Capítulo 5 - parte 1
Quem me dera ao menos uma vez
Ter de volta todo o ouro que entreguei a quem
Conseguiu me convencer
Que era prova de amizade
E alguém levasse embora até o que Eu não tinha
Renato Russo, "Índios"
Não importa para qual direção eu me vire, todo mundo me olha como se eu estivesse fedendo.
A última vez em que senti as maçãs do meu rosto queimarem de vergonha ocorreu há algumas semanas, logo que tatuei meu braço direito. Stefany e eu estávamos passeando à beira da represa, onde papai tem uma casa de veraneio. Eu usava um biquíni de alcinha – tanga branca e top azul –, e Stefany, um maiô preto. Como a margem era de chão pedregoso, nós duas usávamos tênis para caminhar.
Marcos, caseiro de papai, pescava no píer e tinha acabado de retirar um peixe do anzol quando nos aproximamos. Stefany se afastou um pouco enquanto fiquei parada. De repente escutei um zumbido próximo ao meu ouvido e senti algo se enganchar na alcinha da parte debaixo do meu biquíni. Olhei instintivamente pra baixo e vi que minha tanga havia sido arrancada e levada embora.
Envergonhada, pus as mãos na frente da minha boceta, os pelos castanhos expostos pra quem quisesse ver. Fiquei de cócoras, gritando como uma louca pra Stefany correr e buscar outro biquíni. Marcos, coitado não sabia onde enfiar a cara ao se virar e me ver agachada e com o bumbum de fora. Mas não foi culpa dele. Ninguém teve culpa.
Aquele episódio tão embaraçoso – que podia ter destruído minha autoestima – de repente agora parece não ter significado nada.
Lara, toda linda e esticada, se mantém em grand écarte no chão por mais tempo do que o necessário, me analisando, estudando meu corpo.
A primeira bailarina se levanta e caminha em minha direção com um sorriso de princesa brincando em seu rosto. Até o andar dela é gracioso, e eu fico abismada por ela conseguir fazer com que simples pisadas no piso de madeira pareçam um balé.
— Oi — ela diz. — Como você se chama?
— Danny — respondo.
— Danny... Eu me chamo Lara.
— Eu sei. Assisti seu ensaio hoje de manhã. As meninas falaram sobre você.
A garota mantém o sorriso lindo. Não sei se é sincero ou um sorriso artístico, mas me dá um pouco de tranquilidade. Assim como eu, ela gosta de usar polainas, e se abaixa para arrumá-las, puxando-as até os joelhos. Volta a estabelecer contato visual comigo ao se levantar.
Ela é um pouco mais alta que eu. Fico imaginando o quão imponente deve ficar ao subir na ponta dos pés.
— Veio conhecer a escola? — acho estranha a pergunta.
— Não. Sou uma das alunas novas.
— Então, Danny... Não quero ser chata, mas essa aula não é pra você, ok? Essa é a aula das bailarinas profissionais. A pegada aqui exige muito do corpo.
Mordo o lábio inferior.
— Eu nem queria fazer aula — esclareço, sorrindo sem graça. — Só entrei por engano. Mas já vou sair.
Me abaixo para apnhar minha garrafa metálica e enquanto ando em direção à porta, vejo que Dominique está na barra embutida da parede de vidro, fazendo pliés e grand pliés. A garota usa um collant regata com uma sainha preta e curta amarrada na cintura e suas orbes verdes acabam me encontrando acidentalmente quando ela executa um port de bras.
A mudança do semblante dela é instantânea. Posso jurar que seus lábios delineiam a pergunta: o que essa garota está fazendo aqui?
Me pergunto a mesma coisa. Se ela é uma bailarina em formação, não deveria estar na mesma sala das bailarinas da Companhia Jovem.
Dou mais um passo e uma mulher de cabelos brancos, óculos, calças largas e sapatos de dança, se interpõe entre a porta e eu, justo quando estou quase saindo.
Com um vinco surgindo em sua testa e me fuzilando com um par de olhos mais gélidos que o Lago Baikal¹ no inverno, ela me segura pelos ombros, fazendo meu corpo girar.
— Vá para seu lugar, já são 14 horas — a mulher tem uma voz rouca e imponente ao mesmo tempo.
— Não, eu...
— Vá!
Com uma torção terrível da sua mão esquerda, a porta é fechada. Vou para perto de uma garota loura de coque médio com redinha, que usa collant preto, short largo azul bebê e calça legging preta. Seus tornozelos estão à mostra. Noto Lara balançando a cabeça, como se estivesse com pena de mim.
— Pode ficar aqui — a loura me dá espaço para que eu me acomode.
— Obrigada — dou um meio sorriso.
A professora nem precisa fazer esforço para ser notada. Todo mundo a olha atentamente enquanto anda até a pianista, fazendo um toc toc com os sapatos de dança no piso flutuante de madeira.
O silêncio que invade a sala é tão opressivo e sufocante, que até posso ouvir meu coração se chocando contra minhas costelas. Borboletas voam no meu estômago, mas uma parte do meu cérebro me pede calma.
A mestra de dança e a pianista dialogam em voz baixa, e por fim imito o movimento das bailarinas, descansando meus braços em bra bas².
Ela passa ao lado da barra onde estou, os olhos se apertando e o vinco na testa se acentuando. Chego a pensar que vou tomar uma reprimenda assim que ela perceber que estou na sala errada.
Para minha surpresa, a mulher não me dirige a palavra ao passar por mim. Continua andando, tocando nos ombros de alunas, pedindo-lhes postura.
— Aquecimento — a idosa aponta com o queixo para a pianista.
Esta toca o acorde inicial, e imito a garota do meu lado, pondo as mãos na barra, até que subitamente alguém bate a porta e a instrumentista interrompe a música quando a mestra levanta a palma da mão.
— Com licença — uma mulher ruiva entra na sala. — Perdão, professora Tatiana. Uma das alunas da Olga se extraviou e entrou aqui por engano. Vim buscá-la.
Merda!
Os olhares pousam de novo sobre mim. A extraviada. A desatenta, burra, que se deixou cair no trote de uma veterana.
— Danielle, vamos — a recém-chegada me mostra a porta.
Ando em direção à ela dando saltinhos, feliz por poder ir para a minha classe.
— Um momento — Tatiana brada.
Olho por sobre o ombro, vendo um meio sorriso no rosto enrugado da mulher.
— Essa menina tem um físico maravilhoso. Quero ver como ela se sai fazendo aula com bailarinas profissionais.
Minha boca semiabre em perplexidade.
— Tudo bem — a outra dá de ombros. — Eu explico à professora Olga.
O barulho da porta se fechando me faz lembrar um cadeado sendo posto numa cela de prisão e fazendo aquele barulho metálico que destrói de vez o emocional de um condenado.
— Volte para o seu lugar ao lado da Lívia — agora sei que é esse o nome da moça de short largo e legging preta.
Sem escolha, obedeço. Como ninguém tem culpa das minhas frustrações, dou um sorriso ao ficar ao lado da minha colega de barra, que toca meu ombro. Esse gesto amistoso me pega de surpresa.
— Relaxa, garota — duas covinhas surgem no rosto de Lívia ao me oferecer um sorriso. — Você vai gostar da aula.
Aceno positivamente.
— Danielle — a voz rouca de madame Tatiana me faz estremecer —, como esta não é uma aula para o seu nível, não precisa se preocupar em fazer como as outras. Só quero que você se atente à sua postura. Pescoço esticado, igual ao de uma girafa. Ombros relaxados. Quadril encaixado. E en dehor. Sempre!
Concordo com um gesto de cabeça.
— Berta! Música! Meninas, pés paralelos, frente à barra! Braços em bra bas!
Inspiro e expiro, arredondando os braços na altura da minha púbis, já sentindo nas pontas dos meus dedos a energia querendo explodir.
Tatiana estala os dedos enquanto conta.
Cinco. Seis. Sete. Oito.
A música do piano massageia minha alma. Como se alcançasse pontos dentro dela que precisam de cura, faz com que eu me sinta mais leve. Meus calcanhares meio que querem se desprender do chão e me impulsionar para cima. Giro a cabeça duas vezes para ambas as direções, ergo os braços alternadamente para cima, faço movimentos circulares com os pés.
— Deixem que a música, não a ansiedade de vocês, ditem seus movimentos — a mestra de dança orienta. — Relaxem. Vivam esse momento como se não houvesse um depois.
As mesmas coisas que a Letícia sempre dizia.
Suguem o umbigo.
Bumbum contraído.
Barriga colada na espinha dorsal.
Costelas fechadas.
Os fundamentos da dança não mudam, não importa que subamos de nível, e enquanto acompanho os movimentos dos bailarinos, percebo o quão sérios eles são. Mesmo num aquecimento de barra.
Tomo um susto ao ser tocada no ombro pelo indicador da professora.
— Relaxe. Você tem uma postura linda, mantenha assim, mas sinta a música. Se entregue a ela.
Dou um olhar fugaz para as bailarinas. A garota de maiô asa delta e faixa em volta da cabeça está imersa na canção. Queria saber como ela consegue se sentir tão à vontade, expondo sua bunda, fazendo de conta que está sozinha na sala.
Os músculos posteriores das minhas coxas queimam quando abaixo o tronco e abraço minhas pernas. Volto em bra bas assim que a canção termina. Dominique tira as polainas cor de rosa, fica de costas para a barra.
— Balançoire! Piqué! — Tatiana orienta. — Balançoire!
Fecho as pernas em quinta posição. Me concentro.
Como numa orquestra afinada onde todos os instrumentistas sabem o que fazer, todo mundo executa o exercício no tempo preciso. Pequenas gotas de suor escorrem pelo meu pescoço, descendo pelo vale dos meus seios pequenos. Ao final, estiramos nossas pernas alternadamente, tocando na orelha em detiré. Até ouso um pouco mais, levando minha perna para um pouco além da linha da nuca.
Não adianta você ser uma bailarina alongada e flexível. Sempre vai ter um músculo doendo, ou vários. Já estou tão acostumada que nem me lembro da dor quando danço, porque o sorriso que as pessoas dão quando me apresento faz tudo valer a pena.
Acho que todo mundo aqui pensa como eu. Só a paixão pelo desafio de ser perfeita, a vontade de dar colorido à vida das pessoas, é que faz a gente superar a dor e dar nosso máximo sempre. Não só por nós, mas por todos que amam a arte, que amam viver e que sonham que sempre dá para ir além.
Abro um espacate lateral no chão, abaixando meu tronco lentamente para sentir cada vértebra minha trabalhando. Antes do meu peito tocar o piso, vejo a tal Dominique em posição de sapo. Sua xoxota e pés estão colados no chão, o que reforça minha certeza de que ela tem ótimo alongamento.
Mas quem aqui não parece feito de borracha? Lara nem demonstra dor ao se deitar sobre a perna direita enquanto faz espacate frontal, assim como a Lívia e a garota de maiô.
Todas atletas de alta performance. Que ganham cachê para se apresentar, têm uma mentalidade objetiva e levam à sério a frase não posso, tenho ensaio.
E perto delas, sou só um bebê.
Suspiro ao me levantar, volto para meu lugar na barra. Lívia toma um gole de água e enxuga o suor da testa e do rosto com uma toalha do Flamengo.
— Você é super alongada — a loura diz. — Parabéns.
— Obrigada — retribuo ao elogio com um sorriso gentil.
— Estou ansiosa para ver você fazendo developés, mandar essas pernonas compridas lá em cima.
Mantenho o sorriso, porém sem responder.
A professora Tatiana aguarda impassível em frente à parede de espelhos as bailarinas se recomporem e se postarem ao lado das barras embutidas nas paredes.
Não se ouve som humano, só de sapatilhas de ponta se chocando com a madeira. Aproveito o tempo para fazer um grand plié de costas, ficando na ponta dos pés para forçar o colo.
Um par de olhos atentos me intimida quando me viro de frente.
— Todas aquecidas? — Tatiana bate palmas para chamar atenção para si. Lado à barra. — Vou passar a mesma sequência de ontem de manhã.
Como ontem de manhã eu ainda estava em São Paulo, vou na cola da Lívia.
Berta estala os dedos no mais autêntico estilo blasé, introduzindo.
Fazemos uma reverence à nossa professora, e em seguida a musicista, curvando nosso corpo graciosamente. Ficamos lado à barra.
Cinco. Seis. Sete. Oito.
Executo sem problema os dois primeiros demis em primeira posição de pernas. Mantenho meus olhos sempre acompanhando o movimento dos meus dedos, ficando mais leve. Pode parecer bobagem, mas a gente se sente assim.
Desço em grand plié com uma grande dobra de pernas, tirando um pouco meus calcanhares do chão, e de repente sinto alguma coisa apoiar minha bunda quando me abaixo em souplesse.
— Não empine o bumbum — Tatiana pede. E pondo uma das mãos na minha lombar e tocando levemente o dedo da minha mão que sobe: — Força nessas costas.
Ela fica durante todo o exercício ao meu lado me orientando, dizendo que eu não estou usando a respiração, que eu estou pesada.
Fico tonta ao ouvir tantas observações. E é só o começo da aula.
Não fico por muito tempo como objeto da atenção da professora, que anda ao lado das barras. O tom empregado com as outras é mais enérgico, rude. Vejo pelo espelho diante de mim Lara ter seu braço erguido pela mestra de dança e ser-lhe pedido que não o deixe solto.
Já a garota de maiô asa delta toma um tapa na nádega direita. O bumbum dela engole mais do tecido rosa da peça ao se contrair.
— Mais um ano como bailarina profissional e você não aprendeu, Mia? Acha que dançar balé é a mesma coisa que sambar? O Carnaval acabou semana passada e você não é mais Rainha de Bateria da Unidos da Moça Caprichosa.
Mia. Que nome lindo. O fato dela ter dançado seminua na avenida explica porque gosta de dançar à vontade.
A bailarina não responde, obviamente compenetrada em fazer o movimento correto na próxima contagem de oito tempos. Ainda bem que temos sempre uma chance de fazer melhor na contagem seguinte.
A palma da mão da Tatiana se ergue novamente para a pianista. Mais uma interrupção.
— Sabem o que dá desgosto para uma professora?
Mantenho meu semblante imparcial. Uma dos bailarinas meneia a cabeça discretamente, porém sem responder. Deve ser uma pergunta retórica.
Os lábios da Tatiana formam uma linha dura, ela para na frente da Mia, olhando-a com severidade.
— Não sabem? — questiona dando uma olhada panorâmica pela imensa sala. Volta a encarar Mia, segurando-lhe o quadril com uma das mãos, e com a outra empurra fortemente a barriga da bailarina, quase derrubando-a.
— O que me dá desgosto é que minhas bailarinas ainda estão pesadas.
Oi? Ela não pode estar falando sério. O corpo da Mia é lindo, tem curvas graciosas, iguais as minhas e as da Lara.
— Sobe em atittude, Mia.
A garota obedece. Percebo que ela demora um pouco a deixar seu corpo estático, e se corrige assim que Tatiana segura sua cintura com as mãos.
O tornozelo da perna de base da bailarina treme com o esforço que ela faz para se manter no alto, me fazendo achar que ela não vai aguentar ficar nessa pose por oito tempos. Os músculos de suas nádegas tremem.
— Respire, Mia — Tatiana pede. — Seu corpo precisa ficar leve. Bumbum firme!
Mia não consegue se manter em atittude. Se desequilibra, segura a barra para não cair, sem disfarçar o desapontamento consigo mesma.
Ela se parece comigo. Também me cobro quando não rendo o que eu quero, não aceito fazer algo que não seja bom. Mas para essas moças deve ser pior, porque elas são pagas para dançar.
Parece que Tatiana não sabe que é difícil ser perfeita no balé. Ela deve ter sido muito boa quando jovem, sei lá. E eu que achava que a Letícia era exigente.
Professora e bailarina se olham sem nada dizer.
— Não suporto olhar para isso — a mulher dá as costas para ela. — Tudo bem. Ainda é jovem.
Dou um olhar solidário para a desinibida Mia, que dá de ombros insinuando um quase sorriso. Pelo visto, ela não é de se abater.
Ela se abaixa com graciosidade e ajusta uma das polainas. Ao se levantar, um sorriso faceiro brinca em seu rosto.
Continua...
Capítulo de 2,7k de palavras
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