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Capítulo 19

Gonna give you all my love, boy
My fear is fading fast
Been saving it all for you 'cause only love can last
You're so fine and you're mine
Make me strong, yeah you make me bold, oh, your love thawed out
Yeah, your love thawed out what was scared and cold

Madonna, “Like a virgin”

      Ludmila Shushunova dizia que nunca podemos perder de vista que dias calmos precedem tempestades. Russos têm uma visão diferente da vida, as pessoas nunca dá para saber quando eles estão felizes, e há quem diga que russos só estão felizes de verdade quando se sentem tristes. Minha finada bisavó sempre foi um objeto do meu interesse, era séria, fechada, mas muito sábia.

      As coisas têm andado calmas demais no Ballet Imperial, e já que minha bisavó nunca errava, eu tenho que me manter equilibrada pra não cair. Dominique e eu temos conversado mais. Não que ela não aproveite muito bem as oportunidades que tem pra falar de como é vencer na Europa, de como Antonella ficou chateada por ter ficado em segundo lugar em Bruxelas e tal. Ela se acha. Mas paramos de nos estranhar. Ela me chama às vezes de pata choca, porém sei que é só para me provocar.

      Olga não tem gritado tanto na sala de aula, nem nos nossos ensaios. Yuri e eu estamos prontos para dançar em Petrópolis e minha amizade, admiração e respeito por ele crescem a cada dia. Não brincamos, como acontece entre amigos; ele é sério demais pra isso. Mas o sorriso dele é tão encantador quando me vê ensinando passos novos para Nastia e minha interação com ela que não preciso de mais nada.

      Odin e eu fizemos as pazes. Saímos juntos para um pub e tivemos uma noite de sexo no apartamento dele. Ele disse que me amava e que tentaria não ser ciumento, só me pedindo que fosse paciente com ele. Respondi que tudo bem.

      Termino minha sequência de alongamento na sala, depois da aula de stilleto, deixo meu corpo cair de lado no chão e fecho os olhos, suspirando. São nove da noite. Daqui a pouco é sábado. 

      O tão esperado sábado da estréia da minha variação de Paquita enfim chegou.

                             …

      — Anda, Danny — a voz dura e impaciente de Roberta reverbera no quarto. Estou terminando de pôr meus figurinos nos tutuzeiros ao mesmo tempo em que abotoo o sutiã e ponho a camiseta.

      — Só um segundo — peço. Murmuro um bosta, termino de vestir a camiseta e subo a calça de moletom.

      Fecho a porta do quarto com um estrondo, saio quase tropeçando por causa de um pé de tênis que não calcei direito.

      — Tchau, Pah — dou um abraço na nossa monitora.

      — Tchau, Danny — ela afaga minha cabeça e beija minha testa. — Muita merda pra você — seu sorriso brilha em seu rosto negro e lindo, tão cheio de bondade.

      — Obrigada.

      As meninas estão entrando na van de seu Matías e Luna e Roberta fazem um sinal com os indicadores batendo nos pulsos, me lembrando de que estou atrasada.

      — Meninas, me desculpem — me sentei entre as duas na van. — Eu estava respondendo às mensagens da Duda, da Stefany e do Odin.

      — Está todo mundo aqui? — o motorista olhou para trás apoiando o cotovelo no banco.

      — Pode ir, seu Matias. A atrasada do grupo chegou — Luna me olha à modo de reprovação, que eu respondo com um gesto de desdém.

      Ponho o fone de ouvido e o conecto ao meu iPhone, logo teclando numa playlist do The Cranberries. Talvez nem dê para ouvir todas as músicas até o final. Petrópolis não fica tão longe da capital.

      Seu Matias passa antes em frente ao prédio do Ballet Imperial a fim de pegar Sacha e Nikita. Agora estamos completos. Me pergunto se Yuri e Nastia foram em outra van, mas Sacha deixa escapar que os gêmeos foram num carro disponibilizado pela Promoarte junto com a Dominique.

      A subida da serra me proporciona um vislumbre agradável da paisagem. Os galhos balançam por causa do vento e imagino que esteja frio, apesar do céu azul sem nuvens. 

      Carros descem em velocidade vertiginosa. Fico um pouco apreensiva com alguns motoristas que contornam com arrojo a faixa amarela central, passando a míseros três palmos da lateral da van. Será que esses idiotas não se dão conta de que há adolescentes cheios de sonhos aqui dentro?

      Mas há pessoas que não possuem apego à própria vida. O motorista que provocou o acidente que tirou minha mãe de mim estava bêbado. Ele deixou mulher e filhos, se privou de ver os meninos crescerem e levou a pessoa que mais me entendia, além do meu pai.

      Tantos sonhos, tantas vidas são destruídos todos os dias como se fossem frágeis. Histórias de vida terminam com cruzes fincadas nas beiradas de curvas, uma lápide sobre nossas cabeças e nos tornamos só uma nota de rodapé.

      Mas mesmo sabendo que a vida é assim, mesmo sabendo que eu não sou nada nesse mundo violento e hostil senão uma marionete nas mãos de forças que eu não compreendo, eu quero viver e realizar meus sonhos, e continuar viva mesmo após eu partir através dos meus sonhos. Eu quero deixar minha marca nas pessoas.

      Toco com o indicador no vidro, sorrindo melancólicamente e com o olhar perdido. A canção Ode to my family está no fim e meu coração bate forte, me dizendo que eu não tenho que ter medo de nada.

      — Danny — Luna sacode meu corpo, um sorriso brincando em seu rosto moreno.

      — Oi? — sorrio.

      — O que você está ouvindo?

      — The Cranberries. Conhece?

      Luna responde que não.

      — Era uma banda irlandesa, liderada pela Dolores O'Riordan. Ela faleceu há muitos anos. Minha mãe adorava as músicas dela e eu meio que puxei seu gosto. Amo ouvir as músicas deles.

      Luna exprime curiosidade com os olhos, e sem que ela peça, ponho um dos fones em seu ouvido.

      — A voz dela é linda. Mas a música é muito triste — Luna verbaliza suas primeiras impressões.

      — A maioria das músicas da Dolores são melancólicas, intimistas. Ela teve uma infância difícil. Sofreu abuso sexual de um conhecido da família, porém nunca contou. Quando seu pai faleceu, há muitos anos depois, o filho da puta apareceu no velório e lhe deu os pêsames como se não tivesse feito nada com ela, e isso a destruiu. Ela passou a sofrer de crises depressivas. As músicas dela contam como se sentia.

      — Que coisa triste.

      Suspiro, dando um sorriso melancólico.

      — Não passamos de objetos para as pessoas — murmuro, encostando minha cabeça no vidro.

      — Por quê diz isso? — Luna não compreende minha resposta.

      Dou de ombros. Me mantenho calada pelo resto da viagem.

      Seu Matias estaciona a van em frente à uma escola estadual e atrás de outra van. Os outros bailarinos da nossa escola estão descendo, com mochilas nas mãos e seus tutuzeiros. Guilherme nos cumprimenta de longe assim que colocamos os pés na calçada ao que retribuo com um aceno.

      — O Matias veio pisando no freio na subida? — ele zomba, cumprimentando a mim e às meninas com beijinhos no rosto.

      — Eu escutei, garoto — o motorista grunhe enquanto ajuda Sacha a tirar sua mochila do bagageiro. A julgar pelo semblante dele e do meu colega, percebo que os dois têm um certo congraçamento devido a anos indo juntos à festivais. — Talvez queira dirigir da próxima vez — agora seu Matias desafia o bailarino negro. Dou risada.

      — Daqui a dois anos, meu bem, quando eu tirar minha habilitação.

      Um homem abre o portão da escola estadual, sorridente, pede para que entremos e nos conduz para dentro do prédio. Os corredores são exíguos, como costumam ser as escolas públicas, e há imprecações nas paredes que deveriam ser brancas. Isso não me surpreende. Me alojei em lugares mais desconfortáveis.

      — A diretora do colégio disponibilizou as salas 15 e 16 — informa o zelador. — As carteiras foram retiradas das salas, e no primeiro andar ficam os banheiros masculino e feminino.

      Guilherme emparelha do meu lado, quase encosta no meu ouvido.

      — Se eles não trocaram os chuveiros do banheiro feminino, vai tomar banho gelado, gata — sussurra.

      Estremeço com essa perspectiva. Não que eu não tome banhos frios, mas no alto da serra? Nesse frio de outono? Não, obrigada.

      Dispomos nossas coisas no chão da sala 15. Podemos ouvir as vozes dos outros alunos – os que vieram na van de seu Júlio –, e me agachando, guardo os fones num dos bolsinhos da minha mochila.

       Tenho vontade de perguntar por Yuri e por Nastia, mas não quero dar motivo para Luna e Tiffany falarem bobagem. Com a Dominique não me importo. Escolho ficar calada.

      — E então, vamos comer alguma coisa antes de marcar palco? — Tiffany pergunta. Estou olhando as mensagens no celular enquanto as meninas tagarelam; sorrio ao ver uma foto que namorado me enviou há pouco, desfilando em Porto Alegre.

      — Acabei de chegar, Odin. A viagem foi legal. Agora preciso desligar. Beijo. Te adoro — envio a mensagem de áudio e travo a tela do iPhone.

      Me levanto e vejo as meninas conferindo dinheiro, se certificando de que vão poder pagar pelo que querem comer. 

      — Vamos? — Luna indica a porta com a mão. — Tem uma padaria aqui em frente; a gente come um pão na chapa e toma um café com leite e volta buscar nossos figurinos.

      — Vamos — respondemos.

      Nos juntamos no corredor com os alunos que vieram em outra van. Os três principais bailarinos do nível 7 não estão. E também não estão nos esperando na padaria.

      Excetuando Kauane, que pede broa de milho com café puro, todos pedimos pão na chapa com pingado. Não juntamos as mesas, porém ficamos todos próximos. A tv no suporte transmite flashes dos principais eventos esportivos ocorridos no dia anterior. Os cliente sentados nos bancos altos junto ao balcão comentam sobre a vitória do Flamengo sobre um time do Mato Grosso do Sul, e um sorriso cheio de ironia pende da minha boca quando um deles diz que o Corinthians será a próxima vítima.

      À todo momento pessoas atravessam a catraca de entrada e o rangido metálico produzido pelo equipamento faz meu cérebro doer. Almas sensíveis têm intolerância à barulho. Tem dias que estou tão fechada em mim que não quero ouvir ter ninguém a quem ouvir senão a mim mesma.

      E no entanto, quando olho ao meu lado e vejo Luna sempre sorridente e brincalhona – menos nos dias em que está com cólicas –, Tiffany, ácida e as outras garotas, compreendo que não sou tão diferente delas e que eu preciso das pessoas.

      Minha xícara de café com leite está pela metade. Um repórter do jornal local fala sobre o início do Circuito de Outono de Danças, porém não presto atenção. Só quero ir logo para o teatro e me alongar um pouco antes de dançar. Ver gente bonita.

      — A Dominique e os gêmeos já estão no teatro — Kauane ergue o celular diante dos olhos.

      — Eles não vem tomar café? — não sei por que faço essa pergunta.

      Kauane ri.

      — Já tomaram — responde. — Vieram para Petrópolis ontem à noite e se hospedaram no hotel. A Domi disse que o desjejum parecia um banquete.

      A informação da índia não me surpreende. Duda e Alice também se hospedavam em hotéis quando competiam fora de São Paulo. O status de solista da Promoarte nos dá direito a alguns luxos.

      Ah, faço. Volto a olhar para minha xícara de café com leite.

      — Danny, olha isso — Luna quase me faz entornar o pingado na mesa ao pôr diante de mim seu celular.

      — É um site de fofoca. Eu não curto.

      — Quer fazer o favor de olhar, gata?

      Suspiro aborrecida e me rendo à insistência da morena. O título do artigo está escrito em negrito, e abaixo dele, está uma foto minha e do Odin. Na praia. Naquele dia em que usei um micro fio dental.

      — Não acredito que eles publicaram isso — fico em choque.

      NAMORADA DE ODIN USA MICRO FIO DENTAL E MOSTRA BUMBUM EM PRAIA DO RIO DE JANEIRO.

      Minha boca se abre de admiração. As garotas quase montam por cima de mim para ver a foto e ler a matéria que nada acrescenta a mim e ao meu namorado. Pior que há várias fotos.

      A gata chama-se Danielle Raluca Răducan e é bailarina do Ballet Imperial de Petrópolis. Nosso modelo tem bom gosto.

      — Cara, que louco isso — balanço a cabeça de um lado para o outro.

      — Já começou a ficar famosa, amiga — Luna me dá um abraço e bagunça meu cabelo. Eu odeio quando bagunçam meu cabelo.

      — Mas não do jeito que eu queria — devolvo o celular à morena.

      As garotas riem e eu termino de beber minha xícara de café com leite.

      Talvez dançar um pouco me faça esquecer que as mídias sensacionalistas só se interessam por rostos e corpos bonitos. Eles vivem disso, de nos mostrar quase sem roupa, de mostrar nossos corpos, mas não se importam com quem somos ou com o que sentimos.

      Ser bonita me abriu várias oportunidades. Garotas louras e de olhos azuis ainda são alvo de admiração e deleite de pessoas que trabalham com moda ou de diretores artísticos de seriados juvenis. Para o azar deles, por enquanto só quero dançar.

                               …

      A equipe técnica recém deixa o palco após concluírem os últimos ajustes na cortina elétrica, no som e na iluminação. Os bailarinos agora podem ensaiar com desenvoltura.

      Me aproximo de Nastia, que está parada olhando para as cadeiras vazias. Sempre séria. Sempre inacessível, fechada em seu mundo. Toco sua mão, fazendo com que ela se vire pra mim. Seus lábios se entregarem e eu sei que por trás das lentes azuis em seu rosto pontilhado de sardas existe uma garota ansiosa para mostrar às pessoas o que a faz feliz. Uma bailarina conhece a outra.

      — Oi, Nastia — lhe dou um sorriso.

      A ruiva não responde. Me mantenho sorridente, já que sua aparente indiferença se deve à sua condição de autista.

      Os olhos dela se focam no meu corpo. No meu coque. No meu collant lilás com casaquinho cor de rosa, saia branca e perneiras cinza. É a primeira vez que ela me vê com um maiô de dança diferente.

      — Ty kraciva (Ты красива)¹ — ela fala em seu idioma materno.

      — Spaceeba (Спасибо)² — agradeço.

      Tocando a maçã do meu rosto, ela esboça um sorriso, que não chega a vingar. Sem nada a dizer, se afasta. Me olha por sobre o ombro e anda até onde Sacha está. Cruzo os braços.

      — Danielle.

      Me viro e Yuri vem andando. Ele está com uma camiseta branca e usando uma calça de lã largona e listrada.

      — Oi, Yuri.

      — Oi. 

      O russo fica à uma distância de um braço. Gotinhas de suor descem por seu rosto, que ele enxuga com uma pequena toalha xadrezada.

      Nos mantemos em silêncio à princípio. Não sei como iniciar uma conversa com Yuri. O jeito retraído dele me trava de uma forma que não sei explicar.

      Olho para os lados, pondo a mão no meu coque. Vejo Nastia por sobre meu ombro.

      — Que bom que ela e a Sacha estão amigas de novo — comento.

      Yuri assente.

      — Nastia não guarda mágoa das pessoas — ele retruca, sereno. — É uma pessoa incapaz de desejar o mal de alguém.

      Faço um aceno positivo com a cabeça.

      — Mas tem dias que ela é mais fechada, né? 

      — Quando é dia de competição, ela é mais focada do que o habitual. Ela prefere se fechar em sua bolha.

      — Entendo — volto a direcionar minha atenção para as duas russas. Uma troca de olhares entre as duas seguida de sorrisos faz eu teorizar uma coisa que não ouso dizer a mim mesma, mas que eu sei o que significa. Uma sensação de calor me invade por dentro.

      — Eu também sou como ela — revelo.

      — Já percebi — Yuri atalha.

      — Sou péssima para esconder as coisas das pessoas, não é mesmo?

      — Sim, é.

      Fujo à expressão avaliadora do Primeiro Bailarino, mirando qualquer coisa, olhando para o vazio, para os lados, menos em sua direção.

      — Vamos ensaiar? — ele propõe e pela primeira vez, um esboço de sorriso surge em seu rosto sardento.

      Aceno em afirmação e aceito sua mão.

                                …

      As marcações de palco seguem dentro do cronograma estabelecido pela direção do festival. Olga interrompe meu ensaio duas vezes para corrigir a posição do meu corpo quando giro a terceira e última pirouette, pedindo para que eu olhe para minha mão levantada com mais expressividade. Sua voz parece menos enérgica do que nas aulas, o que não é novidade. Professores ficam mansos em dias de apresentação.

      Luna é a segunda a ensaiar, e Sacha a terceira. Depois entram bailarinos de outros estúdios de dança, cada qual por sua vez. Da coxia vejo que existe uma diferença tremenda entre a nossa técnica e a deles e compreendo porque o Ballet Imperial de Petrópolis ficou muitos anos sem participar de competições.

       Começam os ensaios de pas de deux. Dominique e Guilherme dançam Pássaro Azul. Na Letícia Ballet pouca gente curtia esse pas de deux. Guilherme me disse que ele e Dominique o escolheram devido às trocas de duplas, efetuadas em cima da hora. A bailarina negra deu uma prova de quanto é esnobe ao dizer que era melhor escolherem um duo mais simples, já que os dois ainda não estavam entrosados e além disso, ela não acreditava que seu novo partner pudesse dançar com ela algo mais técnico e desafiador.

      Suspiro, abrindo e fechando os olhos, avançando graciosamente para o palco junto com Yuri. É só um ensaio, mas algo mágico acontece entre nós. Basta eu olhá-lo para que ele saiba o que vou fazer, qual braço vou levantar, quantos microsegundos levará para que eu elime a distância entre nós e me deixe ser levantada por ele.

      Não sorrimos como personagens. Essa emoção compartilhada brota de dentro de nós, como uma dádiva para as pessoas que estão olhando e se deixando encantar por dois jovens cheios de sonhos, que têm a dança como religião. Mais do que isso. Yuri e eu vivemos pra dançar. 

      Reverenciamos ao pequeno público na plateia após o término do ensaio e a nós mesmos. Deixo que ele me conduza pela mão para fora do palco enquanto os aplausos continuam, incessantemente.

      — Foi lindo — dou um abraço no meu parceiro. — As pessoas gostaram.

      Yuri estranha minha reação. Percebo em seu semblante um desconforto, mal disfarçado por um sorriso. 

      — Foi — ele concorda, tocando meu rosto com o dorso do indicador.

                               …

      A mulher anota os nomes dos bailarinos que dela se aproximam com notas de cem reais nas mãos, pedindo-lhes que se dirijam ao palco. Luna tira do bojo do collant vermelho carmesim um maço de notas de vinte reais, oferece-lhe toda animada e nós duas andamos até uma barra desocupada. Dois rapazes e uma garota nikkei se juntam à nós.

      Uma moça de uns trinta e poucos anos, com cabelo amarrado em rabo de cavalo e uma camiseta do Royal Ballet Theatre, surge de uma das laterais do palco bebericando uma garrafa d'água.

      — Good afternoon, girls and boys — seu sotaque inglês reverbera com potência, graças à acústica do teatro.

      O nome da professora que ministrará o workshop é Elizabeth Willians. Ela é professora no Royal Ballet Theatre e também bailarina, embora rumores de que logo se aposentará dos palco corram. Nunca encontrei no Youtube vídeos dela dançando, mas se a Promoarte a convidou para nos dar aula antes das apresentações, é porque ela é excelente profissional.

      O Royal Ballet... 

      Londres… 

      Quer dizer tanta coisa. Ao mesmo tempo, não quer dizer nada.

      Sou acometida de um estranho sentimento. Algo que eu poderia ter vivido bate a porta do meu coração ganha cores nítidas, como se uma coisa dentro de mim me pedisse para reescrever um capítulo da minha vida que eu achava que tinha jogado fora.

      Não. Esquece, me peço. 

      Tudo bem que é recente, mas eu tenho a dança. Eu tenho sonhos. Tenho uma carreira em que pensar.

      Talvez Mrs. Willians tenha se lembrado que as escolas públicas brasileiras não ensinam o idioma inglês com qualidade e que a maioria mal sabe conjugar o verbo to be, por isso a inglesa passa a conversar em português; horrível, mas dá pra compreender.

      — Ok. Vamos fazerr aquecimento — ela se coloca entre Luna e eu e marca os movimentos de cabeça e braços. — Let's go! — sinaliza para os caras da cabine, lá em cima, responsáveis pelo som e pela iluminação.

      Percebo entrando pelas portas laterais várias personalidades da dança, algumas das quais trabalharam como juradas em algumas das competições que disputei. Letícia sempre dizia para mim e para a Duda que professoras de outras escolas brotavam como vermes atrás de novos talentos, por isso tínhamos que sempre manter os pés no chão e não se deslumbrar com elogios.

      Fecho os olhos por um momento, me desconectando de tudo e de todos, passo a sentir cada célula do meu corpo vibrando com a música.

      Pliés. Grand pliés. Pirouettes na barra. Grand battements. A rotina de centro, com valse, tour piqués e a reverance.

      Mrs. Willians é aplaudida. Os bailarinos esperam sua vez para tirarem fotos de recordação com ela enquanto me mantenho à distância. Luna sorri ao posar com ela e volta saltitando pra perto de mim.

      — Você vai lá? — pergunta.

      A inglesa se despede de uma bailarina morena, a última. 

      — Já volto — digo enquanto caminho em direção à ela.

      — Oi — sorrio.

      — Quer tirarr uma foto? — pergunta, simpática.

      Respondo que sim, com a cabeça.

      — Thank you — agradeço, vendo que a foto tirada pela assistente de Mrs. Willians ficou perfeita.

      A inglesa me avalia. Me olha, mexe a cabeça. Um vinco aparece em sua testa.

      — Você tem um físico de bailarina perfeito — o elogio dela me envaidece. É sempre bom causar uma impressão agradável nas pessoas.

      — Obrigada.

      — Eu fiquei atenta em você durante toda a aula. Fiquei absorta olhando sua força, leveza, graciosidade e equilíbrio. Nunca pensou em prestar audição para o Royal Ballet Theatre?

      — Não. Não me sinto pronta para dançar fora do Brasil. Eu entrei há pouco tempo no Ballet Imperial de Petrópolis e quero aprender muita coisa antes de ir embora.

      Os olhos da inglesa se direcionam para sua assistente e para o sinal com o indicador que esta faz, lembrando-a de que precisam ir.

      — De qualquer forma, pense nisso — sorri. — Uma bailarina com seu talento seria uma estrela em nossa companhia. Brasileiros são sempre bem vindos no Royal Ballet Theatre.

      — Eu sei. Todos os anos brasileiros entram para a companhia de vocês.

      — Sim, todos os anos. Brasileiros têm um feeling incomparável, vocês dançam com sentimento, com paixão, vocês têm um magia que bailarinos de outros países não têm. Valorizamos muito as formas de expressão de artistas de outros países.

      Mordo o lábio inferior. Fico indecisa entre me retirar e deixá-la partir, ou prolongar nossa conversa por alguns minutos.

      — Este ano foi a primeira vez que não recebemos um brasileiro — Mrs. Willians pede, em inglês, para que sua assistente a espere lá fora.

      A revelação dá mulher me deixa intrigada. Deve estar havendo algum engano.

      — Tem certeza? — a questiono.

      — Sim. Eu conheço todos os alunos e tenho acesso às matrículas. Nenhum brasileiro entrou no Royal Ballet Theatre este ano. Na verdade…

      Acompanho cada mínimo movimento dos músculos do rosto da professora britânica, aguardando sua resposta. Não que eu me importe. Mesmo assim, algo não está certo.

      — Na verdade, um rapaz ganhou uma bolsa de estudo para estudar na nossa escola. Estávamos à sua espera, mas ele nunca apareceu em Londres. E nunca entrou em contato com a escola para explicar o motivo da sua desistência.

      Minha boca semiabre em surpresa. Fico desconcertada. Não consigo pensar direito, e por mais que tente encontrar uma explicação plausível, nada se encaixa.

      Mrs. Willians pede licença, nos despedimos com um abraço e um beijo, e ela anda a passos elegantes em direção à coxia, indo atrás de sua compatriota.

      Subo a escada que separa as cadeiras por setor após descer do palco, andando pensativa enquanto as pessoas sentadas nas cadeiras conversam entre si, fazendo anotações. Eu as ignoro e ando até uma cadeira vazia. Me sento, recolho minhas pernas, dobrando-as contra a minha barriga. Dou um suspiro.

      O que você fez da sua vida?, pergunto em pensamento, direcionando minhas palavras a alguém de quem não me lembrava há dias.

      Sinto como se houvesse dentro de mim um vazio, que não sei explicar.

      Mas eu sei que daqui a pouco vou esquecer essas perguntas e dúvidas. Eu sempre me esqueço de tudo quando estou dançando.

                                …

      O barulho das pessoas e o silêncio de uma bailarina que não aceita que lhe imponham limites. Opostos que se repelem como polos de imãs, porém sempre coexistirão.

      Alguns estarão tristes ao final desta noite e dormirão acreditando que podiam ter feito melhor. Mas amanhã é outro dia. Um dia de sol procede a um dia de chuva, uma página em branco vem logo depois de uma página escrita. Sempre temos uma segunda chance de fazer melhor.

      Porém, eu não penso numa segunda chance. Cada oportunidade, para mim, é única. Eu não acredito no amanhã. Cada instante é o último.

      Luna, Roberta, Tiffany… Elas riem e brincam enquanto vestem seus figurinos e se maquiam, e por mais que haja uma aparente atmosfera de descontração, eu sei que estão nervosas. Como sei. Diferentemente delas, estou num canto do espelho terminando de fazer meu coque, e quando acabo, visto minha meia calça cor de rosa por cima do fio dental de dança – tenho pudor suficiente para não ficar totalmente nua numa coxia –, o figurino de Paquita e me sento para amarrar os laços das minhas sapatilhas de ponta.

      Escuto alguém falar que Dominique está no camarim das solistas conversando com a Tânia. A mesma Tânia que sempre quis que bailarinas negras fossem estrelas de sua produtora e que tem um carinho de mãe pela Duda. 

      Eu calei a boca da Tânia uma vez. Antes de parar de dançar pela Promoarte SP, mostrei do que sou capaz de fazer, e se ela veio para ver a namorada de seu filho dançar, vai se encantar comigo. 

      O burburinho das meninas cessa aos poucos. Elas saem e fico sozinha, me olhando no espelho, admirando a linda bailarina loura de olhos azuis e sardas. Sorrio para ela e saio atrás das minhas colegas.

      Elas espiam a plateia através de uma das frestas da cortina elétrica e Luna volta eufórica para perto de nós.

      — Gatas, vocês não vão acreditar. O teatro está cheio — ela dá pulinhos, entusiasmada por ser uma das primeiras a se apresentar.

      A locutora fala, fala, fala, agradece aos patrocinadores do evento enquanto a adrenalina se instala em todos nós. Posso ouvir o chamado do palco. Venha e me conquiste. 

      O nome de Tânia Dressler é mencionado, e então tudo mergulha no silêncio. O palco fica escuro. Consigo escutar meu coração batendo e não há palavras que possam descrever como nos sentimos em momentos como este, em que estamos prestes a nos tornar personagens de contos de fadas. Homens se tornam príncipes. Mulheres se tornam princesas. Mas o que queremos é apenas nos divertir feito crianças.

      Adianto um passo. Dois. No terceiro, já tenho a visão do palco ao meu alcance, e também uma bailarina envolta em trevas. As luzes estão apagadas.

      PRIMEIRA BAILARINA ESTADUAL JÚNIOR, BALLET IMPERIAL DE PETRÓPOLIS. VARIAÇÃO DE RAYMONDA. DOMINIQUE FEITOSA.

      Ela. 

      A garota que acha ter o mesmo brilho que a Lara. 

      Os movimentos da bailarina negra são impressionantes, uma perfeita combinação de força e leveza que com certeza faz com que o público se pergunte: como ela consegue ficar na ponta dos pés, como se a gravidade não existisse?

      — Caralho! — Guilherme, ao meu lado, fica boquiaberto. — Ela melhorou muito depois que venceu o festival na Bélgica.

      — Olha que balance absurdo! — Kauane o apoia.

      Dominique reverencia ao público que a aplaude e se retira graciosamente pelo canto oposto ao nosso. Como bailarina da Promoarte, ela é uma das atrações especiais do Festival de Dança de Petrópolis. Como o Yuri e a Nastia.

      Bailarinos de outras escolas do Estado do Rio de Janeiro se apresentam, estes competindo mesmo. Nastia entra por onde Dominique saiu há quase uma hora, caracterizada para dançar uma variação de Cupido. Seu corpo brilha majestosamente olhado à contraluz como o de um anjo bom que visita a terra com missão de trazer alegria às pessoas, e é isso que estou sentindo ao vê-la flutuar como uma fada no palco grande, sozinha, só com seus sentimentos inconfessos que só seu sorriso e seu olhar cristalino conseguem expressar, e nada mais. 

      Dou um sorriso. Meus olhos se lubrificam de pequeninas lágrimas e me sinto suficientemente à vontade para acolher, receber dentro de mim esse sentimento de amor como se recebe um doce hóspede da alma, que nos toca por dentro e nos ensina que a dança não se explica com palavras, mas se vive. 

      A russa de cabelos ruivos agradece aos aplausos com uma reverance. Quando espero que ela vá sair por onde entrou, ela vem em nossa direção e me dá um abraço.

      — Obrigada — sua voz é distante, neutra, porém seus olhos lacrimejam.

      — Por que está me agradecendo? — estou surpresa com seu gesto de carinho.

      — Você me ensinou. Você tem paciência comigo. Outras pessoas não têm.

      — Nastia…

      A frase fica em suspenso em meus lábios. Não preciso dizer nada. Nastia toca meu rosto, um tímido esboço de sorriso aparece em seu rosto, para logo sumir feito um arco íris após uma tarde de chuva. Os olhos azuis dela acompanham a entrada da Sacha. As duas se olham. Nastia vai ao encontro dela e as duas se abraçam. Essa overdose de emoção me deixa de coração aquecido. Pela primeira vez, sorrio com um sentimento sincero de felicidade.

                               …

      Tantos jovens se apresentaram. Tantas formas de expressar através do corpo o que é a felicidade da alma. Tantos sonhos. Tantas histórias de superação, resiliência e superação, e no entanto, só um objetivo.

      Ser feliz por apenas um instante.

      Mas o que é felicidade? Será que dá pra ser feliz no mundo dos homens, das pessoas que vêem a vida a passar e que acham que ter é mais importante do que ser?

      O balé sempre me deu tudo. Ele me ajudou a erguer a cabeça quando meu coração estava enlutado, após eu perder mamãe, e deu um sentido à minha vida, me tirando de uma existência sem graça. Por mais que eu negue à mim mesma, uma voz dentro de mim insiste em dizer que finais felizes não existem só em contos de fadas.

     Me persigno com o sinal da cruz. Cumpro meu ritual de preparação, puxando pra dentro de mim a maior quantidade possível de ar, que ao entrar no meu corpo, renova minhas forças. Fecho os olhos. Abro. Levo as mãos ao coração.

      Minha boca delineia um sorriso. 

      Meu momento chegou.

      BALLET IMPERIAL DE PETRÓPOLIS. TROIS DE PAQUITA. DANIELLE RĂDUCAN.

      O sorriso cresce em meu rosto. Nada mais me segura ao chão.

Capítulo de 5,1k de palavras 
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Ты красива¹: Você bonita. Obs: não existem artigos em russo (o, a, os, as, um, uma, uns, umas e nem verbos de ligação. Isso faz com que as frases pareçam sêcas.

Спасибо²: Obrigada.

















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