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Capítulo 20

I don't mind not knowing what I'm headed for
You can take me to the skies
It's like being lost in heaven
When I'm lost in your eyes

Debbie Gibson, Lost in your eyes

      Nem sempre o palco foi um refúgio pra mim. Quando eu era criança, antes de pisar nele pela primeira vez, ele me parecia um monstro.

      Ver minha mãe dançando nele, dominando-o e fazendo dele um trono para seu talento incomparável, parecia que era algo tão fácil que nunca imaginei que, quando chegasse  minha vez, aquele tablado fôsse me dar uma sensação de estar diante de um abismo. Achei que não fosse conseguir dançar. Achei que não era boa o suficiente, que ser filha da maior bailarina da história não iria me ajudar em nada.

      Mas Françoise me ensinou uma verdade: eu nasci bailarina. Nada tiraria isso de mim, nada me faria desistir, e mesmo eu sendo pequena demais para entender que nem tudo é bonito no balé, eu aceitei aquele desafio de coração aberto e brilhei em minha primeira apresentação.

      Foi lindo. O começo de um sonho.

      Depois de anunciado meu nome, meu coração se transporta. Meu corpo e minha alma encontram o tão importante ponto de equilíbrio quando meu nome é anunciado. Vá e brilhe, peço a mim mesma.

      As luzes se acendem. Ando em passos graciosos até o centro do palco e não há, nesse instante, vestígios da garota quieta, emotiva e compenetrada fora do ambiente da dança. Eu sei que ainda sou ela, que essa garota sofrerá muito até que sua vida chegue a bom termo, e que ela ainda vai derramar muitas lágrimas. Mas não hoje. Se eu chorar, serão lágrimas de alegria.

      Ao fazer plié e subir em up com a perna levantada em atittude, sorrio com alegria por sentir que a gravidade não significa nada para mim. Nenhuma força me segura no chão, nenhum medo me abala. A cada movimento, cada port de bras, me aproximo mais da beirada do palco e imagino o rosto de cada pessoa que está a minha frente. Imagino seus olhares, seus rubores.

      Volto para trás andando na ponta dos pés e no próximo oitavo de tempo, dou o máximo de mim. São minhas últimas forças. Intercalo as três pirouettes e os saltos em cabriole, e faço a pose final.

      A música termina e ela ainda ecoa dentro de mim, até que as pessoas se levantam de seus lugares e todos os sons possíveis se juntam. Palmas. Gritos de bravo, bravo, maravilhosa. Assobios.

      Faço uma reverance. Obrigada, meus lábios delineiam enquanto pequenas lágrimas começam a correr pelo meu rosto maquiado. Ando com a mesma graça e leveza em direção à coxia e vários pares de olhos estão a minha espera.

      Luna está com ambas as mãos no rosto e a boca semiaberta.

      — Danny? O que foi aquilo? Você simplesmente foi perfeita.

      As moças do dormitório me cercaram, me envolveram com abraços.

      — Parabéns, garota. Você foi ótima — Tiffany segura minhas mãos.

      — Obrigada, gente — agradeço. O chão volta aos meus pés aos poucos.

      — Gente, os aplausos não param — uma garota caracterizada como Coppélia grita.

      Os gritos de bravo ainda preenchem o recinto. Consegui o que queria. Eu obtive do pôr do sol um brilho mais forte.

      Dominique não está tão longe do nosso grupo. Eu a vejo me esquadrinhando, com os olhos fixos e um semblante desconcertado, sério. Dou-lhe um sorriso desafiador. Ela cruza os braços e expele o ar pela boca enquanto se retira acompanhada de Kauane, e no momento em que me viro, Yuri está parado diante de mim.

      — Oi — fico tímida de repente.

      — Parabéns — ele toma minha mão gentilmente.

      Sua expressão é indecifrável como seu rosto costuma ser. Vou precisar de muito tempo para compreender esse rapaz de emoções geladas e inconfessos, mas eu consigo enxergar, lá no fundo, um pouco de calor.

      — Obrigada, Yuri — agradeço, sorridente.

      — Você dançou como uma princesa. Quero que você seja ousada amanhã como foi agora, quando dançarmos juntos.

      Entreabro a boca. De novo meu coração bate forte.

      — Eu prometo dar o máximo de mim.

      Ele assente com gravidade, só esboçando um quase sorriso. Se afasta.

      Mais pessoas se aproximam de mim para me dar parabéns. Alguns são bailarinos de outras cidades cariocas. Querem saber de qual escola vim, há quanto tempo danço, se já dancei em competições fora do Brasil. Estou tão feliz que nem preciso me esforçar para ser simpática, e ao invés de responder sim, aham, com certeza, além de dar respostas prontas, trato a todos com a mesma atenção.

      Os bailarinos abrem caminho para que Olga e Tânia Dressler passem. Minha professora me deixa desconcertada ao dar um beijo gelado na minha testa, sem nada dizer.

      — Danny, querida, meus parabéns — Tânia me dá um abraço sem jeito. Ela usa blazer e saia social, e está calçando sapatos caros. — Ter mudado de escola fez muito bem à você. Está mais forte, mais leve, mas com a mesma graciosidade de sempre.

      — Obrigada, Tânia — sustento o olhar dela no meu.

      — O Odin? Não veio?

      — Não. Ele está desfilando. Pensei que você tivesse ligado pra ele e avisado que vinha — observo à modo de reprovação. A relação dos dois me é estranha; acho triste uma mãe e um filho não se falarem com frequência.

      — Eu acabei esquecendo. Tantos compromissos, tanta coisa para lembrar… 

      — Entendo.

      — Deixa eu te dar a notícia em primeira mão: no mês de julho, o Festival de Inverno da Promoarte acontecerá em Campos do Jordão. Teremos mais escolas participando, e é claro, você vai participar, não é?

      — Tânia, eu…

      — Receio que seja impossível — Olga não me deixa terminar de falar. — Em julho o Ballet Imperial de Petrópolis participa do Festival Internacional da Dança em Joinville. Como você sabe, os melhores bailarinos se apresentam lá e Danielle não pode deixar de ir.

      Intercalo entre Olga e Tânia um olhar curioso. Joinville, minha cidade natal? Eu sempre quis dançar nesse festival, porém nunca pude devido a Letícia participar como jurada, e por motivos profissionais e éticos, nenhuma bailarina sua poderia se inscrever.

      Mas neste ano nada me impede de ir a Joinville. Não sou mais aluna da Letícia, embora eu sempre vá considerá-la minha mestra e pessoa que me ensinou tudo. Não posso deixar que essa oportunidade me escape.

      — Ora, Joinville! — a mãe do meu namorado faz, desconcertada.

      Olga empina o queixo.

      — O que seria melhor para a Danielle, disputar um festival em que participam só escolas de São Paulo, ou uma competição em que os melhores bailarinos do Brasil participam? 

      Um sorriso de entusiasmo escapa atrevidamente dos meus lábios. Pela primeira vez tenho a chance de dançar na cidade que deixei há anos e onde fui feliz. Onde minha infância andou de mãos dadas com meus primeiros sonhos de menina.

      — Olga, o Festival de Inverno da Promoarte também recebe alguns dos melhores bailarinos do Brasil, e não só de São Paulo — percebo que Tânia quer defender suas teses. Ela é intransigente, tem um gênio autoritário e não gosta de ser contrariada. — E ele oferece uma boa premiação em dinheiro aos vencedores, além de estágios em companhias de dança e vagas na Companhia Permanente da Promoarte. 

      — Eu sei — a russa não se abala e continua a desafiar a alemã com seus olhos duros —, mas penso que para a Danielle, neste momento, seria mais desafiador encarar o palco onde todos sonham dançar, sob os holofotes, à frente de câmeras de televisão.

      Desafio. Eu preciso disso tanto quanto respirar. Será que Tânia, como bailarina, não sabe o quanto é importante para uma garota que calça sapatilhas encarar desafios maiores? Será que ela não lembra como eu me sentia quando julho chegava, quando todo mundo começava a falar do Festival de Dança de Joinville e a gente não podia participar, porque a Letícia era ética demais a ponto de não favorecer nenhum aluno seu?

      Claro que ela não entende. Os anos longe dos palcos sepultou sua alma de bailarina e a transformou numa mulher pragmática, a quem só resultados importam. A Duda é seu projeto, uma aposta pessoal, por isso minha amiga não sente prazer em encantar no palco, mas sente prazer em vencer. 

      Mas eu sou diferente. Eu amo dançar, de verdade, e mesmo quando não conquisto nenhuma colocação, me sinto realizada. Como uma bailarina que encanta as pessoas e as faz se sentirem felizes poderia não se sentir realizada?

      Olga parece me conhecer melhor do que Tânia nunca, em todos os anos em que dancei por sua produtora, quis conhecer. A russa entende o que é importante para um aluno seu.

      Olho para Tânia. Os olhos dela encontram os meus.

      — Deveríamos deixar que Danielle diga o que quer — a alemã empina o queixo pra mim.

      Ela acha que sua voz firme vai influenciar minha escolha. Alguns anos antes, quando eu era uma garota insegura e queria pertencer a um grupo, talvez ela conseguisse. Ela construiu e destruiu muitas carreiras. Mas hoje, pra mim, ela é só a mãe do meu namorado.

      — Eu quero dançar em Joinville — respondo com firmeza. — Faz tempo que quero isso.

     Encontro nos olhos da minha mestra de dança aprovação e orgulho ao direcionar para ela meu olhar. Penso que um sorrisinho afrontoso se esboça em seus lábios enrugados quando ela fita Tânia como quem diz e então?

      — É uma pena — a alemã lamenta. — A participação da Danny abrilhantaria nosso festival. Gostaria muito que você, menina, dividisse o palco com a Duda; seria bom para vocês duas. Ainda bem que posso sempre contar com minha primeira bailarina — é visível o tom de amargura em sua voz. — Sabe, eu não duvido que até o final deste ano a Duda esteja dançando numa escola estrangeira; nos Estados Unidos, talvez. Ou na Inglaterra.

      — Torço muito por isso — respondo com toda a sinceridade possível.

      — Eu não seria tão entusiasta assim — Olga retruca. — Bailarinos que deixam o Brasil muito jovens para dançarem em escolas renomadas não se adaptam à novas metodologias de ensino no primeiro ano, já que seu caráter ainda não está totalmente definido, e muitas vezes voltam frustrados para suas escolas de origem após não corresponderem às expectativas de seus professores, coreógrafos e ensaiadores. Não se engane, Tânia. O balé não é uma fábrica de sonhos, mas um trabalho árduo.

      Impactadas pelo ponto de vista inequívoco da russa, Tânia e eu ficamos quietas. Estou impressionada demais com a presença de espírito de Olga Fiodorovna para falar alguma coisa. Mas eu tenho que dizer alguma coisa? 

      — É verdade — a alemã dá o braço a torcer e tenho vontade de dar um sorriso afrontoso por ela se dar por derrotada. — Em todo o caso, Danny, meu bem, pense com carinho. A Promoarte impulsionou sua carreira enquanto você estava amadurecendo. Não vire as costas para nós.

      Dando um risinho amarelo, ela gira nos calcanhares para se retirar.

      — Tânia — a chamo.

      Ela empina o queixo.

      — Não deixe de ligar para o Odin — peço.

      Ela assente com gravidade.

      — Claro.

      O barulho do salto dos sapatos da mãe do meu namorado faz eco enquanto ela sai apressadamente para não ter que ficar mais perto de mim. Ela deve estar muito irritada. Porém, não me importo com isso. Foda-se. 

      Eu sei quando as pessoas se importam de verdade comigo e tenho certeza que Tânia só quer que eu participe do festival de sua produtora porque hoje sou aluna do Ballet Imperial de Petrópolis, e isso é um upgrade e tanto pra ela. Eu sei de quais pessoas tenho que me cercar.

      — Você é firme em suas decisões. Bom — Olga observa a modo de contentamento.

      Não respondo.

      — Danielle, tenho certeza que já disse isso, não com as mesmas palavras que vou dizer agora, mas parecido: você se confronta ao máximo. Se desafia com atrevimento e ousadia. Gosto disso. O balé gosta disso: de bailarinas que buscam a perfeição. Parabéns.

      — Obrigada.

      É tão estranho ela se esforçar para ser empática com alguém. Nunca vou entender professores russos.

      — Posso te perguntar uma coisa? — me encorajo.

      — Sim?

      — Por que você é tão dura com a gente na sala de aula, mas em espetáculos se transmuta noutra pessoa?

      Olga ri.

      — Na sala de aula eu oriento, corrijo, me esforço para extrair o máximo dos meus alunos. Não gosto de alunos acomodados; eu nunca fui uma aluna acomodada. Reconheço que sou enérgica e às vezes severa, mas faço isso por um bem maior. Mas no dia dos espetáculos, não sou professora de vocês, mas uma admiradora. 

      A resposta de Olga me deixa satisfeita.

      — Espero que tenha entendido — a mestra de dança quer todas as dúvidas sejam sanadas.

      — Sim — sorrio para ela.

      Ela se retira sem proferir mais nenhuma palavra.

                              …

      Estamos todas exaustas após nossas apresentações no palco. Algumas das bailarinas ainda vestem seus tutus delicados e outras estão usando suas roupas casuais para se trocar. O ar é preenchido com o som de suspiros cansados e risos nervosos enquanto nos ajudamos a se desfazer das roupas de dança e colocar nossos casacos e conjuntos de moletom das nossas escolas.

      — Obrigada — agradeço, sorridente, a uma garota morena que desamarrou os cordões dos ilhós do meu figurino de Paquita.

      — De nada — covinhas aparecem em ambos os lados de seu rosto de formato triangular.

      Algumas meninas estão claramente felizes com suas performances, sorrindo de orelha a orelha enquanto compartilham histórias sobre como foi incrível se apresentar. Outras parecem um pouco mais apreensivas, torcendo nervosamente as mãos enquanto pensam em como poderiam ter feito melhor.

      Uma das meninas começa a chorar silenciosamente em seu canto, sentada no chão e segurando os joelhos, puxando-os para si. Não me lembro seu nome, mas sua performance continua vívida em minha mente. Ela havia dançado um solo contemporâneo; teria ido super bem se não tivesse caído de bunda no chão durante um salto. 

      É horrível cair de bunda num palco, com todo mundo te olhando com pena. Você se sente sem talento, um merda, se xinga de burra e não consegue olhar para ninguém depois que sai do palco, por causa da vergonha. Mas de tanto cair, eu aprendi como ficar em pé. Não aceito que tenham pena de mim.

      As outras garotas se aproximam e tentam confortá-la com abraços, todavia ela quer ter um momento para juntar seus pedaços sozinha. Eu me vejo no lugar dela.

      Me sento no chão e desamarro as fitas de cetim das minhas sapatilhas de ponta, tirando-as com cuidado para que não se friccionem com meus pés cheios de bolhas. Sorrio ao tocar nos meus dedos envolvidos com esparadrapos. 

      Olho com ternura para a foto da minha mãe, que tiro de dentro de um livro que sempre trago na mochila. Sempre tenho esperança de que ela esteja me assistindo de algum lugar. Eu sei que um dia vamos nos abraçar de novo.

      Uma garota com figurino, porém com os cabelos ondulados já soltos, se senta ao meu lado. Olho-a fugazmente, me mantendo centrada na foto de mamãe.

      — Ei. É a Princesa Françoise — ela fica admirada.

      Faço um sinal positivo com a cabeça.

      — É minha mãe — meu coração bate forte quando pontuo a palavra mãe.

      — Vocês duas parecem gêmeas idênticas.

      — Eu sei. Todo mundo diz isso.

      Fito os olhos da menina e olho com um semblante vago e amável ao mesmo tempo. Ela parece legal. Todas parecem ser legais.

      Enquanto as meninas se trocam, é possível sentir a mistura de emoções no ar, desde a alegria pura até a tristeza profunda. Cada uma com um motivo diferente para dançar, mas todas unidas pelo amor pela dança.

      Yuri tem razão. Todos percorremos o mesmo caminho e perseguimos o mesmo sonho. 

      Enquanto penso nisso, a moça que disse que mamãe e eu parecemos gêmeas idênticas não está mais do meu lado, e em seu lugar recém desocupado está Luna.

      — Amiga, você precisa me ensinar a saltar aqueles cabrioles — ela segura o meu braço e o balança.

      — Você tá muito deslumbrada, Luna — guardo a foto de Françoise dentro do livro e o ponho na mochila. — Aquilo não tem nada de mais. O segredo é um bom plié e impulso pra saltar e projetar a perna para o alto com o máximo de abertura.

      — Não foi nada! — a morena faz com deboche. — Tá bom! Louca, você jogou a perna lá em cima. Tem ideia do que fez? A Dominique fez uma cara de quem não estava acreditando no que estava vendo — percebo prazer nas palavras da minha colega de quarto.

      Mordo o lábio inferior e paro de massagear meus pés no mesmo instante.

      — Ela me viu dançando?

      Luna assente.

      — Tipo… ela observou com atenção a concorrência — assim dizendo, uma risada gostosa explode de sua garganta. Duas garotas que conversam com celulares na mão se viram para nós, assustadas, mas logo voltam a se ocupar de mandar mensagens para amigos ou parentes.

      Balanço a cabeça e olho para o chão.

      — Ela não está concorrendo — a corrijo. — Tanto ela, quanto a Nastia e o Yuri são representantes da produtora.

      — Hoje não. Mas quem sabe mais pra frente? — Luna de ombros.

      Quem sabe, repito em pensamento.

      Aproveito os poucos segundos em que Luna se mantém quieta para me levantar e me despir, e me visto com o conjunto de moletom do Ballet Imperial de Petrópolis. Ela me observa, reparando em cada movimento meu. 

      — O que foi? — pergunto.

      — Você é madura demais para a sua idade. Não abaixa a cabeça pra nada, nem pra ninguém. Te admiro muito, amiga.

      A declaração de Luna não deixa de me dar uma dose extra de calor. As palavras dela são sinceras e eu sei disso, porque Luna é incapaz de usar uma máscara.

      — Estou com fome — me ocorre que passei o dia todo mordiscando barras de cereais e tomando suco de açaí. — Vamos chamar as meninas e ir à uma lanchonete?

      Luna acena que sim e põe a mochila nas costas. Nos damos as mãos, saindo a seguir pela porta dos fundos conversando animadamente sobre o dia de hoje enquanto procurávamos por nossas colegas de quarto. Não demoramos a encontrá-las. Elas estão sentadas lado à lado, olhando qualquer coisa em seus celulares e com sorrisos de orelha a orelha.

      O local em que entramos é uma lanchonete e também uma padaria. O característico cheiro de hambúrguer sendo assado na chapa invade minhas narinas, e sinto um pouco de enjôo. Sou sensível à alimentos gordurosos.

      Vislumbro os lados, as mesas ocupadas por casais e grupos de amigos, em busca de uma mesa que esteja vazia e o mais longe possível do balcão. Roberta aponta para a direção da janela. Nos sentamos e peço um lanche de queijo minas com tomate e orégano. Tiro uma lata de Pepsi da geladeira. As meninas pedem hambúrguer.

      Meus pensamentos se dispersam como pássaros que levantam vôo, e de repente vislumbro tudo pelo que passei hoje, desde minha conversa com meu pai e com minha prima preferida, nossa chegada aqui em Petrópolis, meu ensaio com Yuri, minha apresentação. Nem presto atenção ao que as meninas falam.

      De repente meu sorriso desaparece quando me lembro da aula com Mrs. Willians e da revelação surpreendente de que ele não está em Londres.

      Quando voltamos à escola em que estamos alojados, quando me deito sobre meu colchão inflável e me cubro, com as luzes sobre mim já apagadas, suspiro e fecho os olhos acreditando que ela deve ter se enganado.

      Ninguém desiste do sonho de sua vida assim tão fácil, penso.

      A não ser que…

      Mas o sono me vence antes que eu teorize.

                                …

      Nos tornamos as criaturas mais patéticas quando estamos apaixonados e Guilherme ilustra isso muito bem. Mal desperto e ele está no telefone, só de short e camiseta regata do Flamengo – se eu ver no Leblon alguém com uma camiseta do Vasco ou do Botafogo, sou capaz de ficar emocionada –, conversando com o Ronaldo. Ele é uma das poucas pessoas que conheço que não é muito adepto de mensagens de áudio. Diz que gosta de ter uma sensação de maior contato com o boy.

      — Tá, meu amor. Eu te mando uma foto minha.

      Sorrio com malícia. Espero que essa foto não seja um nude.

      — O problema é que a vaca da Dominique vai sair junto — o bailarino negro põe a mão na testa e suspira com tédio, o que me faz rir baixinho. Dominique, definitivamente não é uma das pessoas mais queridas do Ballet Imperial de Petrópolis. — Tá, eu sei que tenho que ser profissional, mas cara, ela implica com tudo. Diz que eu aperto as costelas dela, que eu atraso o tempo de erguê-la… — ele faz uma pausa. — Só não deixo ela cair de cima porque não quero perder meu réu primário à toa.

      Essa última parte da conversa é demais até pra mim, acabo rindo mais alto e Guilherme se vira pra mim, me olhando como se eu o tivesse flagrado se masturbando.

      — Oi? — o bailarino fica indeciso entre me fulminar com seus olhos negros e olhar para a tela do celular. — Não, é a vaca da Danielle que está rindo — faço um beicinho quando escuto a palavra vaca. Mas ele pisca para mim e me manda um beijinho, e brinco fazendo um coração com as mãos. — A Danielle, amor. Aquela garota que salta mais alto que muito bailarino, que é linda, flexível e alongada. 

      Guilherme se cala de repente, ouve o que o namorado fala. Um sorriso brota em seus lábios carnudos.

      — Ok. Pode deixar que eu falo pra ela. Também te amo. Beijo. E fala para a minha sogra que estou com saudade do bife ao molho madeira dela.

      O celular do meu colega lhe cai das mãos sobre o bolo de cobertores.

      — Você ouviu toda a conversa entre meu namorado e eu, gata? — ele põe as mãos na cintura.

      — Só a última parte. A parte em que você fala ah, Ronaldo, que saudade de você, Ronaldo, eu não peguei bem; estava meio sonolenta ainda — mordo o lábio inferior.

      — Eu não falei assim, sua peste!

      — Relaxa, Gui — dou um sorriso conciliador e irônico ao mesmo tempo. — Tô brincando.

      — De que signo tu é, garota?

      — Sou escorpiana.

      — Deus me livre! O pior signo que existe! Vocês são maldosos, vingativos e pensam em sexo 24 horas.

      — Eu não sou má — protesto, ainda sorrindo.

      — Então reconhece que é vingativa e pensa em sexo 24 horas por dia?

      Que audácia.

      — O que seu namorado pediu para me dizer? — mudo de assunto.

      — Te desejou muita merda e te mandou um beijo na bunda.

      Meus olhos ameaçam saltar das órbitas e meu queixo quase cai.

      Guilherme, todavia, solta uma gargalhada e se senta do meu lado.

      — Tô brincando, sua boba. Ele só te desejou muita merda. A parte do beijo na bunda foi só pra você fazer essa cara engraçada.

      — Ram ram — faço uma careta enquanto derrubo Guilherme com uma travesseirada. — Muito engraçado. — o bailarino ri e dou várias outras travesseiradas nele. Acabo rindo também.

      Luna e Tiffany entram na sala já vestidas com seus conjuntos de moletom. Os cabelos das duas estão úmidos.

      — Que animação logo cedo — a morena observa enquanto se abaixa para guardar o tubo de pasta de dente e a escova na mochila.

      — O Guilherme falou umas merdas e eu bati nele — explico.

      — Eu? Imagina. Só falo coisa que presta — a maneira com que ele me afronta, pondo a mão no peito e fechando os olhos me dá vontade de lhe dar um tapa no ombro. Mas pelo visto sou a última a acordar e tenho que tomar banho.

      Tiro os cobertores de cima do meu corpo, me levanto num átimo. Estou só de calcinha e baby look do Corinthians.

      — Não quero te desanimar, Danny, mas tem uma fila de meninas para tomar banho — Tiffany passa os dedos no cabelo louro e cacheado enquanto me vê de cócoras abrindo minha mochila.

      — E a água de um chuveiros é fria — Luna acrescenta.

      — Que ótimo! — falo enquanto ando em direção à porta aberta, subitamente sendo invadida pela irritação ao ver que minhas colegas de quarto na república estão se divertindo.

      — Mas o banheiro dos meninos está vazio — a informação adicional de Luna é inútil.

      — Eu não vou tomar banho no chuveiro dos meninos — bato na parte externa da minha coxa e saio.

      A fila de garotas em trajes sumários diante da porta, fofocando e comentando sobre as apresentações de ontem, faz meu humor piorar. As garotas que estão tomando banho — duas, porque dos quatro chuveiros, dois estão queimados – demoram a sair. Será que pensam que estão em suas casas? E o desperdício de água? E mais: pra que ficar tanto tempo no banho se daqui a pouco vamos estar suadas e fedidas?

      Elas saem faceiras sem olhar para nós. Além de folgadas, deixaram a empatia em casa. Outras duas entram, e saem vinte minutos depois. Quase cochilo em pé. Me sento. Passo os dedos no cabelo. Outras duas tomam banho. E mais duas. Finalmente chega minha vez.

      Fico nua, me coloco abaixo de um dos chuveiros, e como sou alta, quase bato a cabeça. Abro o registro e tomo um banho de água fria (em sentido figurado e literal): o chuveiro com mau funcionamento é justo o que eu escolhi.

      — Que bosta! — murmuro, jogando a cabeça para trás e deixando a água escorrer pelo vale dos meus seios pequenos enquanto passo a buchinha vegetal (uma cortesia da escola) pela minha barriga. A garota morena, do meu lado, cantarola feliz ao meu lado, de costas pra mim. Vejo o valor de água quente em volta de seu corpo nu. 

                            …

      Yuri e eu ensaiamos duas vezes nosso pas de deux. Da cabine de som, Olga pediu que nossos olhos sempre estivessem ligados por um fio invisível e que eu não empinasse o bumbum a fim de não perder a harmonia das minhas linhas.

      Ele e eu pouco falamos depois da marcação do palco e não o vi por algum tempo. 

      A aula de hoje foi de stilleto. Por sorte trouxe minhas sandálias de salto. Guilherme e Nikita fizeram essa aula e mostraram ter um ótimo requebrado.

      Então o segundo dia de apresentações começa pra valer.

      Uma bailarina sênior da Promoarte dança Satanella, abrindo o evento. Dança com beleza, técnica e elegância, e sai aplaudida com entusiasmo. Ainda estou vestida com o agasalho da escola, acompanhando do canto as performances dos competidores e das estrelas da Promoarte.

      Então meus olhos o encontram. Meu partner. Ele está de costas, longe do nosso grupo, mas ao alcance da minha vista, já caracterizado como Príncipe Siegfried. Olga o ajuda a abotoar a casaca, eles conversam em russo, e a mulher dá um tapinha de incentivo em seu bumbum. 

      Ela o abraça, beija sua testa, lhe desejando merdé.

      O bailarino vem andando em nossa direção e na minha mente, um tipo de câmera em slow motion capta cada passo gracioso seu, nem lento, nem rápido, mas decidido. Seu semblante está calmo, como sempre, e quem não o conhece ou apenas sabe que ele nasceu num país de temperaturas geladas, pode corromper sua imagem, achando-o só um jovem frio, de emoções geladas como a Sibéria, e incapaz de mostrar medo ou sentimentos. Mas ele não é um homem frio. É só um jovem calado que não se sente obrigado a agradar ninguém. 

      Um anjo de cabelos vermelhos como fogo.

      Yuri passa por mim e o encorajo com um aceno de cabeça. Seus lábios se contraem, porém posso ver todo seu sentimento por trás de seus olhos; ele não precisa que lhe desejem merda. Ele sabe que é bom.

      Seu figurino branco com detalhes prateados é lindo e valoriza seu corpo de bailarino.

      O premieur danseur aguarda num canto. Seu nome é anunciado e ele se impõe com segurança, saltando, girando pirouettes com perfeito controle de cada movimento. Lembra um tsarievitch, um príncipe feliz a quem o mundo parece um lugar feliz pra se viver.

      As pessoas o aplaudem com paixão e ele as agradece sorrindo com uma reverance, saindo do outro lado. Lindo, escuto vozes femininas gritando.

      Enquanto a imagem dele se desvanece na minha mente, um sorriso brinca em meus lábios por meu corpo estar a espera do toque das mãos dele. Por agora eu querer mais do que tudo dançar com ele, conquistar as pessoas junto com ele e vivermos juntos, no palco, um amor sem igual pela única coisa que nos faz felizes.

      Uma hora decorre. Tantos jovens dançaram. Tantos conjuntos se apresentaram.

      Luna amarra os cordões dos ilhós do meu figurino de Fada Açucarada enquanto me olho no espelho com um olhar luminoso, feliz. Estou simplesmente linda. O coque perfeito. Os detalhes em dourado costurados no meu figurino – minha segunda pele. A saia bandeja curta, que expõe meu bumbum. Me sinto com um brilho diferente. 

      Viro meu corpo lentamente para minha amiga, que está boquiaberta.

      — Está simplesmente maravilhosa — ela une as mãos diante da boca.

      — Obrigada — agradeço com um sorriso.

      — Não fosse esse aparelho de dente com pedrinhas azuis e borrachinha dos lados, estaria gata.

      Ponho as mãos na cintura. Rimos.

      — Vai e voa — a morena pede com emoção enquanto me dá um abraço.

      — Deixa eu te dar um abraço também? — Tiffany diz.

      — Eu também — Roberta se adianta. No fim das contas, as três me abraçam e me balançam de um lado para o outro.

      Olho para cada uma delas já tomada pela emoção. Posso ouvir cada batida do meu coração e um chamado vindo do palco. Giro e ando em direção à entrada do palco, onde Yuri está ladeado de dois bailarinos. 

      Adianto um passo. Dois. Paro diante do ruivo e meus olhos se fixam na mão que ele estende para que eu a pegue.

      Não dizemos nenhuma palavra. Nos limitamos a um quase sorriso, e como um nobre conduz sua dama, ele me leva para o fundo do palco escuro assim que o silêncio se debruça sobre o teatro.

      — Dance pra você e pra ninguém mais — ele me olha, e então seus olhos azuis começam a brilhar ao mesmo tempo que sua boca sorri.

      Por mais que meu coração bata como um louco, toda a coreografia está dentro de mim. Não tenho dúvidas. Não tenho temores, nem medo de errar ou cair. E se eu cair, vou me levantar. Eu vou dar tudo o que eu tenho.

      Não aceito menos do que tudo. Não é só pelo Yuri, que me ajudou até aqui e está junto comigo, ou pelas pessoas. É por mim. Somente por mim.

      COM PAS DE DEUX DE O QUEBRA NOZES, ADÁGIO. BALLET IMPERIAL DE PETRÓPOLIS. DANIELLE RĂDUCAN E YURI CHUCHUKOV.

      Yuri e eu damos passos de mãos dadas. Nossos olhares se encontram e sorrimos, cúmplices.

  Capítulo de 5k de palavras

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