Capítulo 21
What you got boy it's hard to find
I think about it all the time
I'm all strung out, my heart is fried
I just can't get you off my mind
Ke$ha, Your love is my drug
Quando a música de Tchaikovsky começa a tocar suavemente no palco escuro, quebrando o silêncio que há dentro de mim, fecho os olhos por um momento, me sentindo um pouco nervosa. Mas não vejo isso como algo ruim. Por mais que eu queira dominar o palco, sei que preciso respeitá-lo, e sei também que ele tem o poder de mostrar minhas fraquezas.
Yuri toca com suavidade minha mão e o calor que ela irradia corre pela superfície da minha pele, me despertando. Então abro os olhos e o vejo sorrindo, me encorajando com suas orbes azuis e brilhantes, me dizendo em sua linguagem muda que eu não estou sozinha e que tudo vai sair como a gente sonhou.
Ele se vira para o palco e dá um passo gracioso. Dois. Três. Seus braços, soltos e relaxados ao longo do corpo, e seu olhar baixo, voltado para o chão, remetem a um sentimento de melancolia, e quando ele chega ao outro canto, caminho à passos delicados e graciosos ao seu encontro. Paro a um braço de distância e ele se vira lentamente pra mim, me olhando bem dentro dos olhos.
Dou a ele um sorriso, e em troca recebo um olhar longo e cheio de sentimentos que não sei dizer o que são. Erguendo sua mão direita, ele toca meu rosto. O calor que sua mão irradia me dá confiança. Volto a sorrir, enquanto ele apoia um dos joelhos no chão, e tomando minha mão direita, a passa em seu rosto.
Pondo-se em pé, o bailarino busca mais proximidade do meu corpo. Consigo sentir com prazer seu perfume tão agradável, uma fragrância cítrica e cativante. Estou entregue à uma gostosa fantasia, me perdendo aos poucos de mim e perdendo o chão sob meus pés.
Como fingir para as pessoas? Como mentir pra mim mesma, tentando me convencer que o que está aflorando aqui dentro não são sentimentos reais, mas só expressividade artística?
Yuri segura minhas mãos por entre as suas na altura de seu peito e meus lábios tremem enquanto o sorriso aos poucos some de meus lábios. Seu olhar doce, porém, me impulsiona, e todas as minhas dúvidas desaparecem.
Nossos corpos são iluminados pelas luzes. Sinto dentro de mim uma mistura de emoções: alegria, ansiedade e determinação, uma vontade forte de que este não seja só mais um duo, mas algo de que eu nunca me esqueça. Quero que seja especial pra mim.
Me esquivo e giro dois tour piqués em torno dele, me adiantando em pas de bourrè à sua frente, até que sinto suas mãos segurarem minha cintura. Com leveza e precisão cirúrgica, ele faz eu girar quatro pirouettes e me segura para que eu me incline em penché.
O sorriso cresce em meu rosto junto com a intensidade da música. Pouco me importa agora os ensinamentos que recebi nas salas de aula quanto a ângulo de abertura de pernas, encaixe de quadril ou tempo. Meu corpo passa a se mover por instinto.
À medida que a música começa a crescer, meu espírito se eleva com ela. Sinto a emoção correr em minhas veias, enquanto realizamos movimentos cada vez mais complexos. Sinto a mão do meu parceiro me levantando, minha perna sendo estendida no ar. Eu flutuo graciosamente, me sentindo leve. Nossos movimentos são executados com perfeição e maestria, em sincronia com a música.
Giro mais uma sequência de pirouettes com as mãos de Yuri na minha cintura, e nossos olhares se encontram pela última vez. Abro os braços, retesando minha cabeça para trás; me viro de frente. No instante em que meu parceiro segura minha cintura com mais força, faço uma leve flexão de pernas para que meus pés briguem com o chão e me impulsionem para cima, e enfim, Yuri me ergue acima de sua cabeça. Meus braços se abrem em cruz. Dobro minha perna direita e mantenho a esquerda esticada.
Suspensa no espaço, olho para um céu estrelado imaginário e sorrio para cada estrela. Sinto que estou vagando na imensidão do cosmo; mas é Yuri andando comigo em torno de si mesmo.
Algumas pessoas começam a nos aplaudir antes mesmo do fim da música, o que me deixa feliz e realizada. Num movimento ágil, Yuri me solta e ainda no ar executo meu último movimento: o pescado. Meu parceiro é tão preciso que me suspende com segurança.
De repente, tudo para, e eu estou em um momento de graça. A canção de Tchaikovsky cessa e os gritos eufóricos e os aplausos do público explodem de todos as direções do teatro. É insano.
Sinto uma sensação única de dever cumprido. Executamos a coreografia com sublimidade, muito mais com alma do que com técnica. Demos nosso sangue.
Não tenho palavras.
Mas me ocorre que não há problema eu não ter palavras. Eu nunca tenho palavras para expressar como fico depois de uma apresentação, a não ser que é a melhor parte.
Yuri me põe em pé com cuidado e torna a segurar minhas mãos por entre as suas. Nossos olhos se conectam, sorrisos brincam em nossos lábios.
— Obrigada — agradeço com voz emocionada, quase chorando.
Ele só assente. Segura minha mão esquerda e me conduz com gentileza pra mais perto da beira do palco a fim de que reverenciemos o público emocionado. Sorrindo, me inclino graciosamente, agradecida, e faço a reverance, me levantando.
— Bravo! Bravo! Lindos! — as pessoas gritam em pé, nos aplaudindo sem parar.
Yuri faz um gesto elegante com o braço e me reverencia. O sorriso discreto em seu rosto insiste em ficar, seus olhos azuis refletem meu rosto cintilando de felicidade e emoção. Faço uma delicada reverance, e quando os sons dos aplausos e gritos se intensificam, atingindo seu ponto máximo, saímos correndo com graciosidade pelo canto esquerdo do palco.
Uma multidão de bailarinos está nos esperando quando estamos fora do alcance dos olhares do público. Sem me conter, puxo Yuri pra mim com um abraço apertado em seu pescoço e o balanço.
— Foi lindo! Foi lindo! — grito emocionada.
Demora um pouco para que meu parceiro me abrace. Ele retribui ao meu carinho de modo discreto, gentil.
— Sim, foi — ele responde, pondo a mão em meu ombro e se afastando um pouco. — Foi perfeito. Você esteve perfeita.
Discordo de suas palavras com um balanço negativo de cabeça.
— Nós dois fomos perfeitos — o corrijo. — Eu não dancei sozinha. Eu não teria feito nada se você não estivesse ali para me dar apoio, para me segurar pela cintura e me erguer para o alto.
Yuri ri.
— Só fiz a estrela brilhar — insiste.
Ele ergue sua mão direita e meus olhos acompanham seu movimento sutil em direção ao meu rosto. O dorso de seu indicador me toca com delicadeza, fazendo com que eu sinta um calorzinho nessa parte do meu corpo.
— E não foi difícil — ele conclui.
Minha boca fica levemente aberta enquanto tento assimilar esse estranho sentimento que estou tendo de repente, como tantas vezes eu tenho quando danço com Yuri. É um sentimento que me faz sentir especial, mas que não sei explicar. É como se eu, uma bailarina que tem muito o que aprender, só pudesse encontrar nele minha completude.
Dançando com ele, eu me senti próxima de estar levitando no céu, muito acima do mundo. Eu vi o sentido de tudo, tudo de repente se encaixou. O chão havia sumido dos meus pés. Minha alma de bailarina ganhou asas e senti meu coração livre.
E agora, aqui estou; ainda sem sentir o chão. Perdida de mim, sem saber como voltar e ao mesmo tempo não querendo acordar desse sonho.
— Obrigada — meus lábios balbuciam. — Obrigada por ter acreditado em mim, mesmo às vezes eu não merecendo.
Yuri segura minha mão.
— Obrigado por você sempre ter esse sorriso que faz as pessoas se sentirem felizes — ele diz; consigo ver seu rosto se expandir e seus olhos se cristalizarem. — Nunca deixe de ser essa garota incrível.
Ficamos olhando um para outro sem nada dizer. Então Luna e Roberta se colocam ao nosso lado, fazendo com que direcionarmos nossos rostos para elas.
Luna é a primeira das duas a me dar um abraço. Um abraço desajeitado, mas cheio de carinho, típico dela. Seu rosto irradia uma emoção genuína.
— Danny… Foi simplesmente lindo — ela balança a cabeça em descrença.
— Eu sei — dispenso a modéstia.— Também senti isso quando a gente terminou a apresentação. Me volto para meu parceiro: — Não foi?
Yuri confirma que sim com um balanço positivo de cabeça.
Como ontem, quando encantei a todos com minha variação clássica, todo mundo brota de todos os lados de uma vez para nos cumprimentar. Yuri agradece com discrição. Ele não gosta de contato com as pessoas e se limita a cumprimentar as pessoas com um simples aperto de mão. O único abraço que aceita de bom grado, além do meu, é o de Nastia.
— Pozdravlyayu!¹ — a russa fala.
Quanto a mim, estou tão feliz que aceito abraços de todas as minhas colegas, e também de bailarinos que nem me lembro de ter visto se apresentar. Não importa.
Lágrimas correm pelo meu rosto maquiado, me lavando por dentro, inundando meu coração de alegria. Me sinto realizada, agradecida a mim mesma e a todos que acreditaram em mim.
Não me importo que digam que sou emotiva. Eu provei que isso não é defeito. Quero viver cada segundo desses momentos tão marcantes com todos esses bailarinos que têm os mesmos sonhos que eu.
Busco nos olhares deles seus sentimentos de carinho sinceros, e em meio àquele mar de rapazes e moças com figurinos, Dominique se infiltra entre eles, vem andando em minha direção e para diante de mim. Seu rosto contraído, seus olhos bem abertos e seus lábios semicerrados deviam ser pra mim um alerta, mas não estou com a menor vontade de ficar irritada com alguém. A vida é curta demais para que desperdicemos seus momentos bons com futilidades.
A bailarina negra me avalia um pouco, olha para o chão, volta a me olhar, desvia de mim olhando para os lados, e num gesto inesperado, estica seu braço direito e envolve meu pescoço.
— Parabéns — ela diz enquanto me abraça.
Recuando um passo, e depois outro, fugindo aos meus olhos descrentes, a estrela da Promoarte Rio gira nos calcanhares e abre caminho entre os bailarinos, segurando sua saia bandeja para que não amasse durante o inevitável contato com eles.
Procuro respostas nos olhos de Yuri e Luna. A morena dá de ombros, tão admirada quanto eu.
— Isso aconteceu mesmo ou é uma alucinação pós-apresentação? — estou quase me beliscando.
— Se for, eu também estou sob efeito — Luna ri.
Me ocorre então que eu conquistei muito mais do que os corações das pessoas que assistiram Yuri e eu dançando.
Eu conquistei o respeito da Dominique.
…
Lara é a última bailarina convidada da noite, e o público sente um nó na garganta misturado com dor ao ver sua Princesa Odette agonizando num pranto invisível, ao vê-la chorando por um amor inconsistente. Um amor egoísta, fútil.
Ela cai morta nos braços de Gabriel, o bailarino que dança como Siegfried. A música termina e as cortinas se fecham, para que eles sejam ovacionados.
— Essa mulher é um escândalo — Guilherme, que está ao meu lado, comenta.
Concordo com um sinal discreto, sorrindo emocionada.
Um escândalo, repito mentalmente.
Um dia quero ser como ela. Não. Um dia vou ser como ela.
…
Nos sentamos nas primeiras feiras da plateia para o anúncio dos vencedores do Festival de Dança de Petrópolis. Foram dois dias intensos, em que aprendi muito e conheci um pouco mais de mim, não só como bailarina, mas também como pessoa. E conheci histórias de jovens que vieram de longe, que amam a dança e deram tudo de si.
Por muito tempo acreditei que por esse ser um mundo de muita rivalidade e disputa, não havia espaço para amizades, para abraços e sorrisos sinceros, e que as relações de afeto entre as pessoas eram inconsistentes. Mas o que eu vivi nesse fim de semana me mostrou que podemos ser diferentes, se quisermos. Podemos sentir admiração por nossos rivais e ter a sensação de que embora imperfeita, eles são nossa família.
Cada abraço que recebi, cada felicitação vinda pelo celular de amigos que deixei em São Paulo, dos bailarinos do primeiro estúdio de balé que acreditou em mim de verdade, me confortou e me fez entender que este é caminho que tenho que perseguir, e que não há outro. Não há outra coisa que possa me fazer feliz de verdade senão dançar até que minha vida chegue a bom termo.
Gratidão. Essa é a palavra que está gravada em mim.
Gratidão por esse palco incrível, por meus pais, por Letícia.
E principalmente, por Yuri.
O bailarino russo está na segunda fila, teclando seu celular. Nastia está entre ele e Sacha, segurando a mão da loura. Delineio um sorriso terno. Os três irradiam paz, uma alegria discreta característica de seu povo, mas tangível em cada gesto que consigo sentir.
Em cada um dos meus flancos, estão Luna e Kauane. Estamos usando nossos figurinos. Minha colega paraibana a todo momento tenta ver o que tanto digito no meu celular, mas nem morta vou deixar que leia as mensagens fofas do meu namorado.
Principalmente porque não são mensagens tão inocentes e não quero que sua inocência seja ferida.
Guardo o iPhone entre meus seios e, olhando para a morena, cruzo os braços, com olhos maliciosos. Ela faz um beicinho.
— Gente, vai começar — Kauane diz.
Olhamos em expectativa para o palco iluminado. Tânia Dressler surge vestida com sua habitual elegância discreta, trajando um conjunto de blazer preto e saia social, meia calça e sapatos de salto. Recebendo o microfone que lhe é oferecido, faz um agradecimento a todos os organizadores do evento, patrocinadores e bailarinos da Promoarte, porque nada teria acontecido sem eles. Essa parte da cerimônia sempre me dá vontade de dormir.
Lara é a primeira bailarina a aparecer no palco. Ela põe a medalha de terceiro lugar no pescoço de uma jovem de traços japoneses, que dançou Kitri na categoria Sênior – acima da nossa. Os primeiros a serem premiados são os bailarinos dessa categoria.
Meu coração começa a se acelerar de novo quando enfim são anunciados os vencedores da categoria Júnior. À essa altura, Dominique já se encontra no palco, junto com Nastia e Yuri. Os três juntos são um trio imponente. Eles merecem ser solistas da Promoarte, estrelas, porque além de terem técnica, são artistas por excelência.
Dominique olha com desinteresse para os assentos onde estamos. Às vezes penso que é só o cansaço por ter dançado muito, mas no fundo sei que esse tipo de festival já não lhe dá tanto prazer quanto às competições internacionais de que tem participado e vencido. Não consigo julgá-la; quanto mais alto uma bailarina voa, mais perto das estrelas quer ficar.
O que talvez ela não tenha aprendido – e que espero que não seja tarde para ela aprender – é que não existe nada mais prazeroso para alma do que dançar e expressar a felicidade através dos nossos movimentos, que dançar é mais importante do que o palco.
Faz-se um instante de silêncio opressivo, cortado pelos silvos dos microfones que abafam as palpitações dos corações dos bailarinos ansiosos por saberem se foram bem ou não. Cinco jurados, dos quais três são bailarinas que eu admiro e nos quais me inspirei como pessoas, depositaram dentro de envelopes suas considerações sobre nossas performances; o que precisamos melhorar, em quais quesitos nos destacamos.
Tânia pigarreia, entona sua voz para anunciar o nome da terceira colocada.
Terceiro lugar, com variação de Coppélia, aluna do Estúdio de Dança Fabíola Assunção: Natália Martínez.
A garota se levanta detrás da fileira em que estamos e corre graciosamente para o palco para receber sua medalha das mãos de Nastia. Os lábios da russa não se movem enquanto a abraça, e as bailarinas posam juntas para uma foto, se distanciando uma da outra sob aplausos calorosos.
Não me importo com medalhas. Claro que é legal ganhar, mas o mais importante eu já conquistei, e nada vai tirar o brilho que eu sei que tenho no olhar. Não preciso me ver no espelho pra ver que meu rosto irradia felicidade.
Luna segura minha mão, me olha com ternura, e me oferecendo o sorriso mais bonito que existe, aninhou minha cabeça em seu ombro.
Segundo lugar. Variação de Harlequinade. Bailarina do Ballet Imperial de Petrópolis: Kauane Tanaru.
Levanto minha cabeça para ver a índia se levantando rapidamente, andando e acenando em agradecimento para as pessoas que a aplaudem. Ela recebe sua medalha e volta sorrindo para seu lugar, fazendo por graça um gesto indígena caricato, batendo com a palma da mão na frente da boca.
— Parabéns — sorrio, dando nela uma abraço.
— Obrigada, Danny.
— Que medalha linda — Luna a ergue um pouco, tocando com os dedos nos detalhes do contorno prateado.
— É — a amazonense concorda vagamente.
Um dia antes de virmos a Petrópolis, Kauane nos disse, enquanto tomávamos café da manhã na república, que quer disputar o título de demisolista, já que não se sente pronta pra subir um degrau mais alto.
O que me deixou puta é que quem lhe sugeriu isso foi Dominique, a quem a bailarina índia considerava uma irmã e que devia, antes de todo mundo, apoiá-la. Amigas de verdade nos incentivam, são aquelas que, quando confessamos nossos anseios e medos, dizem vai, você consegue.
Talvez ela precise abrir os olhos para quem são suas amigas de verdade antes que se machuque.
Projeto minha cabeça novamente para o palco. Para Tânia Dressler. Para o trio de solistas com quem estudo e para os bailarinos solistas de outras escolas, também estrelas da Promoarte.
Enfim, o tão esperado momento. O ápice da noite.
Sei que não devo criar expectativas. Tantas vezes paguei caro por um figurino e dancei, e me sentei num desses lugares achando que seria chamada ao palco para receber um prêmio, e outra garota foi chamada no meu lugar. Só depois que aprendi que dançar em si já é o maior prêmio, que dançar é um dom único e o que me mantém em pé, é que deixei de me importar com o reconhecimento dos jurados. As pessoas que me aplaudem são muito importantes.
Mas não custa sonhar.
Tânia recebe o envelope da assistente, o abre com cuidado. O silêncio volta a imperar, logo se rompendo quando a mãe do meu namorado entona a voz.
— Primeiro lugar. Bailarina do Ballet Imperial de Petrópolis. Com Trois de Paquita…
Sou abraçada por Luna enquanto sinto o chão sumir de novo sob meus pés.
— Danielle Răducan!
— Você ganhou, gata! — Luna me aperta e me balança enquanto tento assimilar o choque.
Então acontece algo sem precedentes: todas as pessoas se levantam de seus lugares e começam a bater palmas de um jeito apaixonado, assobiando e gritando meu nome. Linda. Parabéns, Danny.
Me levanto num átimo e caminho saltitando em direção à escada que dá acesso ao palco. Sorrio, acenando com as mãos para o público e agradecendo por seu carinho, sentindo como se meu coração, a qualquer momento, fosse explodir de tanta alegria.
Ao pôr o pé no palco – forçosamente o direito, já que sou supersticiosa em alguns pontos –, sou aplaudida por todos os bailarinos da Promoarte que estão participando da entrega de medalhas, e Yuri, destoando de seu jeito sério e púdico, me presenteia com um sorriso, ao que retribuo.
Meu sorriso se expande quando Dominique se adianta para me entregar a medalha. Ela faz um esforço tremendo pra parecer neutra, mas não adianta; eu posso ver através de seus olhos negros toda a sua irritação.
— Parabéns — ela fala ao me abraçar sem jeito, como se eu estivesse fedendo, após pôr a medalha no meu pescoço. Sua voz é quase um sussurro.
— Obrigada.
Nos enfrentamos visualmente. Parece que uma corrente elétrica passa entre nós duas enquanto sustento o olhar da primeira bailarina no meu. Os lábios dela estão comprimidos, seu semblante retraído.
— Tchau — aceno, sorridente, dando-lhe as costas.
Tenho tempo de olhá-la por sobre meu ombro e vê-la expelindo o ar pela boca. Mordo o lábio inferior. Volto saltitando ao meu lugar e ao me sentar, Luna e Kauane seguram minhas mãos e me abraçam. As pessoas continuam me aplaudindo.
— Como você consegue ter esse efeito sobre as pessoas? — Luna pergunta com descrença, olhando em derredor.
— As pessoas sabem que eu não finjo quando estou dançando pra elas, e que eu me sinto feliz de verdade — respondo.
Luna fica por um minuto boquiaberta, talvez tentando entender o que é essa tal felicidade de que estou falando. É difícil entender o que é felicidade; para alguns é ter dinheiro e poder viajar e ter tudo o que se quer; para outros é ter uma pessoa que te ame e te aceite como você é.
Mas pra mim, ser feliz é ser bailarina.
…
Cruzo os dedos em total apreensão.
É o momento da premiação dos conjuntos, duos e trios. Posso ver daqui os bailarinos da Promoarte com reações distintas aos nomes que são enunciados. Dominique olha às vezes para cima e para baixo, tensa. Guilherme, separado de mim pelo corredor, está com os dedos cruzados na testa e os cotovelos apoiados sobre os joelhos, e seus pés balançam nervosamente. Os dois fizeram uma bela exibição, um pouco depois de Yuri e eu. São fortes candidatos à uma medalha.
Não me lembro de ter cometido nenhum erro, mas no balé, as sensações que temos no palco podem ser enganosas; de repente um dos jurados pode ter notado um pé que não se esticou, ou um braço de segunda muito alto.
São cinco jurados quem vão dar um feedback de todo um trabalho executado com coração. Não nos cabe contestá-los, mas aceitar suas observações, mesmo que isso nos doa.
Meus olhos se encontram com os de Yuri. Por mais louco que pareça, é como se ele me dissesse que eu ainda vou ganhar uma dose a mais de felicidade. Não custa sonhar. E se eu cheguei até aqui, por que não querer tudo?
Tânia Dressler, após tomar um copo d'água oferecido por sua fiel assistente, recebe os envelopes restantes – os últimos que vai ler, antes de agradecer mais uma vez à todos os participantes do evento e antes de posar para fotos de recordação com os bailarinos vencedores –, entona sua voz e anuncia.
— Terceiro lugar. Escola de Artes Pas de Valse. Com Pas de Deux de Raymonda: João Paulo Vilhena e Maria Lúcia Passos.
O par de bailarinos dá um grito eufórico atrás de nós, o que me me causa sobressalto. Eles se levantam num átimo e percorrem a distância que separa o palco das fileiras de assentos em microsegundos, logo recebendo os cumprimentos de uma bailarina caracterizada como Princesa Aurora e as medalhas de suas mãos. Voltam logo em seguida para seus lugares, sorrindo comovidos e felizes.
Tânia abre o segundo envelope. Mantém seus olhos num ângulo reto, direcionados à um ponto imaginário bem atrás de nós.
— Segundo lugar. Ballet Imperial de Petrópolis. Com Pas de Deux de Pássaro Azul:
Olho para a minha esquerda, vendo Guilherme erguer a cabeça e uma aura de felicidade envolvê-lo de repente. Ele está com um grito preso na garganta.
— Guilherme Rodrigues e Dominique Feitosa.
— Caralho! Ele conseguiu! — Luna dá outra de suas investidas desajeitadas contra meu corpo, esmagando meu corpo em seu abraço quente.
— Eu sabia que eles conseguiriam. Foram bons — começo a bater palmas assim que a morena me solta.
Meu colega chega ao palco tão rápido quanto o duo que há pouco esteve lá. Sei que os sons dos aplausos estão soando em seus ouvidos como uma marcha nupcial. Não tem barulho mais vindo para os ouvidos de um bailarino do que aplausos.
Dominique se adianta no palco para estender a mão ao seu parceiro. Os dois se limitam a uma troca de sorriso discreto, mal se olhando, avessos à uma cumplicidade fingida. Uma das bailarinas sênior caminha até os dois e primeiro coloca a medalha no pescoço da bailarina negra.
Consigo ler um obrigada nos lábios dela. Ela e Guilherme posam para uma foto. Ele faz menção de descer sozinho, já que Dominique, por ser bailarina da produtora, deve ficar no palco até o fim da premiação; Tânia, no entanto, lhe faz sinal para que fique ao lado de sua estrela júnior.
— Que garota antipática! — Luna faz uma careta de desgosto. — Acaba de ficar em segundo lugar num festival importante e fica com essa cara de quem caiu de bunda no palco.
Meneio a cabeça em negação.
— O problema dela é esse: o segundo lugar — respondo. — Para a Dominique, ser segunda colocada é ser a primeira entre as perdedoras.
— Não é isso.
Luna e eu viramos a cabeça ao mesmo tempo para Kauane. Os olhos dela se mexem nas órbitas. Será que ela não gosta que falem a verdade sobre sua amiga?
— A Dominique não consegue ter motivação se ela não for a melhor — a índia esclarece.
Se bem que eu já desconfiasse disso.
Quando a última onda de aplausos acaba, a mãe do meu namorado toma o último envelope da noite.
Pressiono meus cotovelos sobre meus joelhos. Cruzo os dedos diante da minha boca. Luna segura meu braço direito.
Silêncio.
A cabeça de Tânia Dressler vai de um lado para o outro, seus olhos correndo pelas linhas escritas da ficha. Começo a ficar tensa. O que os jurados escreveram naquela ficha, e que a deixou tão impactada?
— Senhoras e senhores. Pela primeira vez em dez anos de história da Promoarte, um pas de deux clássico recebeu nota 10 da banca de jurados. Como é algo sem precedentes, uma vez que na dança chegar à perfeição é um objetivo muitas vezes inatingível, não consigo não sentir orgulho e felicidade por caber a mim a honra de anunciar os nomes desse bailarino e dessa bailarina que realizaram esse feito.
Sinto minha garganta secar. Borboletas voam por dentro do meu estômago.
— Primeiro lugar. Ballet Imperial de Petrópolis…
Luna aperta meu braço com mais força, fazendo com que minha ansiedade passe a andar de mãos dadas com a aflição. Isso é tão opressivo, e ao mesmo tempo intenso.
— Pas de Deux de O Quebra Nozes…
Todos os olhares se voltam pra mim, mas não tenho tempo de distinguir rostos, nem nada. Já estou com o coração explodindo, à beira de uma overdose de emoção.
— Meu Deus! Meu Deus! — Luna me balança.
Giro minha cabeça em descrença. As lágrimas voltam a descer por meu rosto sardento.
— Yuri Chuchukov e Danielle Răducan!
De repente, tudo diante do meu campo de visão fica como que sob efeito esmaecido. As pessoas se levantam eufóricas, gritando bravo!, bravo!, aplaudindo a mim e ao Yuri de um jeito que nenhum conjunto ou solista foi aplaudido até ali.
— Yes! — vibro em êxtase ao me colocar em pé num pulo.
Quando acordo do choque momentâneo e vejo os rostos felizes das pessoas, é que começo a ter ideia do que meu parceiro e eu fizemos: nós simplesmente fomos perfeitos. Nós dançamos como um príncipe e uma princesa de verdade dançam numa valsa de uma corte.
Caminho em passos decididos para o palco, e quando ponho a ponta do meu pé na escada e ergo os olhos, vejo que ele está diante de mim. Yuri. Seus olhos azuis encontram os meus, permitindo que eu veja dentro deles sua felicidade. Um sentimento que seu sorriso discreto só insinua.
O ruivo me estende gentilmente sua mão e sobe comigo os três degraus da escada. Andamos juntos como andamos durante nossa apresentação para perto do elenco, agora alheios à comoção e aos aplausos do público que não se cansa de nos chamar de lindos e de assobiar.
Não tem nada melhor que isso, falo a mim mesma.
Tânia se adianta. Me abraça e dá um beijo no meu rosto, cumprimentando meu parceiro a seguir.
— Parabéns, Danny — ela segura minhas mãos por entre as suas. — Você evoluiu muito, muito mesmo. Você… você…
Arqueio as sobrancelhas em espera da conclusão de sua frase. Mas a alemã só balança a cabeça.
— Não. Não tenho palavras. Não sei o que dizer.
Ofereço um sorriso agradecido à dona da Promoarte.
— Obrigada pela oportunidade, Tânia — murmuro à meia voz.
Ela assente.
— Eu sei o que dizer.
Nós duas olhamos ao mesmo tempo para Yuri. Ele dizer algo sem que antes lhe perguntem é sempre um momento raro.
Ele segura minhas mãos e agora me olha bem dentro dos olhos.
— Ela deu um toque de magia ao duo que dançamos. Tornou nosso duo um poema; algo com alma e sentimento. Isso só bailarinas especiais conseguem.
— Yuri… — minhas bochechas queimam.
— Sim. É isso mesmo! — Tânia concorda. — Você deu um toque de magia. Você foi maravilhosa, Danny.
— Não! — nego, contrariada. — Eu não dancei sozinha! — agora me dirijo à Tânia. — O Yuri fez o mais difícil. Nós dois fomos perfeitos. Eu…
A frase fica em suspenso na minha boca. Yuri faz com a cabeça um sinal pra que eu não continue e eu compreendo que, embora ele tenha sido tão importante quanto eu, por humildade e modéstia não quer receber nenhum elogio. Um bailarino como ele não precisa de elogios.
O fotógrafo se aproxima com sua máquina pendurada no pescoço, Tânia se afasta um pouco.
— Segure a mão direita de sua parceira e sorriam — ele pede ao ruivo.
Yuri toma minha mão com delicadeza. Continuo sorridente e dobro minha perna direita atrás, mantendo a esquerda esticada. Um flash e pronto. A gente passa a fazer parte do acervo de fotos da Promoarte.
Talvez daqui a dez, vinte anos, quando eu olhar para esta foto e ver que um dia usei aparelho de dente, eu ria de mim mesma e ache que eu me emocionava muito fácil, que eu não tinha maturidade suficiente ou que eu me impressionava fácil com um festival de dança.
Mas eu sempre vou me lembrar que nessa noite um garoto russo, de emoções geladas – menos quando dança – fez eu me sentir a garota mais feliz do mundo.
Capítulo de 5k de palavras
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Pozdravlyayu (Поздравляю)¹: Parabéns
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