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Capítulo 18

Oh, we're halfway there
Oh, oh, living on a prayer
Take my hand, we'll make it, I swear
Oh, oh, living on a prayer

Bon Jovi, “Living on a prayer”

      O sol filtra, seu brilho intenso de começo de manhã por entre os galhos de uma árvore, atingindo o rosto pálido e salpicado de sardas de Yuri Chuchukov. Ele não diz nada, mas seus olhos irradiam um sentimento que não combina com ele, mas que não sei dizer o que é.

      — O que foi? — pergunto, me pondo ao seu lado.

      Ele olha para o alto, se vira pra mim; sorri com uma pequena sombra de tristeza.

      — Não, nada — responde.

      Sei que não é verdade. Não tenho o dom de ler pensamentos, mas consigo entender um pouco a linguagem corporal das pessoas e sei quando alguém está triste. O olhar baixo, a respiração compassada, dizem muita coisa.

      — Achei que uma qualidade dos russos fosse a sinceridade — brinco, com um leve tom de ironia.

      O ruivo me encara.

      — Russos são sinceros — enfatiza.

      — Então, é uma qualidade que você não tem. Se fosse, me diria porque está triste.

      — Não estou triste, Danielle. Só quero ficar um pouco sozinho, no meu canto.

      — Então, veio num péssimo lugar. Se não reparou, têm mais pessoas aqui.

      — Na maior parte do tempo, nos sentimos sozinhos mesmo quando estamos cercados de pessoas.

      Medito por efêmeros segundos sobre essas palavras. Ele tem razão.

      — Então, é assim que se sente? E gosta de se sentir assim? — o desafio.

      Yuri suspira, entediado. Ser confrontado por uma garota lhe parece mais difícil de suportar do que a pressão que carrega para sempre se manter em forma, dentro do peso e com a flexibilidade em dia.

      — Ninguém gosta de se sentir sozinho. As pessoas podem pensar o contrário, mas também tenho um lado humano — sua voz sai quase como um desabafo.

      Mordo o lábio inferior. Por um momento, penso que não estou no caminho certo, e que tentar conhecer o lado humano de que Yuri fala, preciso ser cautelosa.

      — Você sempre se sentirá sozinho enquanto achar que as pessoas não são boas o bastante pra estarem perto de ti — falo sem pensar.

      Como que atingido por um golpe, o russo vira todo o seu corpo para mim; me olha dos pés à cabeça, incrédulo, seus lábios se movem nervosamente, a veia de seu pescoço pulsa.

      — Não é o meu caso, Danielle Raluca Răducan. Não. Eu não me acho melhor que ninguém e não quero ser julgado pelo meu jeito de ser.

      — Eu não estou julgando ninguém.

      — Onde você estava, quando meus pais morreram num acidente de avião provocado por um míssil disparado por ucranianos? Onde você estava quando minha irmã e eu fomos adotados pelo diretor do Ballet Imperial de Petrópolis e viemos morar num país de costumes e gostos estranhos, sem saber falar uma única palavra em português?

      — Provavelmente, eu ainda estava em Joinville, me acostumando aos poucos com a pressão que as pessoas jogavam no meu ombro pra eu ser uma princesinha do balé, igual minha mãe. Ou sendo exigida ao máximo na escola, por eu ser uma garota de proporções físicas perfeitas, sendo invejada por meninas da minha idade.

      — Isso não se compara a perder as pessoas que você mais amava com apenas cinco anos. Estou falando de cicatrizes. 

      — Pois eu perdi minha mãe aos dez anos. Tive câncer aos dez anos. E fui abandonado numa estrada pelo meu padrasto aos dez anos. Eu também fiquei com cicatrizes, Yuri. Mas diferente de você, que se blindou, eu me abri para as pessoas. Eu confiei nelas. Não importa a carga que a gente carrega, se a gente a divide com alguém, ela se torna mais leve.

      Yuri meneia a cabeça em negação, a incredulidade escancarada em seus olhos azuis e invasivos. Agora sua boca está semiaberta. Consigo notar que suas defesas se abaixaram um pouco, e dando um suspiro, ele afasta seus olhos dos meus e olha para as águas escuras da lagoa.

      — Eu sei que alguma coisa aconteceu — me atrevo a um passo, quase encostando meu corpo ao dele. Toco sua mão, o que o faz se voltar para mim. — Não quero invadir seu espaço, nem me intrometer numa coisa que não me diz respeito. Mas eu gosto de você, e se você quiser uma amiga pra conversar, eu estou aqui.

      O semblante dele se suaviza, embora haja ainda desconfiança em seus olhos. 

      — Yuri, no outro dia você me disse uma coisa tão legal. Pediu pra eu dançar pra mim, não para as pessoas, e pra eu não me preocupar com o que elas pensam de mim, porque não é da minha conta. Mas tem coisas que não podemos guardar, nem fazer pra nós mesmos. E no fundo, você sabe disso. Amigos não existem apenas por existir; Deus não os coloca nas nossas vidas por acaso, mas para nos abrirmos com eles.

      — Amigos — ele repete, distante.

      Aceno a cabeça em leve movimento afirmativo. Dou a ele um sorriso afetuoso. Aperto sua mão.

      — Nos últimos dias em que estamos ensaiando, eu aprendi a gostar de você, Yuri. Não só porque você é meu parceiro de dança ou porque me dá força todas as vezes que parece que eu vou surtar nos ensaios, mas porque eu sei que o príncipe bondoso e de coração nobre que você interpreta quando dança não é só encenação: é você mesmo.

       Um sorriso irônico e ao mesmo tempo triste surge em seu rosto.

      — Então é isso. Você acha que eu sou um Príncipe Siegfried. O mocinho.

      Sorrio, afirmando.

      — Pode ser que sua conjectura esteja errada e eu seja o Mago Rothbart. O vilão.

      Uma risada foge da minha garganta ao mesmo tempo em que solto sua mão e cruzo os braços após dar uma volta em torno de mim mesma.

      — Tá bom. Eu acredito — o afronto sem pudor.

      Yuri coça a nuca. Fica pensativo por um momento, e sou tomada por uma estranha apreensão, que se deve ao seu silêncio reflexivo. Eu sei que quer se abrir, precisa disso, como todo homem precisa respirar para viver. Mesmo assim, é difícil pra ele.

      Fico face a face com ele.

      — Tudo bem. Se você não quer falar, respeito seu direito de ficar em silêncio — falo resignada.

      — Danny — ele me chama quando dou dois passos em direção à escada que dá acesso à Avenida Borges de Medeiros.

      Se aproximando de mim, suspira alto, olha para o chão; levanta a cabeça bem devagar, como que resistindo à revelação que queria explodir de dentro dele.

      O encorajo com um olhar terno. Não gosto que as pessoas me olhem nos olhos e tentem me invadir por dentro, que tentem conhecer meus segredos e fraquezas, mas desta vez, assumo o risco. Dou a ele um meio sorriso.

      — Yuri… — balbucio seu nome.

      — Danny, eu posso carregar nos ombros a pressão da escola de balé e enfrentar sozinho os meus problemas. Mas não as angústias de outra pessoa. Tem hora que não dá.

      Assim dizendo, ele me vira as costas, porém sem se distanciar de mim. 

      — Você está sofrendo por alguém? — pergunto.

      O garoto ruivo se vira para mim de um jeito lento, e embora não responda com palavras, seu silêncio responde à minha pergunta.

      — A Nastia — diz com firmeza. — Ontem à noite ela teve uma de suas crises emocionais. 

      Sinto o ar fugir aos meus pulmões e um nó se formando em minha garganta. Sei que autistas de um grau elevado merecem um cuidado especial, mas nunca imaginaria que a Nastia, uma garota arredia (dada a sua peculiaridade), porém calma, se descontrolasse e tivesse crises emocionais.

      — Como foi acontecer? — fico angustiada.

      — Foi um descuido, é difícil que isso aconteça, mas aconteceu — Yuri põe as mãos nas têmporas. — Minha irmã divide o quarto com a Sacha, que é quem a entende bem e tem paciência para lidar com a condição da Nastia. Mas a Sacha se descuidou. Não podia ter acontecido.

      — O que a Sacha fez?

      — Voltou para o quarto depois do ensaio. Nastia tinha ficado na sala de aula, ensaiando suas danças para o festival em Petrópolis. Sacha pegou um dos livros da estante para ler, e o deixou aberto sobre a cama, e entrou tomar banho. Mas Nastia é acostumada com rotinas. Autistas são assim. Quando vêem algo novo, diferente do que é acostumado a ver, seu cérebro entra em pane, e um simples livro aberto na cama, com as folhas para baixo, foi demais para a Nastia, simplesmente porque a Sacha nunca fez isso antes.

      — Meu Deus, Yuri. Que chato isso.

      — Por que você deixou o livro jogado na cama? Por que não o guardou na estante? Não sabe que não pode jogar livros na cama, e que depois que os lê, deve guardá-los? Nastia prensou a Sacha desta forma, que assustada com a reação da minha irmã, começou a se desculpar, a gaguejar. Mas não ajudou em nada. O estrago estava feito. Nastia começou a gritar. Você é vaca, vaca, você não gosta de livros e bagunça as coisas. Eu não quero dormir no mesmo quarto com você. Você sabe que eu não suporto gente bagunceira. 

      — Eu não sei o que dizer, Yuri. Estou chocada.

      O russo interrompeu seu relato para tomar ar.

      — Nastia se debruçou chorando na cama, dizendo que o mundo é errado. Sacha, desesperada, foi me chamar na sala, aquela mesma em que você me viu ensaiando. Eu estava feliz, criando passos novos para a minha coreografia. Sua irmã teve uma crise, ela me disse quase chorando. Eu não sei o que fazer. Corri para o quarto das duas só de collant, me sentei na cama e a ergui, para abraçá-la. Yuri, ela choramingou. Está tudo bem, Nastia. Eu estou aqui. Sempre vou estar aqui. Aos poucos ela se acalmou e dormiu, e Sacha entrou. Doeu em mim ver como ela estava, é um tipo de dor que machuca a alma, porque a Sacha gosta da Nastia, e a Nastia confia nela. Mas o autismo desafia a compreensão das pessoas, e quando parece que sabemos lidar com ele, um simples descuido coloca tudo a perder.

      Yuri suspira profundamente. Não queria vê-lo assim, fragilizado. Sou mais íntima de sua outra faceta, aquela que faz a gente se sentir protegida quando ele segura nossa cintura e nos diz com seu olhar confie em mim, eu não vou te deixar cair.

      Agora sei que mais do que uma bailarina que é erguida até o alto, ele é quem mais sente medo de cair, e de uma altura assustadora. Ele é quem tem de ser um pilar, ser forte não só por ele, mas por sua irmã, que é a única pessoa com quem se importa de verdade.

      Mas ele também é humano. Ele tem um coração sensível, não é um robô programado para fazer tudo com perfeição. Não é só agora que estou percebendo isso, mas agora é tudo mais tangível.

      Yuri me fita, como que pedindo ajuda. Se eu pudesse fazer algo… se eu pudesse fazer com que as pessoas a minha volta não se sentissem tristes, e elas sempre sorrissem… Mas eu tenho minhas próprias angústias de estimação, e na maioria das vezes tenho de enfrentá-las sozinha.

      Não sou a melhor pessoa para dar conselhos. O que eu posso dizer a esse garoto que não pareça clichê? Vai ficar tudo bem? Yuri deve estar cansado de escutar frases batidas como essa, e não é por esse caminho.

      — A Sacha não tem culpa. Ninguém tem culpa — ele se apoia na mureta de proteção do lago, olha a superfície agitada da água do lago, por causa do vento.

      Mordo o lábio inferior, refletindo. Não. Ninguém tem culpa. Nem mesmo Deus, a quem as pessoas culpam por existir sofrimento, dor, no mundo. Simplesmente alguns de nós nascem com desafios maiores a serem vencidos. Ou só são menos afortunados que os outros.

      — Não consigo imaginar o quanto deve ser difícil pra você conviver com a condição da sua irmã. Ser o refúgio dela desde que eram crianças.

      — Você não pode imaginar. Ninguém pode — há uma leve revolta em sua fala. — Quando a Nastia era criança e encomendava algo pela internet, todos os dias perguntava quando sua encomenda chegaria, e a que horas chegaria. Ela queria estar ali pra receber. Ela era ansiosa e impaciente, e quando o prazo de entrega vencia e o carteiro não vinha, ela chorava e gritava. Isso foi mudando um pouco conforme ela ia crescendo, mas eu sabia que a bomba relógio dentro dela estava ali. Com o cronômetro pausado, pronto para ser detonada. E nós, os bailarinos desta escola, é que podíamos detoná-la ou manter o cronômetro pausado por tempo indefinido.

      Ele fica quieto, suspira.

      — Um cego lê através da escrita tátil. Um cadeirante chega ao seu destino com sua cadeira de rodas. Um mudo se comunica por libras. Nesses três casos, eles se adaptam às condições aversas em que vivem. Um autista não é assim. Nós é quem temos de nos adaptar ao mundo dele.

      Se adaptar ao mundo do autista, digo a mim mesma pra sempre me lembrar.

      Me apoio de costas na mureta, cruzando uma perna na frente da outra. Passo a mão no cabelo, tiro os óculos de sol da cabeça. Solto um suspiro.

      — Você diz que nem Sacha, nem ninguém é culpado. Mas falando desse jeito, parece que você está se culpando. Você precisa de alguém pra culpar, e escolheu a si mesmo; logo você, que a ama, que sempre a protegeu do mundo. Será que a Nastia quer isso? Que a pessoa que mais a ama se mortifique por ela não ser igual a todas as garotas da idade dela?

      Minhas palavras produzem um efeito instantâneo no russo, que ferido em seu emocional, projeta contra mim seu queixo.

      — Você nunca vai entender mesmo — responde com aspereza.

      — Acho que eu entendo muito bem — cruzo os braços.

      — Não entende.

      — Será que não, Yuri Nikolaievitch? Sua irmã vive num mundo dela, desconhecido para a maioria das pessoas, um terreno tão sagrado que só ela pode pisar. Mas não é uma prisão. Não tem que ser uma prisão, onde só você pode entrar às vezes. A Nastia é uma garota incrível, tem suas limitações mas também potencialidades que nem você conhece, e uma delas é sua capacidade de ser feliz como qualquer um de nós. E também chorar, ter angústias como qualquer garota da idade dela.

      — O que você sabe sobre autismo?

      — Posso não entender muito sobre autismo, mas eu entendo de pessoas.

      Yuri suspira. Esse seu ato repetitivo de irritação tem minado minha paciência aos poucos, mas tenho que entender suas razões.

      — Você sabe o que é ter uma irmã e saber que sempre terá de estar ao lado dela, unido à ela por um laço inquebrável e nunca poder deixá-la, com medo que ela sofra? — pela primeira vez, seu tom de voz sobe. 

      — Nem sempre vamos poder evitar que as pessoas que amamos sofram, porque isso faz parte da vida. O sofrimento também é uma oportunidade de crescimento. 

      Os olhos de Yuri ganham um brilho que não sei definir. Ele se cala. 

      — Você não vai poder ficar junto com a sua irmã para sempre — dói em mim assegurar isso, porque velhas feridas de separações, que eu achava que tinham cicatrizado, se abrem. — Um dia cada um tem que seguir seu caminho. Você vai ter que seguir seus sonhos, e Nastia os dela. Ao invés de ser o irmão protetor que a vê como uma menina frágil, não é hora de começar a enxergar que existe uma mulher forte dentro dela e que pode aprender a se virar?

      Yuri meneia a cabeça levemente para os lados. Ele hesita em responder, mas há um vislumbre de tranquilidade em seus olhos azuis. Eles ganham a tonalidade de um céu em começo de manhã (o azul mais bonito que existe), um meio sorriso finalmente aparecendo em seus lábios. É um sorriso ainda com uma pequena sombra de angústia, mas sincero.

      Faço um sinal com a cabeça, encorajando-o. Ofereço-lhe um sorriso e um olhar com ternura. De repente, sinto meu coração bater mais forte quando os olhos dele recuperam o habitual brilho invasivo, de quem toca a gente por dentro.

      Ele tem razão ao dizer que não sei nada sobre ele. E nunca vou entender essa sua capacidade de me atingir, de me intimidar e ao mesmo tempo me fazer sentir tão à vontade quando estamos juntos.

      — Me ajude com a minha irmã — ele fala após se esforçar para que a frase saia de sua boca. Eu entendo o quanto lhe deve ser difícil fazer esse pedido a uma pessoa que ele conhece há poucos dias, com quem o único vínculo que possui é um envolvimento profissional.

      Não só a Nastia precisa se adaptar a mundo que não a compreende. Yuri também precisa que alguém o faça compreender que ele não precisa se sentir sozinho, porque por mais que o mundo não seja legal, há pessoas que se importam com ele. Eu me importo.

      — Pode contar comigo. Eu estive aqui o tempo todo. Só você não viu — sorrio.

      A sobrancelha dele arqueia e o esboço de sorriso em sua boca me dá a entender que ele entendeu a que me referi.

      — Pitty? — arrisca, intrigado.

      — Não tem como não gostar da Pitty, né? — dou de ombros.

      Então, sem que eu espere, Yuri Nikolaievitch Chuchukov faz algo que não imaginei que seria capaz: ri.

      Quando nos acostumamos com o jeito de uma pessoa, nunca perguntamos por que ela é de tal jeito; simplesmente aceitamos. Porém, quando de uma hora pra outra ela faz algo que foge ao seu padrão de comportamento, nosso cérebro entra em parafuso. 

      — Não tem como não gostar de músicas boas — ele me corrige.

      Aceno com a cabeça, concordando.

      — Danny!

      Yuri e eu nos viramos ao mesmo tempo para a calçada por onde pessoas e ciclistas estão correndo.

      Odin desce os degraus da escada que dá para o píer e vem andando na nossa direção. Seus olhos se conectam ao de Yuri como um leão crava suas presas numa vítima. Seu semblante é sério.

      Embora meu namorado seja mais alto e um pouco mais musculoso que o russo, este não se intimida. Por outro lado, estou apreensiva.

      — Oi, Odin — falo, um meio sorriso em meu rosto.

      — Oi — ele me segura pela cintura e dá um beijo em minha boca.

      Um tipo de magnetismo o fez focar de novo nos olhos de Yuri, que por sua vez o encara com frieza.

      — Odin, esse é o Yuri, meu novo parceiro de dança — faço as apresentações. — Acho que já te falei dele.

      — E aí? — Odin empina o queixo, superior. — Tudo bom?

      — Sim — Yuri responde com voz neutra.

      — A Danny falou de você. Disse que é o melhor bailarino da escola.

      Estou tensa dos ombros aos pés. Por enquanto Odin está sendo respeitoso, mas eu conheço seu temperamento explosivo, e sei que ele está se segurando para não provocar o russo.

      — Sim, eu sou — Yuri retruca, convencido.

      Odin une as sobrancelhas, semiabrindo a boca. Também me surpreendo com o súbito assomo de convencimento do meu parceiro, já que ele não é assim.

      — Nem um pouco modesto — Odin observa num tom sarcástico que não me agrada.

      — Eu só tento dar meu melhor sempre — Yuri retruca, sustentando o olhar do meu namorado no seus olhos desafiadores.

     A tensão entre Odin e Yuri lembra dois polos magnéticos que se repelem. Já está de bom tamanho que meu namorado tenha se comportado de um jeito civilizado.

      Até agora.

      — Vamos, Odin? — sorrio, enroscando meu braço no do garoto que sempre diz que me ama, entrelaçando meus dedos nos dele.

      — Só um recado pra você — empina o queixo para Yuri. — Esta garota é a pessoa mais importante pra mim. Se você derrubá-la e ela se machucar, vou ficar muito bravo contigo — dando um tom ameaçador a sua voz, que faz as células do meu corpo vibrarem desordenadamente, Odin diz vamos e passamos pelo bailarino.

      — Tchau, Yuri. Até segunda — me despeço. 

      O russo nada responde.

      Mal saímos à calçada e nos misturamos às pessoas que andam, solto meus dedos acintosamente de Odin e me coloco à sua frente.

      — Por que falou daquele jeito com o Yuri? — o intimei a me dar uma boa desculpa.

      — Daquele jeito como? — ele me deixa mais puta ao se fazer de desentendido.

      — Você o ameaçou — agitei meus braços, bati nas laterais das coxas.

      — Ameacei? Quando? Eu só disse que se ele te derrubar, vou ficar muito bravo com ele. Mas entre expressar um sentimento e ameaçar alguém existe uma diferença muito grande.

      — Odin, menos, tá? Eu não sou burra. Eu vi a forma como você o olhou. Vocês ficou estudando o Yuri, e eu não sei porquê. 

      — Você viu a forma como ele me encarou? Odeio que um homem me olhe nos olhos.

      — É o jeito dele.

      — Pois ele devia tomar muito cuidado. Mesmo ele sendo gay, não deixa de ser desrespeitoso. 

      — O Yuri é um cara sensível e um dos garotos mais respeitosos que eu conheci aqui no Rio. 

      — E que continue assim. E que também não toque em partes do seu corpo, mesmo que por acidente, porque se eu ver…

      Não faço questão de ouvir o resto da frase. Levanto as palmas das mãos, pedindo tempo, e Odin prontamente se cala. 

      — Chega. Não tem mais clima pra gente sair hoje.

      — O que você quer dizer, Danny?

      — Que eu tô puta com você. Não quero papo. Vou voltar pra casa. Sozinha.

      Odin fica desnorteado.

      — Danny…! 

      — Me solta! — recolho o braço bruscamente assim que ele segura meu punho. — E nem pense em vir atrás de mim.

      Começo a andar a passos apressados, me distanciando de Odin. Olho por sobre meu ombro, pra me certificar de que ele não está me seguindo, mas o mesmo continua parado, imóvel, com os olhos arregalados e a boca semiaberta.

      Quando ele me dizia eu te amo, eu sempre respondia eu sei. Já não tenho certeza da honestidade dos sentimentos dele por mim. Quem ama de verdade não se comporta de um jeito possessivo.

      Entro na república tirando o celular da parte da frente do meu micro short e me deixo cair no sofá, sob as vistas das garotas que estão assistindo tv.

      — Nossa, que cara é essa? — Tiffany pergunta, dividindo um pacote de batatas chips com Roberta.

      Olho para o teto, suspiro.

      — Gente, se meu namoro não der certo, da próxima vez vou namorar com uma garota. Juro que faço isso — desabafo.

      — Você brigou com o Odin? — Roberta estala nos dentes uma batata.

      — Briguei — não paro sentada nem dez segundos. Me levanto jogando os braços para o alto. — Ele acha que sou um objeto dele, uma posse.

      — Deus me livre namorar um cara assim — Tiffany faz uma careta. 

      — De que tipo de garota você gosta, Danny? — Roberta pergunta. — A gente pode te apresentar algumas amigas gays.

      Meneio a cabeça olhando para o teto, e apesar de eu estar ainda puta, sorrio com a ideia da Roberta.

      — Gosto de garotas negras.

      — Então namora a Dominique.

      As garotas riem ruidosamente e eu solto um suspiro. Muito engraçado. Então lembro que tenho que entregar algo a Luna e subo ao nosso quarto enquanto as meninas assistem a um filme que já vi várias vezes. Assistir tv aberta é um tédio.

      — Oi, amiga — falo a um fio de voz ao entrar. 

      — Nossa, já? E o seu encontro com o modelo? — Luna fica de bruços, reparando no meu semblante irritado.

      — Não rolou. Toma aqui seu remédio — tiro a caixinha de Buscopan do bolso traseiro do micro short.

      Luna se esgueira para pegar o remédio e o toma na minha frente.

      — Que cara é essa, Danielle Răducan?

      — Aconteceu uma coisa chata.

      — Conta.

      A morena faz um esforço enorme para se sentar na cama, dá um tapa na cama para que eu me sente. Me fará bem desabafar e contar como estou me sentindo. Luna conta que já teve um namorado igual ao Odin, e que cortou o mal pela raiz antes que o caso entre eles ficasse sério.

      Não vou terminar com meu namorado só por causa do que aconteceu na lagoa. Temos uma história juntos, e se eu desistir logo na primeira briga entre nós, o que vamos tirar de bom do que vivemos até agora.

      — Nesse momento não tô cabeça pra nada — falo com sinceridade.

      Luna assente e segura minha mão. Ela ignora a cólica e se permite a um sorriso cheio de ternura e amizade.

      — Vocês vão ficar aí trocando segredos? — Kauane irrompe no quarto. — Está passando o Renata e você. Vamos ver a Paloma, gente. Anda.

      Luna e eu trocamos um olhar sugestivo e descemos a escada correndo, seguindo a índia, que se arremessa sobre o sofá antes que uma de nós duas o tome dela.

      — Aumenta o volume — Roberta pede a Tiffany.

      Na tela de tv, uma moça de cabelo amarrado em rabo de cavalo e vestidinho cor champanhe, exibindo um sorriso que não consigo imaginar que não seja falso, prolonga um grito de boa tarde enquanto, atrás dela, várias garotas usando collants regata dançam, animadas, agitando braços e pernas ao som de uma música pop.

      As garotas são impressionantemente lindas, lembrando modelos de marcas de biquíni. Todas estão com o cabelo amarrado em rabo de cavalo e sorriem para as câmeras focadas em seus corpos esculturais.

      Os collants delas são da cor azul bebê, com detalhes dourados e abertura na frente, mostrando suas barrigas negativadas, e quando se viram rebolando, suas bundas estão praticamente de fora, quase engolindo o tecido do body.

      E que bundas lindas. Malhadas, bem feitas. Paloma está na parte debaixo de uma arquibancada de cinco degraus, sorrindo com aquele jeito encantador que só ela tem. Dá pra ver que ela é quem lidera as bailarinas.

     Complementando o visual, as garotas usam munhequeiras em ambos os pulsos, combinando com as cores do collant, tênis brancos de cano alto e meias brancas.

      — Caramba. A Paloma tá linda, né? — falo de olhos atentos aos corpos das dançarinas.

      — Namora com ela, Danny — Tiffany brinca e eu a fuzilo com um olhar mortal. — Você não disse que gosta de garotas negras?

      — Não posso falar nada pra vocês mesmo — respondo com acidez.

      As garotas da aeróbica batem palmas quando a música termina. Renata Sodré vai para a frente do palco e anuncia as atrações do programa. Uma outra música dançante começa a ser tocada, agora com as câmeras dando closes nos corpos das bailarinas de collant neon e tênis. Porque a apresentadora é pura antipatia.

      Assistimos o programa do começo ao fim, mais por causa da Pah do que pelas atrações. O velho formato que tenta segurar a audiência com cantoras de funk, artistas de rua, jogos de perguntas e respostas, e as lindas moças da aeróbica. 

      — Queria ter a ginga do corpo dela — Tiffany se levanta assim que o programa acaba.

      — Eu queria ter uma bunda como a dela — Roberta ri, acompanhando a loura de cabelo cacheado. — Duro ser bailarina — ela suspira.

      Quando Kauane se levanta, me levanto do chão e me sento no sofá que ela ocupara por duas horas. Luna segue as garotas até a cozinha, e eu abro meu iPhone instintivamente.

      Está brava comigo?

      Suspiro. 

      Estou puta com você. Mas vai passar. O que seu sinto por você é mais forte que tudo.

      Eu te amo, Danny. Tenho medo de te perder.

      Eu sei.

      Digito as palavras tchau e beijo, travo o celular e meus olhos se fecham com naturalidade.

                            …

      Dominique conquistou o primeiro lugar no festival de dança disputado em Bruxelas, e postou no Instagram várias fotos com a medalha no peito. A segunda colocada foi Antonella Carrascosa. Fiquei surpresa com o resultado, já que a argentina era a segunda melhor bailarina júnior do mundo. De qualquer forma, é uma conquista para o nosso país, para a nossa dança, e mesmo não morrendo de amores pela primeira bailarina júnior da Promoarte, sou sincera em dizer que ela é foda.

      A aula, para variar, é puxada. Olga começa a semana com tudo, disposta a provar da forma mais dura que o balé não é um conto de fadas, mas um tipo de purgatório, onde jovens bailarinos tem suas impurezas e vícios destruído, pra que só o que seja belo fique.

      Yuri e eu ficamos próximos um do outro, como tem sido desde o primeiro dia de aula. Embora não sorria, sinto que há palavras inconfessas por trás de suas lentes azuis. Seus espelhos d'água.

      Terminamos a aula de centro, e quando os grupos de bailarinos saem, Dominique vem até mim.

      — E aí? Sentiu minha falta? — pergunta com cinismo.

      — Não. O que você quer?

      — Nossa, quanta rispidez, garota.

      — Fala, Dominique.

      — Lembra daquele assunto que a gente ficou de tratar?

      Empino o queixo, sinalizando para que prossiga.

      — Eu estou a frente de um grupo de bailarinas que dança em hospitais, orfanatos e asilos — percebo o orgulho da garota negra em falar isso. — A Manu fazia parte desse grupo, mas ela está fora e eu não queria por qualquer bailarina no lugar dela, então… pensei em você.

      A proposta de Dominique me deixa tão surpresa quanto desconfiada. Não faz sentido algum ela convidar uma pessoa a quem não suporta para dançar em seu grupo. 

      — Por que eu? — cruzo os braços ao questioná-la. 

      — Eu teria que ser uma idiota e cega pra não reconhecer que você é boa. 

      — Uau — faço com ironia. — A primeira bailarina, elogiando a novata a quem chama de pata choca? Será que eu tô sonhando?

      — Sem sarcasmo, Danielle. Vai aceitar ou não?

      Não tenho a menor vontade de passar mais tempo com a Dominique do que já passo. Ela provou que não é uma pessoa que eu queira ter como amiga, mesmo que fosse a última beldade negra da face da Terra.

      Por outro lado, eu sempre quis participar desse tipo de projeto, e além disso, deve ser gratificante levar um pouco de alegria para pacientes em hospitais, para crianças sem família e idosos solitários. Não dá pra negar que é uma atitude bonita dela.

      — Eu vou ter que te obedecer? — sorrio com ironia.

      — É o mínimo, afinal sou primeira bailarina e você chegou a pouco tempo — Dominique põe as mãos na cintura.

      — Isso não vai atrapalhar minha rotina de estudos? 

      — Não. Não nos apresentamos todos os dias da semana, no máximo duas vezes por mês.

      Mordo o lábio inferior. Sustento o olhar de Dominique no meu, sem piscar.

      — Tudo bem. Eu aceito.

      — Ótimo — não há entusiasmo na voz de Dominique, apenas uma discreta satisfação.

      — Dominique…

      A garota para quando a chama, me olhando como quem pergunta o que foi?

      — Parabéns pela sua vitória na Bélgica.

      Um sorriso discreto nos lábios carnudos da primeira bailarina é indicativo de que ela ficou feliz pelo meu reconhecimento ao seu talento.

      Mas eu sei que usará sua conquista para se vangloriar. 

Capítulo de 5,8k de palavras

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