Capítulo 3 - parte 1
Listen to your heart when he's calling for you
Listen to your heart, there's nothing else you can do
I don't know where you're going and I don't know why
But listen to your heart before you tell him goodbye
Roxette, Listen to your heart
Achei que não fosse conseguir. Resmunguei várias vezes, soltei um bosta, que foi ouvido pela senhorinha sentada ao meu lado e que me olhou como quem diz tão bonitinha e boca suja. Mesmo ela não perguntando, explico que minhas pernas estão apertadas.
O cara que inventou o avião pensou em um monte de coisas, menos em construir um que dê conforto para bailarinas com pernas de mais de 1,10. Penso que, se eu continuar crescendo dois centímetros por ano, logo vão ter que me dobrar e colocar dentro de uma caixa, como quando fizeram isso comigo durante o espetáculo O Quebra Nozes ano passado. Eu era a Boneca da Caixinha.
Digo mais um bosta, desta vez mais baixinho, finalmente encontro uma posição mais confortável no assento.
Meu celular toca, e a foto do meu namorado aparecendo na tela é o suficiente para minha rabugice passar um pouco.
— Oi — digo sorrindo.
— Já tá no avião?
— Tô sim. Daqui a pouco ele decola e daí vou ter que desligar, tá?
O som da voz do Odin tem um efeito terapêutico sobre meu corpo. Ela me acalma, me faz sentir protegida. Quando estamos juntos, é como tudo se encaixasse, e junto com o balé, que é o que eu mais amo, ele é tudo pra mim.
— Ok — ele responde com uma mal disfarçada irritação.
— Não fica assim — faço um biquinho. — Logo eu chego aí.
— Ok. Beijo.
— Beijo.
O sorriso se desfaz aos poucos do meu rosto. Para relaxar, ponho um par de fones e ligo uma playlist do The Cranberries, fechando os olhos.
No meio do refrão da música Stars, abro os olhos ao sentir um toque no meu ombro.
— Me desculpa — ele diz sorrindo, pondo sua mochila no bagageiro.
É um rapaz não muito alto. Negro, com um corte de cabelo bem baixo e uma camiseta de manga comprida com capuz, mostra os músculos abdominais bem definidos enquanto seus braços estão levantados.
Uma visão bem tentadora, penso com um sorriso. Tiro os fones dos ouvidos, recebendo um sorriso gentil do garoto.
— Não estou acostumado a viajar de avião — ele explica. — Sou desajeitado e esbarro em poltronas, pessoas e tal.
— Eu entendo — replico. — Também não curto muito, por um motivo bem óbvio.
Assim dizendo, aponto com os indicadores para minhas pernas encostadas no assento à minha frente.
— Você tem pernas bem compridas. É modelo?
Não é a primeira vez que me perguntam isso. Você é tão alta e linda, podia ser uma modelo. Fico envaidecida.
— Sou bailarina — falo com orgulho inconfesso.
— Jura? Que tudo — finalmente, o garoto se senta.
Ele tem um jeito de falar parecido com o do Angel. É bem expressivo, tem olhos marcantes e um sorriso franco.
— Me chamo Guilherme — me estende a mão.
Olho com cautela para os dedos dele, semiabrindo a boca.
— Danielle — respondo, apertando sua mão. Ela emite um calor gostoso.
— Vai ao Rio de Janeiro à passeio?
— Não. Vou estudar. Passei na audição do Ballet Imperial de Petrópolis e amanhã começo.
— Legal. Parabéns.
— Obrigada.
— Você vai morar na escola?
— Não. Não consegui vaga. Vou morar num alojamento com meninas da minha idade. Tipo, uma república para bailarinas.
— Ah! Um alojamento.
A expressão dele muda subitamente e eu arqueio a sobrancelha esquerda em dúvida.
— Mas você parece ser uma garota ajuizada.
Oi?
A comissária de bordo nos dá bom dia pelo autofalante, pede para que apertemos os cintos, mantenhamos os celulares no modo offline e deseja que tenhamos uma boa viagem.
— E você, vai fazer o quê no Rio?
— Eu moro lá. Sou do bairro Santa Teresa. Vim à São Paulo visitar meu namorado, fiquei com ele esse fim de semana e agora estou voltando.
O sorriso que surge no rosto de Guilherme é tão bonito que me contagia.
É incrível mesmo a gente estar apaixonado. Só de pensar que vou poder ficar mais tempo com meu namorado, sair de mãos dadas com ele de manhã pelo Calçadão do Leblon, fico toda sorridente.
— São Paulo é uma cidade muito grande — Guilherme comenta. — E fria. Tive que comprar uma blusa de moletom pra não pegar resfriado.
— Não é pra tanto. É verdade que cai garoa, mas não é tudo isso no outono. O inverno é pior. É que vocês, cariocas, estão acostumados com um calorão de quarenta graus e estranham quando vêm para uma cidade de clima mais ameno.
Guilherme revira os olhos, covinhas surgindo nos cantos do seu rosto. Aponta o indicador para o meu peito, fazendo uma expressão zombeteira.
— Por falar em calor, amiga, pode desapegar desse tipo de roupa no Rio.
— Bom, eu tô ciente que vou ficar a maior parte do tempo quase pelada. Quer dizer..., só de collant e sapatilha — Guilherme ri da minha resposta.
— Quase pelada e com homens passando a mão pelo seu corpo — um riso sacana aparece nos lábios carnudos do meu colega. — Ai, que inveja.
Dou de ombros.
— Normal — respondo.
Não costumo ficar excitada em ser tocada por bailarinos. Encaro o pas de deux como uma conexão, um desafio profissional. Nada mais que isso. Algumas vezes, quando uma personagem toma conta de mim, se fluindo ao meu corpo e à minha alma, eu até sinto desejo, porém esse sentimento não é meu, mas da personagem a quem dou vida.
Fico em silêncio um pouco, olhando para o vazio à minha frente. A senhora do outro lado olha pela janela, desinteressada de tudo.
— Falando sério agora — rio, me voltando para Guilherme. — Não tenho ideia do que usar no dia à dia.
— As meninas do dormitório vão te dar dicas, não esquenta com isso. E vão te ensinar a falar como uma carioca também. Se bem que acho que você vai aprender fácil.
Não vejo o que há de errado em eu não ter o sotaque dos cariocas. Mas concordo com o Guilherme quanto a logo eu estar falando bixcoito. Sei me adaptar aos lugares onde vou.
Até meus cinco anos de idade, eu tinha sotaque do sul, e falava tu com frequência. Ainda falo. Afinal, nasci e morei em Santa Catarina durante o tempo em que mamãe foi bailarina do Bolshoi. Quando fomos morar nos Estados Unidos, aprendi inglês. E quando voltei, aos dez anos, comecei a falar de um jeito neutro.
Me adaptar à novas condições meio que foi um caminho inequívoco pra eu crescer como pessoa. Ou isso, ou teria ficado deslocada. Tive de aprender a dançar de outra maneira quando fui repatriada.
Letícia chegava a ficar de olhos arregalados por eu já ter onze anos, ter alongamento e músculos fortes, mas fazer exercícios como tendu, rond de jambes, e manter meus braços de segunda posição mais baixos.
Por que você não levanta um pouco mais estes braços, caramba?, ela bateu nas laterais das coxas.
Porque aprendi assim.
A minha dificuldade obrigou Letícia a estudar a nomenclatura da dança clássica. Ela descobriu que, no Método Royal, os braços de segunda posição são mais baixos que no método ensinado por ela - nem Royal, nem Francês ou Vaganova, mas uma mescla dos três.
Em pouco tempo, eu já estava fazendo as poses corretas. Foi uma época bem legal, porque nós duas nos obrigamos a aprender. Meu estilo de dança hoje é parecido com o das bailarinas russas.
Percebo uma atenção especial dele no komboskini no meu colo.
— Você é católica? — pergunta.
Respondo com um aceno negativo.
— Cristã ortodoxa — respondo de forma melancólica.
— No meu bairro tem uma igreja ortodoxa. Paróquia Santa Zinaida, a Mártir.
— Mas eu não sou religiosa. Eu não vou à igreja há um bom tempo.
Fecho os olhos antes de continuar.
— Não sou exemplo de virtude pra nenhuma garota.
— Nossa, por que diz isso? Você se prostitui, usa drogas, matou alguém? Ou empurrou uma colega do palco por inveja?
Difícil não gostar do Guilherme. Ele é tão espontâneo.
— Não cheguei a tanto — olho para baixo.
— Sem culpa, tá? Todo mundo tem defeitos. De qualquer forma, é uma chatice ser santinha.
— Isso não sou mesmo — pontuo a palavra final falando mexmo.
— É algo que você não queira falar? Não quero parecer intrometido.
— Eu sou bissexual.
Um vinco surge na testa do meu colega.
— Isso é pecado? — a voz do rapaz negro adquire um tom de revolta.
Mordo o lábio inferior, solto um suspiro.
— Para os rígidos padrões da minha religião, sim.
— Acho que Deus tem coisa mais séria com que se preocupar. Ele não tá nem aí se você transa com garotos e garotas.
Concordo com um movimento de cabeça afirmativo.
Sempre encarei minha bissexualidade como uma coisa normal, mas o julgamento das pessoas me incomoda bastante. Num mundo ideal para a gente viver, minha orientação sexual devia ser um problema só meu.
— Você tem namorado ou namorada?
— Tô namorando um cara. Ele é paulistano, mas mora no Rio com o pai.
— Ele é bonito? — os olhos de Guilherme brilham de súbita interesse.
— Meu namorado é gato.
Destravo a tela do meu iPhone e mostro a galeria de fotos que Odin e eu tiramos juntos em várias ocasiões. Em Berlim, quando competi num festival. Na praia. Numa das fotos estamos em Ibiúna, andando à cavalo, com capacetes, paletó preto, calças brancas e botas de montaria. Formamos um coração com nossas mãos unidas.
— Mentira que você namora o modelo gato! — Guilherme arregala os olhos.
Confirmo com um gesto de cabeça, sorrindo orgulhosa.
— Dá pra ver que você está apaixonada por ele.
— Tá tão na cara assim? — rio.
Guilherme assente.
— Seus olhos brilham. Só quem está apaixonado tem esse brilho no olhar.
Nisso tenho que concordar. Ter sentimentos por uma pessoa nos torna diferentes, mais alegres. Quando estou com o Odin, não sei expressar com palavras tudo o que sinto. Talvez porque não sou boa com palavras. Sou boa em fazer.
Nossos tipos de transa variam de acordo com minha vontade. O fato de agora eu morar na capital carioca tornará esses momentos mais rotineiros. E mesmo não sendo nem um pouco romântica, tô ansiosa pra estar de novo com ele.
Ponho a máscara nos olhos e acabo dormindo.
Acordo com o aviso da comissária de bordo de que vamos aterrissar. Vejo pela janela o Cristo Redentor, o Corcovado, aquele mar azul lindo que faz a gente pensar que o mundo está em paz, e uma alegria que não sei definir me invade por saber que vou poder curtir tudo isso.
Guilherme e eu nos despedimos assim que pousamos no aeroporto, desejando felicidades um ao outro. Muitas das informações que ele me forneceu e dicas pra eu me dar bem (não sei o que quer dizer esse me dar bem) estão anotadas no meu caderninho.
Odin está parado, um sorriso feliz brincando em seus lábios. Ele está lindo em sua camiseta preta de manga comprida, calça skinny e coturnos, a franja loura caída nos olhos.
Apresso o passo em sua direção, tirando a mochila das costas para que possamos nos abraçar. Uma das mãos dele apalpa minha bunda enquanto a outra apoia minha lombar.
Sorrio, passando o dorso do meu dedo em seu rosto perfeito, enroscando meus braços em volta do seu pescoço. Nossos lábios se tocam num beijo longo.
— Você é bem atiradinho — falo sentindo minha bochecha corar.
— Mas bem que você gosta, né?
— Não em público, seu bobo.
Odin abaixa minha blusa. Melhor assim. Continuamos a nos beijar, até eu me lembrar que estou cansada e que preciso tomar um banho relaxante.
Ele põe minha mochila cargueira nas costas e puxa a mala com rodinhas com uma das mãos, enquanto a outra segura a minha. Vamos até um táxi, que nos leva para o apartamento onde ele mora com o pai.
O porteiro do condomínio abre um sorriso ao me ver, que retribuo com um aceno de dedos.
— Bom dia, seu Tomás — falo alegremente.
— Bom dia, menina Danielle — ele aperta um botão que destrava a porta com grades ao lado da cancela por onde entram e saem carros.
Eu havia passado a noite no apartamento do Odin para prestar a audição do Ballet Imperial no dia seguinte. Meu pai não pôde vir, devido à compromissos com sua companhia. Felizmente, Daniel está longe de ser um pai controlador. Ele sabe que, se meu namorado não estiver com uma camisinha no bolso, não vai haver nada entre a gente – além de uma troca de abraços e beijos. Não sou uma garota irresponsável.
Alberto Dressler me recebe de uma forma, respeitosa, formal, mas afetuosa também. Ele deixa sentimentos transparecerem através de suas palavras gentis, ao contrário da ex-esposa. Quando converso com a Tânia, não sei se ela é um robô ou só uma pessoa fria. Com a Duda, no entanto, ela é bem diferente. Por alguma razão, a mãe do meu namorado sente um carinho de mãe pela primeira bailarina da Promoarte e sempre fez de tudo para que ela pudesse participar das competições mais importantes.
Filho de alemães, gosta das coisas do jeito certo, o que não quer dizer que seja um homem sistemático que implica com tudo. Ele é booker, cuida da carreira não só do Odin, mas de vários modelos.
Ele tem uma frase bem peculiar. Namoro que começa na rua também termina na rua, nos disse uma vez. O Ocidente está mesmo fodido com essa nova forma de educar os filhos.
Tomo um banho demorado, sentindo aos poucos meu corpo relaxar com a água quase fria caindo sobre mim. Uma sensação gostosa, de liberdade, se apossa de mim, quase comparável à sensação de estar dançando com o perigo.
Deve ser porque pela primeira vez na vida estou fora da minha zona de conforto. Longe da minha família, distante das meninas com quem competi por anos. É um pouco assustador. Mas excitante também.
Me enxugo calmamente, penteio o cabelo. Ponho um vestidinho azul que desce na altura das minhas coxas, por último calçando um par de tênis brancos.
A porta do quarto se abre e Odin entra com uma expressão carinhosa no rosto, me fazendo sorrir.
— Você está linda — ele diz ao se sentar ao meu lado.
Enquanto ele segura uma de minhas mãos, com a outra passo o dorso do meu indicador em sua pele macia, o puxando pelo queixo.
Mostro meu sorriso com aparelho de dente de pedrinhas azuis. Nossas bocas se tocam. Fecho os olhos, e pareço sentir uma corrente elétrica se espalhar pelo meu corpo enquanto minha língua e a dele se enroscam.
Distanciamos nossas bocas calmamente, como que sem vontade de quebrar nosso contato, assim que ouvimos Alberto batendo na porta, avisando que o almoço está servido.
— Já estamos indo — Odin responde e tenho vontade de rir de sua expressão de desgosto profundo.
— Seu pai é muito legal — falo com sinceridade.
— Ele gosta de você — meu namorado passa o indicador na maçã do meu rosto, pondo uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha.
— Todo mundo gosta de mim — dou um sorriso malicioso.
Odin, num movimento brusco que me pega de surpresa, prensa meu corpo contra a porta. Dou um gritinho, passo meus braços em volta do pescoço dele, selamos nossos lábios. As mãos dele descem pela minha cintura, entram por baixo do meu vestidinho e puxam minha calcinha pra baixo.
Fecho os olhos, um gemido fugindo da minha garganta quando sinto sua mão acariciar os pelos da minha boceta. Dou um sorriso de satisfação, o puxo mais pra mim. Quero mais contato. Minha vulva fica molhada em poucos segundos quando seus dedos separam meus grandes lábios rosados e se inserem dentro de mim.
— Eu precisava muito disso... — minha frase fica em suspenso, já que Odin me cala ao me dar um beijo de língua prolongado.
Não gosto de rotina. Mas se momentos assim se repetirem com frequência, ficar longe de casa será uma experiência incrível.
...
O Uber me deixa em frente à uma casa simples, de paredes cor de vinho claro e com um muro alto em volta. É uma construção de dois andares, parecida com um hostel.
— Rua Cupertino Durão, cruzamento com a Avenida General San Martin — a simpática motorista informa.
Desço do Honda Fit prata, olho ao redor. Prédios não muito altos, com árvores nas calçadas. Um pouco à frente, a praia. Dizem que aqui é tudo caro, não perdendo em nada para a Avenida Paulista.
Mania estranha que a gente tem de fazer comparações entre o lugar de onde saiu e a nova cidade, como se uma parte de nós insistisse em ficar presa às origens.
— Obrigada — sorrio para a motorista, que tira minhas coisas do porta malas.
Dou um suspiro assim que ponho a mochila cargueira nas costas, avanço em direção ao portão puxando minha mala de rodinhas.
Continua...
Capítulo de 2,7k de palavras
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