Capítulo 22
E i venti del cuore soffiano
e gli angeli poi ci abbandonano
con la fame di volti e di parole
seguendo fantasmi d'amore
i nostri fantasmi d'amore
Il Venti del cuore, Renato Russo
Por causa do cansaço, descemos a serra em silêncio. Ou quase silêncio, já que a rádio FM da van de seu Matías toca sequências de suas músicas favoritas. São canções dos anos 80 e 90, desde A-Ha, Cindy Lauper e Roxette.
Faço com o indicador o desenho de uma borboleta, com coraçõezinhos em suas asas, apagando-o a seguir. Minha cabeça está pesada de sono. A qualquer momento posso capotar e dormir no ombro de Luna, e ela, por travessura, é bem capaz de me abraçar como se fossemos um casal.
Tem pessoas que não têm bom senso. A gente podia ter ido à uma lanchonete e ter comemorado, mas a implicante da Dominique conseguiu convencer Olga de que era melhor voltarmos cedo ao Rio de Janeiro, já que estávamos cansados.
Dominique parece travar uma luta constante contra a balança. Nunca a vi comer nada. Só a vi uma única vez pedindo um prato, de sopa de ervilha, que não é uma coisa muito nutritiva, e ainda assim deixou resto.
Ela teve ao menos um gesto elegante, forçado é claro, de cumprimentar a mim e ao Yuri no saguão. Mas percebi claramente seu desapontamento por ter ficado em segundo lugar.
Agora, a primeira bailarina deve estar quase chegando à capital. Amuada, aborrecida, em companhia de Yuri e Nastia. Só espero que ela não bata de frente comigo essa semana, e nem fale bobagens do tipo você teve sorte ou dançando com o Yuri, qualquer uma vence.
O pior é que justo nesta semana vou ter que me apresentar com ela e as garotas do Pas de Quatre num hospital de Ipanema. Como não dá para prever o que uma proximidade forçada entre nós duas pode render em termos de choque de egos, só consigo imaginar que essa semana será tensa.
Fecho os olhos, dou um suspiro. Chego à conclusão de que não é o momento pra pensar em Dominique. Estou alegre demais pra me abalar com coisas que nem aconteceram.
Olho para a janela, observando enternecida os desfiladeiros. De repente meu ombro sente algo pesar sobre ele, e quando me viro, vejo Luna dormindo de boca levemente aberta, segurando molemente seu celular. Dou um sorriso, achando graça na situação.
Justo quando também estou quase caindo no sono, começa a tocar Luka, de Suzanne Vega. A canção e a voz da cantora são lindas. Mas o que não é lindo nos anos 80, época em que as pessoas ainda tinham sonhos?
Fecho os olhos, começo a cantar a canção bem baixinho, passando os dedos no cabelo da minha amiga, que acorda bocejando.
— A gente não chegou ainda? — a paraibana volta aos poucos à consciência, fazendo um percurso difícil.
— Acho que a gente tem mais uns dez quilômetros pela frente — teorizo, rindo, embora eu não tenha certeza.
Luna fecha os olhos, pensativa.
— Preciso dormir. Estou muito cansada — ela se queixa.
Olho por sobre meu ombro. As meninas atrás de nós estão dormindo como anjos.
— Também estou super cansada — cruzo os braços, olhando para o teto.
Um carro ultrapassa a van. Duas crianças, um menino e uma menina, acenam para nós com seus brinquedos de pelúcia. A garotinha usa na cabeça uma tiara cor de rosa. Aceno com os dedos, oferecendo um sorriso alegre para os dois, e logo o carro desaparece a nossa frente.
— Danny?
Olho para Luna.
— Como é dançar com o Yuri?
Comprimo os lábios enquanto balanço levemente a cabeça para os lados. O que exatamente Luna quer saber? Se ele é gentil e tem pegada?
— Ele é muito forte e tem jeito com bailarinas — dou uma resposta evasiva.
Luna ri.
— Você promete não rir se eu te contar um segredo? — um estranho embaraço aflora no rosto moreno da paraibana.
— Se não for engraçado — brinco.
— Danny!
— Conta, Luna — deixo claro que não tenho paciência para rodeios. Gosto que as pessoas sejam diretas e falem logo o que têm para falar.
Luna contorce seu corpo para o lado, onde Tiffany dorme um sono pesado.
— O Yuri foi meu primeiro amor — a voz dela sai como um sussurro.
Minha boca se abre com essa revelação inesperada.
— Só que ele nunca soube — Luna se volta bruscamente para mim, antes que eu invente coisas na minha cabeça.
Aguardo em silêncio pela explicação dela, que demora a sair e me deixa aflita. Mordo levemente meu lábio inferior, passo os dedos no cabelo.
— Confesso que estou surpresa — reprimo no último segundo minha vontade de rir.
— Vai dizer que você não acha ele muito gato? — Luna responde com leve irritação, talvez ressentida por eu achar graça em suas palavras.
— Ele é gato. Tem olhos azuis lindos, uma boca bonita, é gentil com as pessoas. Mas quanto a você dizer que ele foi seu primeiro amor…
— Hoje eu compreendo que fui uma garota iludida. Mas quando cheguei ao Rio de Janeiro, achei que ele podia gostar de mim. Coisa de garota muito nova, que nunca namorou e de repente vê o garoto mais gato da escola.
Solto um suspiro. Sorrio tristemente para minha amiga.
— Eu entendo isso muito bem.
— Você também já teve um amor platônico?
Minhas bochechas coram.
— Não foi bem um amor platônico. Eu nunca amei de verdade um garoto — solto uma pequena quantidade de ar gelado pela boca. — Na minha escola em São Paulo, havia um cara que chamava a atenção de todo mundo. O nome dele era Dante. Era filho de um desembargador e, como todo adolescente rebelde e contestador, odiava estudar lá. — olho para janela, sorrindo, me voltando para Luna. — Não nos dávamos bem, ele dizia que eu era uma patricinha, metida, e que eu me achava só porque eu era filha da Françoise.
— Até de gente de fora do balé você ouvia essas merdas?
— Não parece karma? — brinco.
Luna balança a cabeça, admirada. Ela fica admirada com qualquer coisa.
— Era bem difícil a gente se encontrar no corredor do colégio e não se estranhar. Ele era muito esnobe. Um dia discuti com uma jogadora do time de vôlei em que eu era atacante e sai da quadra puta, e sem querer, trombei com ele no corredor. “Você não olha por onde anda?”, ele disse, indignado. Achei que não era pra tanto. Pôxa, foi sem querer.
— Nossa, foi bem rude da parte dele. E como você respondeu?
— Do jeito que eu mais gosto de fazer com quem bate de frente comigo: com um nocaute psicológico.
Luna faz uma careta de estranhamento.
— Primeiro eu pus as mãos na cintura, então cruzei os braços e dei um sorriso irônico para o irritadinho, dizendo: “Desculpa. Você é tão pequeno que não te vi”.
A morena pôs ambas as mãos na face e escancara a boca.
— Mulher, tu pisou nele com estilo.
Faço com orgulho um sinal afirmativo de cabeça.
— Mas apesar do Dante ser mais baixo que eu, não dava pra negar que ele era bem gato. O jeito amuado, mal-humorado dele, lhe davam um charme.
— E quando você começou a gostar dele?
— O professor de História propôs um trabalho em duplas — Luna faz menção de me interromper, mas me antecipo. — É, exatamente o que você está imaginando. Ele foi sorteado pra ser meu par.
A morena olha para o banco à sua frente. Dá uma risadinha sarcástica.
— Vocês não se pegaram, não é? — Luna se apressa em se corrigir. — Tipo… Quase não se mataram?
Aceno que não.
— Até que fomos civilizados — sorrio. — Tomamos chocolate enquanto liamos o capítulo nos livros, e começamos a nos soltar, a falar de outros assuntos. De repente, estávamos rindo como se fossemos amigos e…, bom, começamos a olhar um para o outro de um jeito diferente. Aquilo incomodou nós dois, mas não conseguíamos evitar. Era até engraçado — deixo uma risada fugir. Logo fico, de novo séria. — Mas nossas conversas ficaram espaçadas. Tanto eu quanto ele estávamos sem graça; então ele perguntou do nada: “Você tem namorado?” Respondi que não. E ele: “Que bom”.
— Ele estava flertando com você, gata.
— Estava. Mas eu era ingênua demais pra ter percebido. Terminamos o trabalho, guardamos nosso material, e quando eu ia fechar a porta para o Dante sair, o babaca me segurou pela cintura e me deu um beijo. Eu devia ter dado um soco nele. Só que eu gostei.
— Uau. Você consegue mesmo fazer os garotos perderem a cabeça — Luna observa.
Dou de ombros. Olho para o que restou da borboleta que desenhei, toco o vidro com a ponta do indicador.
— Depois desse dia, nos tornamos amigos — relembro com alegria as vezes em que nos sentávamos na arquibancada da quadra após eu sair dos jogos de vôlei. — Ficamos várias vezes, trocamos beijos nos intervalos da aula — de repente, sorrio com uma pequena sombra de tristeza. — Era pra ter sido ele o garoto a tirar minha virgindade. Mas não rolou.
Como Luna pergunta o que aconteceu para Dante e eu não termos transado, acabo contando. Tudo culpa da minha prima Stefany, a quem amo como irmã. Ela apareceu no pior momento possível e Dante e eu tivemos que sair de onde estávamos escondidos quando escutamos sua voz me chamando. Foi broxante, no mais literal dos sentidos¹.
— Não era pra ser — concluo. — Foi melhor que não tenha sido com ele. Depois das férias, os pais dele se mudaram para Minas Gerais. Acabamos perdendo contato. Eu continuei pensando no Dante por algumas semanas, imaginando quanta coisa poderia ter acontecido, se a gente estaria namorando ou não. Mas era só um capricho de adolescente, nada sério. Eu tinha o balé pra me completar.
Luna me fita, esperando que eu diga mais alguma coisa. Mas já falei tudo o que precisava, e de qualquer forma, estou curiosa para saber sobre a queda que ela teve – ou ainda tem – por Yuri.
— Quando tu começa uma história, tem que terminá-la — cruzo os braços ao sorrir de jeito malicioso para a morena.
Ela pigarreia. Se faz de sonsa, mas não desisto de nada que eu queira.
— O fato de tu nunca ter nem jogado charme para o Yuri tem o fato dele não gostar de garotas? — insisto.
— Não tinha como eu saber quando eu cheguei ao Rio. Yuri tem um olhar doce demais para um garoto quando dança, mas ele não tem trejeitos de um garoto gay; ele não é como o Nikita ou o Guilherme, que você olha e já saca que eles gostam de homens. Mas o Yuri era uma incógnita. Então, eu tinha uma pequena esperança de que pelo menos ele fosse um bailarino hétero.
— E o que te fez desistir?
— Ele não olha para nenhuma garota. Não olha para a bunda, nem para os seios de nenhuma bailarina daqui.
— E para bunda de meninos, você já o viu olhando?
Me ocorre que nunca vi o bailarino ruivo olhando para ninguém. Mas deve ser porque ele é púdico demais, de sentimentos gelados.
Luna dá uma risadinha irônica.
— Você devia saber, já que ele ele é seu parceiro e vocês ficaram amigos rapidinho. Parceiros de dança costumam dividir segredos.
— Ah, não, não, para, Luna! — falo incrédula. — Você quer que eu pergunte ao meu parceiro se ele é gay? Sério?
— Você não tem curiosidade?
— Claro que não.
Apesar do tom firme da minha resposta, não estou tão convencida.
Me viro para frente, abaixo a cabeça, vagamente irritada, e soltando um suspiro, me volto para minha colega.
— Luna, tem coisas que não devemos perguntar às pessoas. Eu não vou perguntar para o meu parceiro se ele é homossexual. Mas se você diz que o Yuri nunca deu bola pra nenhuma garota daqui…
O restante da frase fica em suspenso na minha boca.
— Esquece — me viro pra frente, de novo para Luna. Um sorriso débil aparece em meu rosto.
A morena assente. Seus olhos andam de um lado para o outro nas órbitas, se fechando aos poucos por causa do sono, e ela inclina sua cabeça devagarinho em minha direção, até pousar no meu ombro.
Sorrindo, emaranho meus dedos em seus cabelos negros e lisos. Fecho os olhos e perco os sentidos aos poucos enquanto toca I'm with you, da Avril Lavigne. Canto bem baixinho a primeira estrofe, até apagar completamente.
— Danny, acorda — abro os olhos aos poucos, enquanto sou sacudida por Luna.
— O que foi agora? Deixa eu dormir em paz — passo os dedos nas têmporas.
— A gente já chegou.
Fico assustada ao constatar que a van está estacionada em frente à república. Eu não tinha dormido, mas entrado em coma.
— Putz. Chegamos tão rápido — solto um bocejo.
Espero Luna sair para eu me levantar, e o faço como se estivesse anestesiada. Fiquei tão mal acostumada ao calorzinho do ar condicionado que, ao sair, abraço meu corpo num gesto de defesa contra o frio, enquanto aguardo as meninas tirarem seus porta tutus e mochilas do bagageiro.
— Não estão esquecendo de nada? — seu Matias pergunta, todo simpático, com uma mão no quadril e o outro braço esticado e apoiado no compartimento de carga da van.
Tiffany, a mais desconfiada do nosso grupo, se agacha para olhar ali dentro. Responde que não com um aceno. Abro um pouco minha mochila pra me certificar que nada está faltando. Está tudo aqui. Inclusive minhas duas medalhas de primeira colocada.
— Então vou indo — seu Matias acena. — Tchau, meninas. Durmam bem e até o próximo festival.
— Tchau! — todas nós respondemos juntas.
A van arranca e some pela rua Cupertino Durão. Ao contrário do que Guilherme disse com seu sarcasmo ácido, seu Matias não é um roda-presa; ele simplesmente dirige à uma velocidade que não ponha em risco as vidas de suas passageiras.
— Estou morta. Vou tomar um banho demorado e cair na cama — Kauane põe sua mochila cargueira nas costas e abre o cadeado do portão do dormitório.
— Eu também — Fernanda solta um bocejo alto.
Luna e Roberta passam quase juntas pelo portãozinho, rindo e comentando sobre as impressões que tiveram do festival. Ao invés de segui-las, paro e olho para a direção em que está a praia do Leblon.
Que música poderosa é o encontro entre as ondas do mar e a areia. Lembra um coração batendo forte. Também lembra vida. Minha boca esboça um sorriso, tão fascinada estou com esse som robusto, e uma ideia louca passa pela minha cabeça: atravessar a Avenida General San Martín e dar um passeio pela orla.
Mas meu corpo me lembra que estou cansada e que amanhã tenho aula.
Além disso, aqui é o Rio de Janeiro. Não é prudente uma garota andar sozinha na praia.
Após fechar atrás de mim o cadeado do portãozinho metálico e subir o primeiro lance de escadas, tiro o celular do bolsinho lateral da mochila e busco na lista de discagem rápida o nome do meu namorado. Preciso dividir com ele minha felicidade por ter ido tão bem na competição.
O aparelho chama, chama, e só no décimo toque ele responde.
— Oi, amor — ele diz com voz distante. Percebo na hora que ele está deitado.
— Oi — sorrio, tentando não tropeçar no porta tutu enquanto entro pela porta da casa. — Já estava dormindo?
— Não, eu estava tendo uma conversa com meu pai e tomei banho há alguns minutos. Acabei de me deitar.
Meu sorriso se expande, desta vez de um jeito malicioso quando de súbito imagino que meu namorado esteja só de cueca.
— Não quer saber como sua namorada foi no festival? — deixo o porta tutu no chão para trancar a porta, que faz um rangido seco quando a mesma encosta no batente.
— Conta — ele responde, ansioso.
— Odin, eu… ganhei as duas modalidades que disputei. A variação clássica, que foi o Trois de Paquita, e o pas de deux de O Quebra Nozes, com o Yuri. Tô muito, muito feliz.
— Não tô nem um pouco impressionado — ele diz irônico. — Sabia que você ganharia. Você é a melhor bailarina do Ballet Imperial de Petrópolis, e também a mais gata.
— Para, vai. Não é bem assim.
— É sim, Danny. Você dança com coração, com alma, dá tudo de si e não tem medo de expressar o que sente.
As palavras de Odin me tocam por dentro e fazem um calorzinho se alojar no meu coração. Ele sempre tem uma frase bonita pra me dizer. Ele sempre me faz ir dormir com um sorriso no rosto.
Diminuo a velocidade dos meus passos pelo corredor para que eu consiga terminar de conversar com ele antes de chegar a cozinha, onde as garotas estão rindo enquanto falam.
— Estou com saudade de você. Queria te ver amanhã — paro à porta da cozinha.
— Eu também. Quer ir a um pub comigo? Conheço um que fica perto da estação Quental de Aveiro.
— Quero. Só não posso dizer que hora vou estar livre. Agora entrei para a turma das bailarinas que dança até mais tarde — reviro os olhos.
— Tudo bem, eu espero — ele pausa, para então concluir: — Eu sempre te dou todo o tempo que você quiser. Inclusive o tempo pra você dizer que me ama.
Esse desabafo sincero do meu namorado me quebra, de um jeito que faz meu sorriso sumir do meu rosto aos poucos. Mas não me sinto culpada. Eu não sei fingir para as pessoas com quem fico.
Eu sinto paixão por Odin, uma coisa forte e impulsiva que faz com que completemos um ao outro quando fazemos sexo. Se eu pudesse, diria a ele eu te amo toda vez que ele me diz isso. Como eu queria…
Suspirando, olho para o interior da cozinha, a bancada ocupada por cinco das minhas colegas. O tampo de granito com sanduíches de queijo minas em pratinhos e copos de café. Elas estão felizes. Eu também estou. Não é um sentimento de culpa que vai apagar isso.
— Tchau, Odin. Me liga amanhã.
— Tchau, Danny. Te amo.
— Eu sei.
Travo o iPhone, dou um suspiro e adentro a cozinha, já esperando que Luna ou Tiffany façam um comentário sarcástico sobre minha cara de apaixonada há pouco.
— Dá um lugar pra mim — me coloco entre Luna e Kauane, mas sem me sentar no banco alto.
— Já matou a saudade do modelo? — como conjecturei, é Luna a primeira a fazer gracinha.
— Eu contei à ele sobre o festival em Petrópolis. Ele disse que sabia que eu iria vencer — corto um pão ao meio e ponho habilmente uma fatia de queijo, me servindo, a seguir, de um copo de leite que tiro da garrafa térmica.
As garotas trocam olhares suspeitos, mas ignoro suas brincadeiras inconfessas. Me esquivo das perguntas delas, usando meu talento natural para não falar de assuntos que só dizem respeito a mim e ao meu namorado.
Como meu sanduíche com pressa e tomo do copo de leite, saindo num átimo em direção à escada, enquanto uma delas comenta sobre as danças. Subo quase correndo e entro no quarto. Me agacho, tiro uma toalha, uma calcinha e uma camiseta largona, e entro no banheiro, me despindo.
Como é bom sentir essa água quente lavando meu corpo, bem diferente daquela ducha morna da escola em que pernoitamos em Petrópolis. Lavo com delicadeza cada parte do meu corpo, passando a buchinha pelos meus seios, barriga e sexo como se Odin estivesse me ensaboando. Dou um sorriso malicioso, olhos fechados.
Visto a calcinha e a camiseta, atiro a roupa suja no cesto e volto para meu quarto. Tiffany e Luna reviram o armário, procurando suas roupas. Roberta está sentada em sua cama. Ela está tirando os esparadrapos dos dedos, e como eu, alheia à conversa animada entre a loura de cabelo cacheado e a morena paraibana.
Tenho que fazer malabarismo para não pisar ou tropeçar nas mochilas e porta tutus das garotas, e quando chego à beliche em durmo, subo com rapidez pela escada e me deito, puxando os dois grossos cobertores sobre mim.
Porém, não fecho os olhos de imediato. Não estou com tanto sono como estava na van de seu Matías, e penso que é por causa do banho que acabei de tomar, que deixou meus sentidos despertos.
Aproveito para olhar meu perfil nas redes sociais. As fotos que postei das minhas apresentações estão rendendo muitas curtidas e comentários.
Bailarina linda, te adoro, um cara que me segue há dois meses comentou.
Parabéns pelo primeiro lugar, Danny. Aqui em casa todos te amamos, uma senhora declarou. Sorrio e digito um obrigada.
Desço calmamente o polegar pelos muitos comentários, um mais motivador que o outro. Um deles me deixa emocionada, quase me fazendo chorar.
Danny, uma vez levei minha filha pra assistir um festival em Ribeirão Preto e você dançou como Cisne Branco. Ela ficou tão encantada com você, que decidiu que queria ser bailarina. Ela te adora e diz que quer dançar como você.
Ao terminar de ler, sinto meu coração bater mais forte. Obrigada é pouco para expressar a gratidão que tenho por essas pessoas, muitas das quais nunca vi, acompanharem minha carreira, toda a minha trajetória na dança, e torcerem por mim. E quando uma mãe diz que eu inspirei sua filha a seguir a carreira de bailarina, penso: fiz algo certo.
Queria poder conhecer todas essas pessoas, olhar para elas e dizer, sorrindo, o quanto elas são importantes pra mim e o quanto elas me motivam a melhorar como dançarina todas vezes que ouço ou leio coisas tão bonitas quanto essas mensagens de felicitações.
E claro, não poderia faltar uma mensagem da vó Vitória.
Danny, minha neta querida, como eu queria ter assistido suas apresentações. Meus olhos lacrimejaram de emoção só de ver pelos vídeos da TV Promoarte você dançando e o público vibrando com você. Me fez eu lembrar de quando tinha sua idade, de como eu me sentia feliz e realizada. Parabéns, meu amor, minha neta que eu amo muito. Durma com essa certeza, de que você nasceu para ser feliz.
A mensagem da minha avó é a pá de cal; a linha tênue que me segurava pra não chorar se rompe, e afetada, o aparelho cai de minhas mãos. Por sorte as garotas estão absortas, falando sobre tudo, sem me notar.
Pego de novo o iPhone.
Obrigada, vó. Te amo. Sinto saudades.
Termino de ler as mensagens. Tem da Stefany me chamando de ridícula e logo depois dizendo que me ama. Da Duda. Da Nicole. Da razinza da Alice.
Do meu pai.
Mordo o lábio inferior, sorridente. Tenho vontade de responder a todos, mas isso demanda tempo, e além disso, preciso dormir.
Quando travo a tela do aparelho e o deixo ao lado da minha cabeça, o visor se acende, avisando que recebi uma mensagem. Prontamente o destravo.
Minha boca se abre em surpresa.
Yuri?
Você chegou bem de viagem?
Não estranho o tom seco da pergunta do meu parceiro, porque é típico dele ser direto.
Cheguei agora a pouco. E você?
Bem. Nastia e eu acabamos de subir para os dormitórios. O motorista da Tânia levou Dominique para a Tijuca.
Mordo com mais pressão meu lábio inferior. Meus olhos encontram os de Luna, curiosa. Por que ela não saiu com a Roberta e a Tifanny pra ir tomar banho.
Só mandei mensagem pra saber mesmo. Boa noite.
— É o seu parceiro? — Luna pergunta num tom zombeteiro que me fez revirar os olhos.
Boa noite, Yuri.
— É ele, né? — a morena insiste.
— Era — respondo. Afundo a cabeça no travesseiro, cruzo os braços sobre a nuca, olho para o teto. — Ele perguntou se eu havia chegado bem de viagem.
A morena assente, abrindo o zíper de seu porta tutu para dar uma rápida chegada em seu figurino.
— Ele é cuidadoso com as parceiras — ela informa enquanto pendura o tutu no cabide.
— Ele era assim com a Dominique? — não sei por que estou fazendo essa pergunta, mas de repente fico curiosa.
— Sim, mas de um jeito diferente.
— Diferente como?
— Não sei. Era um tipo de preocupação mais ... profissional. Eles conversam, mas a gente vê que não são amigos próximos. De você ele gosta, talvez porque tem um sorriso cativante e porque trata a irmã dele com respeito.
Luna não está errada em pensar assim. Deve ser isso. Ou porque somos parceiros de dança e é natural que exista afinidades entre os mesmos.
Até agora consigo sentir no meu corpo o toque das mãos dele me segurando e me impulsionando, junto das emoções desta tarde. É um tipo de lembrança que não sai, porque eu me senti plena como nunca me senti antes. E uma vez que a gente se sente voando, quer que momentos assim se tornem rotina.
…
Por ter acordado mais tarde, não tenho tempo de me alongar. Luna, para variar, corre saltitando para abrir as portas do terraço. Ela deve sofrer de hiperatividade. Não é normal uma pessoa não conseguir ficar parada.
— Bom dia, meninas — bocejo ao me espreguiçar, descendo pela escada da beliche.
Tomo banho junto com a Luna enquanto Tiffany e Roberta esperam do lado de fora sua vez de usar os chuveiros. Fazemos a higiene bucal, saindo só de calcinha e camiseta para que nossas colegas de quarto possam entrar e também tomar banho, e voltamos para o quarto. Visto antes que minha amiga o conjunto de agasalho do Ballet Imperial e Petrópolis, calço os tênis, penteio o cabelo diante do espelho. Passo uma maquiagem bem leve.
Um dos meus compromissos para esta semana é uma consulta com o dentista, o Dr. Jairo. Ele foi aluno do Ballet Imperial de Petrópolis, mas não quis seguir carreira como bailarino; quando se formou, há vinte anos, cursou faculdade de Odontologia e hoje é um dos nossos anjos da guarda, junto com os outros profissionais que cuidam da nossa saúde, como psicólogos, clínicos gerais, ortopedistas e fisioterapeutas. Todos ex-bailarinos da companhia.
— Essas borrachinhas estão me incomodando — reclamo enquanto prendo os elásticos nas pedrinhas do meu aparelho de dente.
— É só tirar — Luna dá de ombros desdenhosamente, concentrada em prender seu cabelo em rabo de cavalo.
— Não posso.
Seu Jairo tirou minha ilusão na nossa última consulta ao avisar que vou ter que usar aparelho por muito tempo ainda.
— Um ano? — perguntei esperando que ele respondesse sim.
Mas ele me olhou com gravidade.
— Dois?
— O tempo a Deus pertence — ele deu uma resposta filosófica e evasiva, deixando implícito que dois anos é pouco.
Luna termina de se arrumar (finalmente) e nós duas descemos em direção a cozinha. Ao ver Paloma com o cotovelo apoiado na bancada, conversando sorridente com as garotas, dou um sorriso de orelha à orelha e abro os braços.
— Pah! — corro ao encontro dela.
— Tudo isso é saudade de mim? — a bela dançarina negra sorri e me aperta num abraço gostoso, beijando minha cabeça e me balançando. Ela abre o braço esquerdo para que Luna também se aproxime.
— Claro. Senti falta do bolo de fubá que você faz — brinco.
Pah faz uma careta.
— Que interesseira — diz com amargura.
— Não leva para o coração, Pah. Você sabe que te eu amo, né?
Minha confissão é tão adocicada que nossa monitora de corpo escultural sorri e me segura pelos ombros, me fitando.
— Claro que eu sei. Eu também amo todas vocês. Todas — de repente, o rosto dela se reveste de seriedade. — Mas isso não quer dizer que vou relaxar minha vigilância, ok? Eu ainda sou monitora de vocês.
As meninas e eu trocamos um olhar assustado, sem nada dizer.
Paloma põe as mãos na cintura e ri.
— Vamos meninas, comam. Vão chegar atrasadas no Ballet Imperial — ela bate palmas. — À propósito, parabéns à todas vocês. Estavam lindas.
— Obrigada, Pah — Fernanda e Kauane respondem juntas, se levantam de seus lugares e levam para a pia seus pratos e colheres. Me sento no lugar da amazonense, me servindo de um pão com margarina e de um copo de café com leite. Não tenho tempo para comer nada que precise usar o fogão.
Luna se senta do meu lado, mas ao invés de tomar seu café da manhã para irmos, está mais preocupada em ver as fotos do festival em Petrópolis.
— Como foi seu fim de semana, Paloma? — olho por sobre o ombro para a monitora.
Ela dá de ombros.
— Foi normal. Dei uma geral na república depois que vocês subiram para Petrópolis, fui para a academia malhar, ensaiei coreografias novas com as meninas no estúdio e ontem dancei no programa.
Por Paloma dançar há muito tempo na aeróbica do Renata e você, talvez ela não tenha o mesmo fascínio que a gente daqui de fora tenha por ver moças lindas e de corpos esculturais, só de collant cavado e tênis, dançando e sorrindo todo o tempo.
— Que idade a gente precisa ter pra ser dançarina da aeróbica? — indago. Luna para de correr a tela com o indicador e me olha. O que foi?, pergunto.
— Quer dançar no Renata e você, Danny? — Paloma ri.
Minhas bochechas coram.
— Claro que não. Eu teria vergonha. Tipo… Dançar com um collant tão cavado, todo mundo me olhando pela tv… Só curiosidade mesmo.
Paloma balança a cabeça.
— As meninas fazem testes com dezessete anos. Mas é uma profissão bem difícil. Temos que malhar sempre, controlar nosso peso e aturar os rompantes da Renata Sodré, que é uma patroa chata e exigente.
— Ela é muito grossa — Luna faz uma careta. — Não gostei da gracinha que ela fez com aquela loura que estava do teu lado. Camila, né? A Camila sabe a importância de ter um corpo em dia, senão o namorado troca por outra. Né, Camila? Cara, que mulher desnecessária.
— É o jeito Renata Sodré de ser. Ela foi top model, sabe a importância de ter um corpo bem feito e acha que aparência é tudo.
— Mas devia filtrar melhor suas palavras — Luna retruca.
Paloma assente.
— Bom, vou trabalhar — anuncia.
Nós oito saímos juntas para ir à escola. Como é segunda feira, temos Literatura e também Matemática, o que é um tédio, porque não estou inspirada à cálculos e decoro de fórmulas.
— Bom dia — aceno sorrindo para os alunos assim que adentro o prédio.
— Bom dia — uma garota segurando os livros contra o peito responde.
— Parabéns pela sua conquista ontem, Danny — a amiga ao lado dela me cumprimenta.
Respondo um obrigada de passagem, continuando a andar.
Entro na sala de Literatura, e ao vislumbrar o fundo, noto que os lugares de Yuri e Dominique estão vazios. Não preciso fazer nenhum exercício mental para deduzir que eles estão fazendo aula com a companhia profissional.
Me sento na cadeira, abro o caderno. De repente, a classe silencia, e levanto a cabeça para ver quem entrou.
— Danielle, a diretora quer que você se dirija à sua sala agora — a mulher de olhos cinzas e frios (a mesma que me mandou tirar as polainas no dia em que prestei audição para entrar aqui) dirige da porta sua voz dura a mim.
Me pergunto, enquanto me levanto e ando até mulher, o que eu fiz para Yekaterina Gamova, a mulher de quem todos têm medo, querer falar comigo.
Nunca é bom entrar numa sala de diretoria.
Capítulo de 5k de palavras
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¹Esse episódio existe no capítulo 6 do livro Instinto de Lilith, também publicado no wattpad. É um hot explícito.
Já imaginaram Danny dançando na aeróbica? Quem sabe no futuro, não é? Vocês gostariam de um conto curto em que ela se aventurasse na tv como dançarina, para ganhar um extra?
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