre nas minhas veias. Afinal, sou filha da bomba relógio chamada Françoise.
— Olha, eu entendo que você esteja brava… — a índia para no meio da frase quando a encaro.
— Brava? Por quê? — respondo com ironia. — Eu dividi a mesma sala com a Lara Machado, primeira bailarina daqui. Aprendi passos novos. Recebi dicas. Só uma idiota pra não se sentir honrada.
As garotas se entreolham boquiabertas, em seguida voltam a me fitar.
— Vocês fizeram essa aula alguma vez? — minha pergunta é meramente retórica.
O aceno negativo das duas confirma o que eu já imaginava.
Que pena, penso.
Desamarro minhas sapatilhas de ponta, pondo-as na bolsinha, tiro as polainas e fico pelada na frente delas depois de desmanchar o coque e soltar meu cabelo. Visto o conjunto de moletom da escola, calço os tênis.
As meninas me olham como se sentissem uma urgência opressiva de falar alguma coisa para que o silêncio incômodo entre nós se quebrasse.
Que pena que não estou para conversas.
— Sério mesmo, Danielle — a garota de lindos traços indígenas continua —, me desculpa.
— Tudo bem — dou a conversa por encerrada.
Guardo meu collant sujo e molhado de suor na mochila, fecho o cadeado do armário.
Quando estou à um passo de sair, Dominique entra e barra meu caminho. Os olhos verdes dela me avaliam, do mesmo jeito que de manhã na aula de Matemática, com uma expressão desafiadora sustentada por um sorriso cheio de malícia, superioridade e arrogância.
Não me importo que as pessoas não gostem de mim. Nunca perguntei à uma cobra porque ela pica a gente. Mas é bom que essa garota me dê logo um motivo para eu tirá-la do meu caminho, caso resolva bater de frente comigo.
— Olha quem está aqui — a bailarina de pele bronzeada diz com uma animação que sei que é tão falsa quanto seu sorriso. — A garota de São Paulo que arrasou na aula dos bailarinos da companhia principal. Parabéns, Danielle.
Dou de ombros.
— Obrigada — respondo. — Nem fui tão bem assim. Errei muito. Mas me diverti e aprendi muita coisa.
— Além de boa bailarina, é modesta. Você tem futuro aqui. A professora Tatiana gostou de você.
— Deve ser porque eu tenho o que esta companhia precisa. Ousadia, graça, um toque de sensualidade. Difícil conjugar tudo isso numa única bailarina, não é?
Minhas palavras parecem ferir Dominique como uma bofetada. Um sorriso se forma em minha boca enquanto o semblante dela fica pálido, sua jugular tensionando.
— Você é do tipo que se acha só porque recebe um ou dois elogios, não é?
— De jeito nenhum. Tudo isso que eu falei de mim foi dito por jurados das competições de dança que eu venci. Não sou de contar vantagem, nem de falar. Eu faço.
— É mesmo? — a garota põe as mãos na cintura, tentando esconder a irritação crescente. — Sorte sua. Você não vai muito longe se não mostrar logo a que veio. Sabe, aqui no Ballet Imperial de Petrópolis não é como na escolinha de bairro onde você estudava em São Paulo. O nível técnico das bailarinas daqui é outro. Nós ficamos cinco anos sem participar dos festivais da Promoarte porque a produtora achava injusto que bailarinas de uma companhia profissional competissem com bailarinas de pequenos estúdios. Sempre que a gente sai pra dançar, a gente ganha tudo.
Escuto com atenção às palavras da primeira bailarina júnior. Parece que a qualquer momento vou perder meu controle.
— A Duda, que é a Primeira Bailarina Estadual Júnior pela Promoarte, é só uma criança perto de qualquer aluna daqui — ela prossegue. — Qualquer uma daqui pode vencê-la.
Quem essa arrogante pensa que é, para menosprezar minha antiga escola? Com certeza ela nunca viu a Duda, a Nicole e a Jordana dançando. Pior: não me conhece.
E não sabe que também tenho a língua afiada.
— Engraçado. Nunca ouvi falar de você, Dominique. Mas todo mundo sabe quem é a Duda.
Dominique estreita os olhos. Posso ver nitidamente a raiva em seus olhos negros, e isso me diverte. Sem mais nada a dizer, passo ao lado dela para sair.
— As pessoas sabem quem é a Duda — a morena quer dar a palavra final — e logo vão saber quem eu sou. Mas e você? As pessoas sabem quem você é?
Fecho os olhos mantendo o sorriso.
— Isso pra mim não importa. Eu não danço pra ser conhecida ou ter fama. Eu danço porque é a coisa que eu mais amo e quero dividir isso com as pessoas.
— Uau! Pois estou ansiosa pra te ver dançando. Quero ver se você é mesmo um cisne, como pensa que é, ou se é só uma pata choca, como eu penso.
Pata choca?
— Agora há pouco tu disse que eu era uma boa bailarina e que tenho futuro aqui — ironizo sem me alterar. — Mudou de opinião?
— Ser boa bailarina é pouco nesta escola — Dominique explica. — Você tem que ser a melhor sempre. A mais fodida. A Lara é a mais fodida daqui, mas eu sou o futuro. Por que você acha que eu faço aula com ela?
Dou de ombros.
— Logo eu vou ser Primeira Bailarina da companhia — ela aproxima seu rosto afrontosamente do meu, possibilitando que eu aspire seu cheiro de suor.
Não estou dando a mínima importância à provocação da Dominique. Não vale a pena perder tempo com ela.
Petulante, ou só alguém que precisa se sentir a bailarina fodida da escola, eu vi na aula o que ela é capaz de fazer. A arrogância dela é bem sustentada por sua técnica limpa e movimentos simétricos. Não consigo esquecer que ela girou mais fouettés que eu, que são exercícios que eu achava que tinha dominado.
Mas como seria diferente? Foi para aprimorar minha técnica que saí da capital paulista.
Tenho que melhorar muito se quiser fazer parte de uma montagem. Pode ser que demore dois meses, seis, um ano, mas quero que todo mundo aqui se encante comigo.
— Então tá — insisto em me manter o sorriso no meu rosto.
Dominique ri. Que pena ser tão bonita e tão metida.
Passo por ela sem dar tchau, nem mesmo olho para as outras duas que ficaram quietas enquanto a primeira bailarina e eu trocávamos farpas.
— Não vai assistir nosso ensaio?
Quem pergunta é a amiga da garota burra que me fez entrar na aula errada. Paro e a olho por sobre o ombro.
— Estamos ensaiando o Ato 2 de Lago dos Cisnes — ela continua. — A Dominique é a princesa Odette.
A bailarina morena empina o queixo com orgulho e altivez.
— Que bom pra você — direciono o rosto para o corredor, por onde bailarinos passam com mochilas andando em direção às salas de aulas de outras modalidades.
— Você devia assistir — Dominique sibila. — Assim, pode se masturbar vendo como bailarinas de verdade dançam.
As outras duas riem e as ignoro. Quando já estou fora, escuto lá dentro uma delas fazendo quá! quá!, imitando uma pata (com certeza aludindo à última parte da frase da Dominique), e em seguida as três soltam uma gargalhada.
— Aquela pata choca vai ver o que é concorrência — Dominique afirma com tanta convicção que acho que não vou dormir esta noite.
— Mostra pra ela quem manda, amiga — a garota com traços de índia a incentiva.
— Acaba com ela — a outra a apoia.
Bom. Pelo menos sei que já tenho três desafetas. Fazer amigos aqui, pelo visto, é mais difícil do que parece. Me faz lembrar meu primeiro dia na Letícia Ballet, com a Alice fazendo bullying comigo e as outras meninas me olhando com pena por eu ser careca.
Só que éramos crianças.
Ligar para a Luna e perguntar onde ela e as meninas estão nem passa pela minha cabeça, já que elas estão ensaiando, e por isso, vão voltar para o dormitório mais tarde. Não vejo a hora de começar a ensaiar também.
Por enquanto me sinto um passarinho numa gaiola, querendo voar e sem poder, mas sabendo que ele pode ir longe. Elas vão ver o que a pata choca pode fazer quando vestir um tutu.
Odin combinou de me levar para um barzinho. Talvez hoje à noite eu durma no apartamento dele, e tenho que avisar Paloma, pra que não se preocupe.
Não consigo imaginar que o Rio de Janeiro seja tão perigoso quanto os jornais pintam. Acho que gente perigosa e mal intencionada existe em todo lugar. Mesmo assim, ando com todos os meus instintos despertos, atenta ao menor sinal de aproximação às minhas costas.
Tudo aqui é tão diferente da capital paulista.
As pessoas se vestem de forma mais despojada, mesmo à noite. Meninas usando regata, rasteirinha, homens de bermuda e tênis. E os prédios de linhas modernas são um lembrete de que estou num dos bairros mais caros do Rio e também o queridinho de artistas.
Provoco sem querer um estrondo na porta ao fechá-la e Paloma sai do quartinho onde dorme com um livro na mão.
— Desculpa — falo sem graça.
— Tudo bem, essa porta é escandalosa mesmo — ela retruca.
Me deixo cair no sofá, suspirando.
— Como foi seu primeiro dia de aula?
Dou um sorriso.
— Até que foi legal. Os professores das aulas regulares são prestativos, fiz Educação Física e uma aula com a companhia. Até ganhei um apelido carinhoso — reviro os olhos.
— Que apelido?
— Pata choca.
Paloma franze as sobrancelhas.
— Quem te chamou de pata choca?
— A primeira bailarina júnior da Promoarte. Uma chata chamada Dominique.
— Ah! Claro. Tinha que ser a estrela jovem da companhia.
— Você a conhece?
— As meninas falam dela. É uma garota cheia de soberba. Dominique não tem nenhum respeito por bailarinas do passado e todo mundo acha que ela é a cara que o balé quer. Bonita. Talentosa.
— Ela é muito boa mesmo — reconheço com sinceridade.
Os fouettés incríveis que a bailarina arrogante executou insistem em ficar na minha cabeça.
— Mais do que isso. A Dominique é acostumada a vencer competições, tem patrocínios fortes, que bancam as viagens dela para a Europa, e o Ballet Imperial aposta nela como a nova cara do balé brasileiro.
Então, a garota não contou vantagem.
De certa forma, ela e a Duda são parecidas. Fico de saco cheio com essas rivalidades tão idiotas, às vezes levadas para o lado pessoal. Tudo bem que isso nos ajuda a evoluir, e que é biológico, mas é tão desgastante.
Mordo meu lábio inferior enquanto penso sobre as informações que Paloma me dá. Decido não deixar que uma garota metida tire minha alegria por estar na melhor escola de balé do Brasil.
Melhor esquecer.
— Paloma, meu namorado vai me levar pra sair — delineio um sorriso maroto. — Tem algum problema eu passar a noite fora?
A monitora dá de ombros, me olha por sobre o ombro enquanto gira nos calcanhares.
— Problema algum — retruca. — Você vai da casa dele pra aula amanhã?
— Não, venho aqui pegar meu uniforme.
Paloma parece refletir enquanto fica quieta por um instante.
— Antes que eu me esqueça — dá um pulinho e vai até o quarto de onde saiu, voltando com uma chave.
— É pra você poder entrar e sair a hora que quiser — explica. — Eu não posso ficar aqui o dia inteiro, porque tenho outro trabalho, assim vocês tem liberdade de entrar e sair caso eu esteja fora.
— Obrigada, Paloma — agradeço sorrindo.
— Pah — a moça negra retruca.
— Oi?
— É meu apelido. Pode me chamar de Pah.
— Ah, tá. E pode me chamar de Danny. Mas não de sardentinha, tá? Não gosto.
— Ok. Danny.
Peço licença à Pah e corro para o banheiro a fim de pegar a roupa que vou usar para sair com Odin. Mantenho os olhos fechados enquanto a água quase fria do chuveiro desce pelo ralo com a sujeira que tiro do meu corpo com a buchinha, ensaboando todas as partes.
Inclino a cabeça para trás, deixo a água cair diretamente na minha testa e escorrer pelo meu rosto, queixo e pelo vale dos meus peitos pequenos. O relaxamento que o banho me dá faz com que eu esqueça de tudo. Sinto meu corpo mais leve. Minha mente só pensa no Odin. Dou um sorriso bobo ao passar o sabonete na minha boceta, imaginando meu namorado me fodendo.
Visto uma calcinha preta Calvin Klein depois de me enxugar demoradamente e faço várias poses provocantes diante do espelho do banheiro. Mordo o lábio inferior, passo a língua nos cantos da boca, chupo meu indicador. Sorrio pra mim mesma.
Ponho uma calça jeans ultra justa, que parece ter sido desenhada sobre meu corpo, e uma camiseta preta de manga comprida do Lacrimosa¹. Para incrementar meu visual, calço um par de coturnos.
Paloma está digitando algo no computador, com uma xícara de café ao lado do mouse, e nem me nota quando paro sorridente ao seu lado. Queria ter essa concentração.
— Como estou? — pergunto dando uma voltinha assim que ela desgruda os olhos do monitor e me vê.
— Está linda — o sorriso enorme que ela dá não deixa pairar nenhuma dúvida.
— Obrigada, Pah.
Mal tenho tempo de começar a sentir ansiedade, a foto do meu namorado aparece na tela do meu iPhone.
— Oi — respondo animadamente.
— Tá pronta? — o tom alegre dele não esconde uma certa impaciência comum em homens que não gostam muito de esperar.
— Tô. Já vou descer — guardo o celular no bolso traseiro do jeans justo, me sobressalto por ver dois pares de olhos negros zombeteiros em mim. — O que foi? — pergunto à Pah.
A monitora revira os olhos, balançando a cabeça de um lado para o outro.
— Nada — responde.
— Tchau — de novo, fecho a porta com estrondo ao sair.
Odin está parado na calçada, com as mãos nos bolsos da calça e com um sorriso bem moleque no rosto. Desço pulando de dois em dois os degraus da escadinha. Posso sentir o cheiro do perfume amadeirado que ele usa antes mesmo de colar meu corpo ao dele.
Dou um selinho em sua boca. Seu gesto de resposta é mais ousado, ele me puxa para si pela cintura com um dos braços e com a outra mão, acaricia minha bunda.
Não que eu não goste desses gestos. Mas estamos numa rua, e as pessoas podem julgar.
— Aqui não — ponho o indicador entre os lábios do Odin.
Ele concorda e junta sua mão atrevida à que segura minha lombar, me fazendo sorrir em aprovação. Trocamos agora um beijo mais demorado, intenso.
Os olhos dele brilham quando desfazemos o contato de nossas bocas. São olhos lindos, como todo seu conjunto físico, que sempre me lembram que sou uma garota de sorte por ter o namorado mais gato do Rio.
— Gostou do seu primeiro dia de aula? — começamos a caminhar de mãos dadas pela calçada.
Penso em alguns fatos que ocorreram antes de responder. Difícil esquecer do episódio do vestiário.
— Achei legal, é diferente da Letícia Ballet — respondo.
— Diferente em que sentido?
Dou de ombros.
— Seriedade, entrega dos alunos, rigidez dos professores. Tudo ali é voltado pra trabalhar nossos corpos e transformar a gente em bailarinos de primeiro nível.
— É o Ballet Imperial de Petrópolis — Odin lembra.
— Eu sei — encosto meu corpo ao do Odin para desviar de um cara que passa por nós com pressa, no sentido inverso, carregando uma caixa do ifood nas costas. — Mesmo assim, parece que a ficha ainda não caiu.
— Logo você se acostuma.
Ao dizer isso, ele me puxa de novo pra si, selando meus lábios com um beijo mais lascivo.
Continua...
Capítulo de 2,7k de palavras
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