Capítulo 4 - parte 2
Tirar a roupa diante de uma mulher que nunca vi parece tão errado.
Fecho os olhos, abaixo minha calça, fico só de meias. Por sorte minha calcinha branca tampa um pouco da minha bunda, expondo só a polpa; me desfaço também da camiseta. Com um resmungo, viro as costas para a médica, tampando meus peitos, e me volto para ela.
— Por que tanta timidez? — a mulher zomba. — Nunca se pesou antes?
— Claro que sim — respondo com seriedade.
— Garota, sem pudores, ok? Você está numa instituição onde trabalhamos e moldamos os corpos dos bailarinos. Não precisa ter vergonha de se expôr.
Faço um sutil gesto de concordância com a cabeça.
— E então? — a médica aponta com o queixo levemente pontudo para a balança.
Solto o ar por entre os lábios, tiro as mãos dos meus peitos e ando dois passos em direção ao objeto apontado. Muitas bailarinas têm medo de balança, mas não é o meu caso. Nunca tive problema para controlar meu peso.
— Viu? Nem foi difícil — a médica faz uma observação sarcástica assim que termino a pesagem.
Suspiro com tédio enquanto a mulher de branco fica ao meu lado com uma prancheta na mão.
— Cinquenta quilos. Muito bom — ela diz.
Depois de anotar meu peso, faz sinal para que eu me vire ao contrário, para a porta.
— Você tem o peso que toda bailarina queria ter. Parabéns.
Estou tão puta por estar exposta que o elogio dela não muda o azedume do meu rosto.
Ela ergue a régua métrica metálica embutida na balança e pede para que eu encoste nela.
— 1 metro e 78 centímetros de altura. Perfeita!
Já me chamaram de perfeita tantas vezes que nem ligo mais. Tudo o que quero é me vestir e ir para a quadra antes que a aula acabe.
— Você tem medidas ótimas, Danielle. Estou impressionada.
— Posso me vestir e ir pra aula, agora?
— Não. Agora se deite na cama.
Obedeço aborrecida e ponho as mãos atrás da minha nuca, olhando para o teto.
A médica antipática apalpa meus quadris, joelhos, coxas e virilhas. À essa altura, começo a ficar apreensiva e seguro sua mão quando parece que a mão dela vai tocar meu sexo.
— Só estou fazendo o meu trabalho — a moça faz uma cara estranha.
— Ok. Mas o que seria esse trabalho?
— Verificar seu en dehor. Cuidar para que você não se machuque e a nossa escola não perca uma bailarina com potencial para ser uma estrela. Acha que é um trabalho fácil?
Fico sem palavras, e por um momento me envergonho por ser tão preventiva com uma pessoa que se preocupa de verdade com meu bem estar.
Não estou acostumada que uma pessoa além do Odin e dos meus parceiros de dança toquem em partes tão próximas da minha vagina. Não sou uma garota implicante que gosta de causar, só quero sair logo desta sala.
Faz só três horas que estou aqui e já vi coisas demais para um dia. Bem que essa manhã podia acabar logo, para eu fazer o que eu gosto: dançar.
Sinto falta da minha barra, das minhas amigas lá da Letícia. A Luna parece ser legal, e o Guilherme também, mas eu me sinto sozinha nessa escola onde bailarinas andam com a bunda de fora no corredor e as pessoas me olham como se eu fôsse uma intrusa.
A médica se comove com o medo em meu rosto. Seu semblante suaviza, pela primeira vez ela me olha com ternura.
— Não tenha medo — me pede.
Minha boca se mantém semiaberta enquanto sou tocada e meus olhos, atentos em cada movimento dela. Algumas vezes suas mãos macias chegam quase a apalpar minha vagina, fazendo a sensação de calor no meu rosto se intensificar.
— Certo. Terminamos.
Me levanto e rapidamente visto a camiseta, o moletom e puxo a calça até minha cintura. Calço os tênis, me aproximo da doutora.
Sorrio timidamente, deixando que meu aparelho de dente apareça.
— Leve este papel para a Marta — ela recomenda. — São as medidas do seu uniforme de Educação Física.
— Ok. E onde eu a encontro?
— Toda vida reto, última sala antes da saída para a quadra.
— Obrigada.
Toda vida reto, repito para não esquecer.
Uma mulher gordinha e de cabelo curto está atrás de um balcão, limpando os óculos, cantarolando uma canção da Malu Magalhães. Como ela está absorta com seu repertório, fico parada ouvindo-a. A voz dela até que é boa, com um agudo marcante.
Quando ela vê uma garota loura e pintada diante de si, sorrindo para ela e com um papel nas mãos, leva a mão ao peito.
— Que susto! — ela recua num gesto defensivo. — Há quanto tempo está aí?
— Acabei de chegar — respondo estendendo-lhe o papelzinho.
— Essa letra da Viviane — a rabugice da Marta me dá vontade de rir. — Você é nova aqui?
— Sim. Me chamo Danielle — estendo a mão.
Ela a aperta com um enlevo de sorriso.
— Seja bem vinda ao Ballet de Petrópolis. Er… vou separar seu uniforme.
Moças da minha idade passam por mim e vão em direção à quadra.
Marta volta cinco minutos depois com duas sacolas.
Curiosa como uma criança que ganha um presente, olho dentro de uma delas. Tem um collant regata preto, um casaquinho, meia calça e sapatilhas de ponta da Fantini. Esses três últimos itens são cor de rosa clarinho e fazem parte do uniforme obrigatório das aulas de balé.
Já a outra sacola tem um collant regata cor de rosa escuro, uma camisetinha branca e justa que não desce até o umbigo e uma blusa de moletom preta com o logotipo da escola.
— O que é isso? — pergunto franzindo o cenho.
— Seu uniforme de Educação Física — Marta estranha minha pergunta.
— Nós usamos collants até pra fazer Educação Física? — fico em choque.
— Bonitinha, as meninas usam esse uniforme desde 1954, quando a escola ainda funcionava em Petrópolis.
— Tá, mas é meio…
Eu ia completar com a palavra erótico. Na mesma hora me acho uma idiota. O que eu podia esperar depois de ver uma bailarina profissional desfilando só de maiô asa delta pelo corredor?
— Boa aula — Marta dá um sorrisinho, pondo fim à conversa.
— Obrigada — me revisto de um ar desapontado ao agradecer.
Por sorte não há ninguém no vestiário. Fico pelada, então visto o collant rosa e a camisetinha branca por cima. Ela só desce um pouco abaixo dos meus seios. Calço um par de meias soquete e meus tênis Adidas.
Como sempre faço depois de me produzir, ando até o espelho, e fico contente com o que vejo. Estou especialmente linda esta manhã. Deve ser a aura de beleza do Rio de Janeiro. Ponho as mãos na cintura, me viro de costas para ver se o collant não é muito cavado, e assim que constato que ele caiu bem no meu corpo, prendo o cabelo num rabo de cavalo alto.
Corro para a quadra depois de fazer o sinal da cruz. Todas as meninas da minha idade estão espalhadas pelo local, em grupos, duplas ou sozinhas. Como eu imaginava, não há garotos. Assim como nas aulas de balé, rapazes e moças fazem aulas separados.
Luna acena para mim com um sorriso, formando um lindo mosaico com sua pele bronzeada e olhos verdes.
— Fica aqui perto de mim — ela segura minha mão.
— Tá — sorrio.
Se na aula de Matemática passei incógnita depois que o professor fez eu me apresentar, agora tenho pares de olhos em mim, e por uma razão óbvia: sem o conjunto de moletom largo, meu corpo de bailarina agora está visível para todo mundo.
A tal Dominique me encara com altivez, fazendo com que meus instintos fiquem em alerta. O que essa garota tem?
O uniforme cai super bem nela. Suas pernas são compridas também, iguais as minhas, só que um pouco mais grossas.
A cada série de exercícios de aquecimento, tenho que tirar o collant de trás, para que ele não pareça um biquíni. Algumas garotas não se incomodam. Dominique e Luna são duas delas. Como não tem nada de mais, acabo deixando pra lá também.
Estou suada e fedida por causa dos exercícios. Nunca fiz tantas abdominais, flexões e levantamento e abaixamento de tronco com a mão tocando o pé.
Pôxa, cadê o vôlei, o basquete, o futsal? E onde se viu uma aula de Educação Física sem queimada e handebol?
Tô chateada.
Quando a aula acaba, Luna me leva para perto de duas garotas que estão sentadas folgadamente num banco de madeira, se refrescando com garrafinhas d'água, toalhas em volta do pescoço. Eu não faria questão alguma de puxar assunto com elas, mas minha colega paraibana me convenceu com seu sorriso de anjo a dar o primeiro passo para fazer amigas.
Uma das meninas é negra, de olhos escuros e cabelo cacheado, amarrado num rabo de cavalo médio. A outra é parda, com um tom de pele mais escuro que o da Luna.
— Gente, essa é a Danny — Luna me apresenta. — Ela é a nossa colega de quarto.
— Oi — faço um aceno com os dedos.
— Oi — a garota negra diz, se adiantando para me dar um abraço. Esse gesto me pega de surpresa. — Eu me chamo Isabella.
A garota de pele parda estreita os olhos.
— Olha o que a tua mochila me fez — ela tira o tênis direito, me mostrando o dedão do pé sem a unha, com pus nas bordas.
Meu sorriso de repente some. Tenho vontade de me desculpar, mas não sei o que dizer. Nada do que eu disser vai trazer a unha dela de volta. Tomara que ela não me odeie por isso.
— Está tudo bem — como que impelida por uma mola, a menina se levanta e me puxa para um abraço, tal como Isabella fez. — Não fica assim, já ia cair mesmo.
— Prometo ser mais cuidadosa — falo.
— Tranquila. O que você tinha naquela mochila cargueira? Pedra?
Balanço a cabeça para os lados.
— Uma cuia de chimarrão — respondo.
— Você é gaúcha? — Isabella questiona.
— Não. Catarinense. De Joinville.
As duas amigas que estavam sentadas me avaliam.
— Você parece russa.
— Sou bisneta de russos, do meu lado materno. Deve ser por isso.
Ela assente.
— Melissa. Sou baiana — me estende a mão finalmente. — Estou ansiosa pra te ver dançando, Danny.
Também estou ansiosa.
…
Quando uma aula acaba, temos que nos esgueirar pelos corredores da escola em direção a sala da matéria seguinte. Perguntei à Luna porque fazemos isso e a resposta dela, que é para combater o sedentarismo, não me desce.
Sorrio com alívio assim que a parte chata (a teórica) termina e posso almoçar no refeitório com a Luna e alguns colegas cujos nomes ainda não decorei.
— Posso me sentar com vocês? — Guilherme segura uma bandeja plástica com um prato. — Obrigado — antes que alguém tenha tempo de responder, ele já está do meu lado.
Levo um bocado de peixe com arroz à boca. Dou um olhar terno para o bailarino.
Ele é uma dessas pessoas enigmáticas, que ao mesmo tempo que se abrem como um livro para que conheçamos uma parte de sua história, seus gostos, sonhos, também parece se retrair em alguns momentos.
Não o julgo por isso. Todas as pessoas têm uma ou duas coisas em seu passado que querem esconder, e eu não sou excessão.
Com o Guilherme na mesma mesa que nós, a conversa fica mais animada. Já nem me lembro que estou num ambiente novo, pouco receptivo com novatos, e penso que estas pessoas próximas de mim são com quem eu devo me enturmar.
Percebo que existem grupos fechados, de três, quatro pessoas. Luna me previne de que existem muitas cobras aqui, e que é bom eu tomar cuidado.
Como se eu não soubesse me defender.
Só paro de falar quando meu telefone toca; sorrio como uma boba quando a foto do Odin aparece. Ele me pergunta se estou gostando da escola. Falamos coisas de namorados, que não deviam ser escutadas por ninguém. Ainda bem que ninguém presta atenção em mim.
Então, olho para uma mesa à nossa frente. Vejo o Yuri conversando com uma garota ruiva, com sardas iguais às dele. O que me chama a atenção não é ela ser linda, tipo, modelo da Ballet Ilustrated, mas ser muito parecida com ele. Até os olhos, azuis, têm a mesma seriedade.
Eles não gesticulam, mal movem os lábios.
Mas há cumplicidade entre os dois.
— Aquela é a irmã gêmea dele? — deduzo.
— Sim — Luna bebe um gole de suco. — Nastia Chuchukova, Primeira Solista Júnior pela Promoarte RJ.
— Mas se eu fôsse você, não perderia meu tempo tentando ser amiga dela — Guilherme me adverte. — A Nastia é fria como gelo, não conversa com ninguém, sabe. Ela… não sabe falar português.
Como é possível que alguém que more no Brasil há dez anos não saiba falar o idioma de Camões e Fernando Pessoa?
— Ela tem dificuldade de aprendizado — Roberta salienta. — É uma ótima bailarina, tem sensibilidade artística e é muito expressiva, mas uma pessoa arredia. O Yuri é a única pessoa com quem ela fala.
Presto atenção à conversa entre os gêmeos, mas não consigo compreender muita coisa. Estão falando no idioma deles, e algumas palavras são desconhecidas para mim.
Ele parece estar dando conselhos à garota, com voz neutra, sem mover um músculo do rosto. Escuto ela dizer um Da, ya ponimayo¹, e sem que eu espere, Yuri olha para nossa mesa.
Especificamente, para mim.
Ele mantém a fisionomia neutra, mesmo quando o encaro em desafio, dando-lhe um meio sorriso inquiridor.
Os dois irmãos terminam de almoçar, se levantam e passam por nós como se não existíssemos.
…
Ando apressadamente pelo corredor, tentando chegar na sala antes que a porta se feche e a professora a abra só para me olhar com cara feia e me mandar voltar amanhã.
O problema é que não sei qual é a merda da sala dos bailarinos do nível 5. Que bela amiga Luna me saiu, me deixando sozinha no banheiro do vestiário, ir para a aula e me deixar despejando litros de xixi.
Desvio no último instante de bailarinas que vem em sentido contrário, quase trombando com duas delas, pedindo desculpas educadamente, me sentindo uma completa sem noção por não saber me programar com horários. Se meu pai me visse, eu tomaria uma bela reprimenda.
Duas garotas com collants regata pretos estão enchendo suas garrafas num bebedouro.
— Oi, por favor, onde estudam as alunas do nível 5? — pergunto afoita.
— Segue reto pelo corredor e vira à esquerda — uma delas, parecida com uma índia, responde sorrindo. — É a sala Vitória Shushunova.
Estou tão aflita para chegar à sala que nem agradeço pela informação. Sou capaz de dar uma cotovelada em quem estiver na minha frente.
Ajeito meu par de polainas assim que me posto em frente à uma barra na parede, e termino de fazer um lacinho no cetim das minhas sapatilhas de ponta.
Às minhas costas, sons produzidos pelo choque das pontas das bailarinas que treinam saltos preenchem o ambiente, junto com risadas das moças que conversam em seus grupinhos e não estão lá muito interessados em se aquecer.
Fico em pé e desço em espacate frontal, tocando minha intimidade no chão e mergulhando meu tronco sobre a perna estendida.
Levanto os olhos. Me dou conta que tem algo muito errado aqui.
Eu sou a única garota da sala que usa o collant regata preto exigido pela escola. As outras bailarinas formam um mosaico de cores, com collants verdes, cinzas, azuis, de vários modelos e com saias curtas amarradas na cintura. Algumas usam calças legging ou shorts justos, e lá na ponta está a linda bailarina de cabelo louro-escuro, de maiô asa delta cavado cor de rosa e polainas pretas, executando um souplesse.
Fico desconcertada ao constatar que as bailarinas parecem mulheres de mais de dezoito anos. Não tão longe de mim, Lara, a única que está só de collant e meia calça, faz um plié e levanta sua perna lá no alto, tocando-a na orelha.
Merda! Estou na sala de aula das bailarinas profissionais...
Capítulo de 2,6k de palavras
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¹Да, я понимаю: sim, eu entendo.
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