Capítulo 16
A primeira coisa de que sinto falta, ao abrir os olhos, é da claridade da luz do sol na janela. A segunda: a falta de outra cama abaixo da minha. Só quando me sento no colchão é que me dou conta, depois de olhar à minha volta, que não estou no quarto da república, mas no quarto do Yuri.
Meus sentidos voltam aos poucos, trazendo junto um estranho sentimento de culpa por eu ter dormido no quarto de um garoto que não é o meu namorado. E também medo por imaginar o que este faria com meu partner se soubesse disso.
Não. Ele não pode saber. Na verdade, nem precisa saber. O que aconteceu aqui, tem que ficar aqui. Se bem que não fiz nada errado.
Me pergunto se fiz bem ou não em contar para Luna que passei a noite com o Yuri, já que discrição não é um de seus atributos, e além disso, Tiffany e Roberta com certeza estavam com ela.
Só de pensar no interrogatório que elas farão assim que eu abrir a porta da república e entrar, me dá vontade de ficar aqui e ir direto para a aula. Mas isso é impossível, já que preciso de um conjunto de uniforme limpo.
Danielle tem de ir para a cova das leonas, penso.
Ponho as pernas no chão, me mantendo sentada, apoiando as mãos ao lado das pernas. A cama onde Yuri dorme está arrumada e a luz do banheiro, apagada, o que quer dizer que ele saiu e me deixou sozinha.
Que falta de atenção com uma hóspede, digo a mim mesma com ironia. Tiro o iPhone da tomada a fim de ver que horas são.
Não pode ser. São só quatro e vinte e cinco! Pensei que já era hora de eu me levantar e ir embora a fim de tomar café e tomar banho, para então voltar para cá, mas pelo visto, eu podia dormir por mais uma hora. Talvez uma hora e meia ou mais.
Se eu continuar dormindo pouco, logo vou ficar parecendo uma vampira da terra dos meus avós, a Romênia, mesmo eu tendo deixado de ser translúcida. O pior é que depois de acordar, não consigo mais dormir.
Me levanto e faço uma pose de yoga de saudação ao sol, alongando os músculos das coxas. Sinto na hora um incômodo nessa parte, o que é normal. Alongamento dói. Faz bem ao corpo. Porém, dói.
De repente, escuto bem baixinho o som de uma música clássica. Ela vem de lá de fora, do fim do corredor. A canção é linda e seus acordes tocam minha alma, como se me arrebatassem.
Pressiono o botão metálico da porta, destravando a fechadura eletrônica, e seguindo um instinto mais forte, saio no corredor. A música fica mais alta à medida que caminho. As luzes se acendem uma à uma sobre minha cabeça, até que chego à uma grande parede de vidro onde, do outro lado, um rapaz ruivo traça, com seus braços e pernas, um poema em forma de dança.
Yuri só está usando um collant regata preto, igual ao que nós, garotas, usamos – porém de um modelo masculino. Suas pernas estão cobertas por polainas, que envolvem uma parte de suas sapatilhas pretas. Mesmo com o fio dental de dança por baixo de sua malha, sem querer consigo ver sua anatomia saliente.
Mas por mais que seu corpo seja perfeito, o que me chama atenção nele são seus olhos. Parecem tomados de uma melancolia, de uma tristeza que ao mesmo tempo que corta o coração, também tem esperança.
Ele põe uma das mãos no coração e a outra diante do rosto, como se quisesse evitar olhar para alguma coisa (ou para alguém), e recuando dois passos, gira em torno de si mesmo e joga-se no chão, fazendo belos movimentos de extensão com as pernas. Abro um sorriso ao vê-lo de um jeito que nunca o vi antes: tão à vontade. Tão vulnerável. Tão humano.
Por estar tão entregue à dança e absorto em sentimentos que são só dele e que ninguém pode compreender, o bailarino não percebe que estou assistindo-o e que já estou dentro da sala. Quando ele executa uma pirouette e seu olhar encontra o meu, imediatamente para. Seu rosto, até então luminoso, adquire um tom pálido.
Ele corre até a caixa de som e a desliga, voltando, então, a me olhar.
— Danielle — balbucia.
Minha boca semiabre.
— Que coreografia linda — murmuro com sincera emoção.
O russo me olha de um jeito que não consigo definir. Seus olhos azuis se fixam nos meus.
— Por que está aqui? — indaga com voz preocupada. — Não me diga que eu acordei você?
— Não, de jeito nenhum — dou a ele um sorriso. — Eu acordo cedo todos os dias. Sou meio insone, sabe? Aí escutei uma música, fiquei curiosa e vim ver.
O canto esquerdo da boca de Yuri se enleva, num quase sorriso.
— Pelo visto, não sou a única que tem problemas para dormir oito horas — observo, ainda sorrindo. — Você também se levanta cedo.
— Sim. Sempre que acordo muito cedo, venho para cá e danço. É como uma terapia pra mim.
— Essa é uma criação sua?
— Sim.
— Caramba, que legal. E como se chama?
— Ainda não a batizei. Não está pronta.
— Ah!
Ponho as mãos nos bolsos do short, cruzo uma perna na frente da outra.
— Eu não te atrapalhei, né? — arrisco. — Se quiser, eu volto para o quarto e…
— Não — o ruivo se apressa em acabar com qualquer precedente para desculpas.
— Que bom!
Giro nos calcanhares e ando em direção à porta. Não quero que Yuri pare de dançar por minha causa.
— Danielle.
Olho por sobre meu ombro para Yuri.
— Posso te oferecer um café, antes que você vá embora?
Meus pensamentos dão nó. Hesito antes de responder que sim, e mesmo assim, só com um gesto afirmativo de cabeça.
— Aham!
— Bom — finalmente ele sorri.
…
Então, é aqui que os internos preparam sua primeira refeição do dia.
A cozinha da escola lembra a de um hostel, onde os hóspedes podem fazer uso de panelas, pratos e talheres. Estou sentada à pequena mesa, com os cotovelos apoiados no tampo, vendo Yuri tirar de um pote algumas colheres de pó de café e despejá-las com habilidade no filtro de papel da cafeteira. O cheiro inconfundível da bebida é tentador.
O bailarino traz a garrafa térmica, sorridente. É tão bom vê-lo assim, porque é uma ocasião rara.
— Quer puro ou com leite? — olha de canto para a caneca com a bebida mencionada.
— Gosto de um bom pingado, mas quero experimentar puro — arrasto à minha frente uma xícara branca, que ele começa a encher de café, só tampando a garrafa quando a bebida preta chega à um dedo da borda e digo que já está bom.
Levo a bebida à boca com cautela, já que a xícara está quente e não quero queimar a boca, e me surpreendo pelo café estar delicioso, equilibrado entre doce e amargo.
— É muito bom! — falo balançando a cabeça, dando um joinha.
Yuri ri, agradecido, mas nada diz, se limitando a observar como seguro a xícara.
Então, ele me dá as costas e volta ao fogão, trazendo um prato forrado com papel toalha, com quatro fatias de pão de forma.
— Coma — pede.
Pego uma fatia sem titubear. Faço uma nota mental: substituir algumas vezes o pão francês por pão de forma. A manteiga derretida e quentinha fica mais deliciosa nesta última.
Yuri se senta, por fim, e faz o sinal da cruz do jeito ortodoxo antes de também se servir. Não puxamos assunto. Como já percebi em outras vezes, o silêncio não é uma coisa que o incomode. Nem a mim. Quando as pessoas falam demais, é porque na verdade elas não têm nada pra ser dito que importe.
Enquanto tomo a xícara de café, segurando-a com ambas as mãos e mantendo minhas costas relaxadas, corro meu olhar pela cozinha. É um cômodo pequeno, mas aconchegante. As paredes tem um tom bege, quase dourado, e uma lâmpada em formato de ninho de joão-de- barrro bem cima da mesa retangular ilumina tudo.
Deve ser legal morar aqui e jogar conversa fora todas as manhãs, com os colegas de balé, sentado nessa mesa.
Há uma geladeira cor grafite, despensa, copa e microondas. Tudo tem um aspecto novo, e tenho curiosidade de saber quem banca tudo isso.
Sem querer, Yuri percebe que estou olhando para ele. Fico sem graça e direciono a cabeça para baixo.
— Se quiser, eu asso mais uma fatia de pão — ele se prontifica, gentil.
— Não. Já estou satisfeita. Obrigada — agradeço, rindo.
— Eu preciso mesmo voltar para o dormitório, para tomar banho e pegar outro jogo de uniforme — esclareço.
O bailarino assente sem nada dizer.
— Vou lavar a louça e te levar à saída — levanta–se como que impulsionado por uma mola.
— Eu te ajudo — me ponho em pé.
— Não precisa. Eu mesmo faço isso.
— Por favor. Você foi muito gentil comigo, me deixando passar a noite aqui e me servindo um café delicioso. Me deixe retribuir de algum jeito o favorzão que você me fez.
— Danny…
— Não aceito não como resposta — e antes que ele faça objeções, me antecipo e pego palha de aço e detergente, começando a lavar os pratos onde estavam os pães de fôrma.
Yuri me avalia com olhos incrédulos e atentos no meu manejo com os produtos de limpeza. Continuo sorrindo. Acho divertido as pessoas pensarem que sou uma garota mimada que não sabe lavar louça. Só porque sou filha da Françoise Shushunova.
A descrença dele começa a se esvair junto com a sujeira dos pratos assim que deixo os pratos limpos. Pego agora o bule que ele usou para coar o café. A borra preta se espalha pela pia, preciso borrifar água com as mãos para que a sujeira se junte num ponto e escorra de uma vez pelo ralo.
O bailarino fica ao meu lado, vejo a faca de serra e duas colheres em sua mão.
— Se importa? — ele está de bom humor.
Entrego a ele um pedaço de bombril. Terminamos de lavar a louça e dividimos duas tarefas: eu guardo pratos, talheres, em suas respectivas gavetas na copa, enquanto ele passa de leve a vassoura no chão. Diz que é uma regra do uso da cozinha: se você sujou, limpe, para que outros usem depois.
— Está pronto — Yuri encosta as cadeiras na mesa.
— É. Está — concordo.
Confesso que estou aflita por não ter um assunto para puxar com ele e prolongar minha permanência aqui. Ele também não dá mostras de esticar um pouco mais nossa conversa, e já que tenho pouco tempo para ir à república, tomar banho e trocar de roupa, decido que é melhor eu pedir para que ele me acompanhe até a saída.
— Obrigada por me deixar passar a noite no seu quarto — agradeço, assim que chegamos à grande porta de vidro.
— Não precisa agradecer. Eu nunca deixaria minha parceira de dança se molhar e ficar doente — Yuri retruca.
Dou um último sorriso para ele, que pede ao chato e nojento do Jaime (nunca vou perdoá-lo por ter insinuado que Yuri é gay) que abra a porta.
— Tchau. Até daqui a pouco, na aula de Literatura — aceno com os dedos.
— Até — os lábios dele delineiam um sorriso quase imperceptível, mas caloroso.
Ponho a mochila nas costas, passo a mão no cabelo e saio andando pela rua Cupertino Durão.
Quando penso no que vem acontecendo desde que cheguei no Rio de Janeiro, no meu primeiro contato visual com Yuri e na forma fria com que me olhou, é no mínimo louco o que aconteceu essa noite.
Eu ter dormido em seu quarto.
E o mais louco disso tudo é que, por trás de seu jeito fechado e altivo, por trás de sua máscara de homem imperturbável, eu sei que há um garoto gentil e generoso.
…
Quando chego à república, preciso parar e respirar fundo.
O que Luna perguntará primeiro? Vejamos: e aí, como foi dormir no mesmo quarto com o gato do Yuri? Ou então: sobre o que vocês conversaram? Ele é legal? À medida que teorizo perguntas que vou ter que responder, fico apreensiva.
Mas não posso ficar aqui fora. Como boi que avança para o matadouro, ponho a chave na fechadura e um par de olhos curiosos me fita. Será que Luna que está me esperando há muito tempo?
— Até que enfim, Danielle Raluca — a morena põe as mãos na cintura. — Faz meia hora que estou parada, esperando você chegar.
— Ah, não, Luna! Me poupa! — jogo as mãos para o alto, e desviando dela, me esgueiro quase resvalando numa das poltronas a fim de me projetar para o meu quarto.
— Me poupa não — ela anda em meu encalço como uma sombra, sem deixar que eu fique mais do que meio metro de distância. — Você passou a noite com o Yuri e o Nikita, e acha que eu não quero saber como foi? — será que se eu contar que o Nikita não estava, aí sim estarei pisando em ovos?
— Não é nada disso que você está pensando — paro e me viro com as mãos à frente pedindo tempo.
Luna bufa, põe as mãos na cintura.
— E você sabe o que estou pensando? — me desafia.
— Eu não sei, Luna, não sei. Caramba! Você adora ler histórias picantes, de repente pode estar pensando que eu tive alguma coisa com o Yuri, e não é nada disso.
Aproveito os segundos em que Luna está processando a informação pra entrar no quarto. Jogo a mochila no chão, tiro o collant molhado de suor, impregnado com meu cheiro, e a meia calça que usei ontem, e abro o armário, pegando um collant limpo.
Luna está parada, com o semblante sério, me fitando com os braços cruzados. Guardo o collant cor de vinho de Educação Física com a baby look branca na mochila, e puxo o zíper com tanta força que por pouco não arranco o chaveiro de sapatilha.
— Se contentar com meia fofoca está fora de questão, não é? — cruzo os braços.
— Assim fico ofendida, sabia? — ela está brava. — Nunca que eu imaginaria que você teria um lance casual com o Nikita e o Yuri.
— Luna! Não está ajudando em nada.
— Eu sei que você tem namorado — a paraibana faz com a mão um gesto para que eu me acalme.
— Então, se eu digo que não rolou nada entre o Yuri e eu, você acredita, certo?
— Claro, né?
— Tá legal. O que você quer saber, então?
— Por que você passou a noite lá e como é dormir no mesmo quarto com um garoto fechado, que não sorri e não dá bom dia pra ninguém?
Respiro fundo. Me convenço que não tenho como fugir, Luna é implacável quando quer saber de alguma coisa. Por sorte, as outras seis moradoras já saíram.
— Tudo bem — me sento na cama e faço sinal para que ela se sente ao meu lado.
Conto tudo, tudo mesmo, desde a conversa que Yuri e eu tivemos na cantina. Luna é afoita e não espera eu terminar uma frase para fazer outra pergunta, e por esse motivo tenho que pedir várias vezes que fique quieta, que me deixe falar.
Quando termino meu relato, os olhos negros dela brilham, mostrando admiração. Ela nunca imaginou que Yuri pudesse ser tão gentil com alguém, já que ele não deixa transparecer para as pessoas.
— Ele foi muito legal com você, amiga — ela admite, segurando minha mão.
— Pra você ver como as pessoas nem sempre são como a gente imagina — reitero.
Luna concorda. Peço a ela que não conte a ninguém, já que não quero que a nossa reputação – a minha e a de Yuri – seja manchada por causa de boatos.
Depois de tomar banho, Luna e eu lavamos nossos collants usados e os deixamos secando no varal.
Paloma nos cumprimenta com beijinhos quando entra. Conversamos sobre amenidades enquanto a acompanhamos num copo de suco de uva. Ela pede que a gente assista a tv às 16h no domingo, porque é o horário em que passa o programa em que ela dança.
— Pode deixar — prometo.
Luna e eu atravessamos o cruzamento da Cupertino Durão com a Ataulfo de Paiva e andamos mais alguns metros até nosso destino, e meu sorriso se desfaz de súbito, quando vejo o Jaime guarnecendo a porta de entrada do Ballet Imperial. Ignoro ao bom dia que ele nos dá.
Percebo que duas carteiras da sala de aula de Matemática estão vazias. Uma delas é na qual Dominique se senta. A outra é a do Yuri. Não me dou ao trabalho de teorizar porque não vieram: hoje é um dos dias da semana em que o primeiro bailarino júnior e a primeira bailarina júnior fazem aula com a Companhia Profissional.
Se fosse pela ausência da Dominique, eu podia dizer que o dia não poderia ter começado melhor.
Porém, não ver Yuri sentado ao meu lado, me dá uma sensação que não sei explicar.
…
Toda a turma se reúne para a aula de balé. Yuri estende gentilmente o braço para que eu tome meu lugar à barra, ao seu lado, com um sorriso brincando em seu rosto branco, com poucas sardas.
— Dance para você mesma — ele quase sussurra ao meu ouvido.
— Pode deixar — o olho por sobre o ombro, retribuindo com um sorriso ao dele.
Olga entra intimidando a todos com sua expressão inquiridora, como a típica professora de balé que desafia seus alunos a darem o máximo só com um olhar.
Yuri tem razão. Eu não vou deixar que ela entre na minha cabeça. Sei que tenho muito o que aprender com ela, como também sei que tenho dentro de mim uma coisa que poucas bailarinas têm, e que me torna especial.
Eu tenho alma de bailarina. E isso ninguém vai tirar de mim.
— Aquecimento. Frente à barra — a professora russa bate bate palmas, chamando à si a atenção de alunos que ainda estão se alongando no chão e na barra, e que ainda não notaram sua presença.
Fazendo um ajuste no meu collant por trás, tirando-o do bumbum, me abaixo para erguer um pouco minhas polainas, um pouco abaixo dos joelhos. Levanto o corpo, toco de leve com os dedos no coque, fecho os olhos.
O pianista introduz. Me deixo libertar de culpas, medos, preocupações. Não há mais nada ou ninguém na sala, a não ser uma garota loura de sorriso triste e a dança. Sua única paixão.
…
Com a proximidade do festival de dança em Petrópolis, os alunos estão se entregando por completo aos ensaios. Todos querem fazer bonito, mesmo porque é começo de temporada, e ser destaque numa das competições de dança mais prestigiosas do Rio de Janeiro te dá confiança e motivação.
Yuri e eu atingimos a chamada conexão perfeita entre bailarinos. Basta olharmos um para o outro para sabermos qual passo seguinte devemos dar, e até Olga, que não dá o braço a torcer, pela primeira vez deixou escapar um perfeito após um de nossos ensaios.
Quanto à minha variação de Paquita, também está legal. Ainda acho difícil girar pirouette e fazer developé depois de saltar cabriolet, mas não está uma bosta completa como nos primeiros ensaios.
Os ensaios de balés de repertório seguem um roteiro que não muda muito, independente da escola. Primeiro mostrei à Olga o vídeo da variação que escolhi. Ela assistiu com atenção, com o polegar afundado no queixo e me olhando, com a testa franzida, disse:
— Difícil. Quer?
Confirmei que sim com a cabeça. Não volto atrás, nunca.
O segundo passo: início dos ensaios. Nessa parte, não nos preocupamos tanto com limpeza técnica ou expressividade (não que isso não seja importante), mas em dançar a variação clássica ou a coreografia dentro do tempo da música. Também dá para encarar de boa.
A última etapa é a mais difícil. É a fase de limpeza, em que nossos movimentos e passos são lapidados. Olga é uma perfeccionista contumaz e se exaspera quando meu olhar não acompanha os movimentos dos meus dedos ou quando não sorrio como uma dançarina espanhola, que tem sangue quente e alma livre.
Enquanto estou usando toda a sala como se já estivesse dançando num palco, os outros alunos se amontoam no fundo e assistem ao meu ensaio. Consigo notar um brilho de admiração nos olhos de alguns deles quando developo minha perna para o alto, após minha última pirouette. Sorrio, envaidecida.
O pianista para de tocar com um gesto bem megalomaníaco, correndo seus dedos pelo teclado do instrumento tal como um músico egocêntrico que adora se exibir para uma plateia.
Me adianto para o canto onde Olga está. Ponho os braços atrás das minhas costas, dobro minha perna esquerda à frente, tocando o chão com a ponta do pé, e percebo, ao abaixar os olhos, que minha Gaynor Minden já era. Suspiro com tristeza. Essa sapatilha esteve comigo em vários momentos e eu tinha um carinho especial por ela.
Não é hora para sentimentalismos, porém. Olga se levanta de sua cadeira, cruza os braços e me olha dos pés a cabeça.
— Está dentro do tempo e com ótima expressividade. Você conseguiu dar vida a personagem. Muito bem.
Meus lábios ficam semiabertos, não posso ter ouvido direito. Olga me elogiou?
Sorrio apenas com o olhar, já que não quero parecer uma deslumbrada. Só olho fugazmente para o lado e vejo Luna batendo as mãos uma na outra de leve (sem fazer barulho, para que a mestra de dança não ouça), o que quer dizer fui bem.
Se bem que nem preciso de feedback para saber disso.
— Na pose final, apenas erga um pouco sua cabeça — Olga demonstra —, para que o público possa ver melhor seu olhar. E ponha um pouco mais de provocação quando sorrir, mostrando mais a alma latina da sua personagem.
Aceno concordando, agradecida pelo conselho. Uma das coisas que percebi em Olga: ela é dura e exigente, mas parece menos intimidadora à medida que fazemos o que ela espera.
— Assim? — faço a pose final, sorrindo.
— Sim — ela retruca. — Olhar altivo, provocante.
— Quer que eu passe mais uma vez.
— Nyet. Por hoje está bom — ela olha para as horas no relógio de pulso. — Quero ensaiar duas vezes as solistas de Ato 2 de Lago dos Cisnes e também Príncipe Siegfried e Odette.
Dominique, até então encostada numa das barras com os braços cruzados, vem andando e passa mim e por Olga, me oferecendo um sorriso cheio de afronta. Respondo à altura, dando um beijo no meu ombro e indo para o canto onde Luna está.
— Tá arrasando, gata — a morena me abraça, balançando meu corpo de um lado para o outro.
— Valeu, Luna — agradeço.
Me deixo cair sentada. Desamarro o laço da sapatilha de ponta, tiro as ponteiras, apoio os braços nos joelhos.
As solistas correm em volta de Dominique, os braços delas movem-se agitadamente. A bailarina negra faz movimentos de braços parecidos com o bater de asas de um cisne, evocando toda a melancolia e tristeza da princesa apaixonada que pede ao seu amado uma prova de amor, para que a esperança dela, de voltar a ser humana, se concretize. Yuri a abraça por trás e a faz olhar em seus olhos, e os dois têm semblantes graves.
Eu juro, leio no olhar dele.
Queria poder fazer parte deste espetáculo, nem que fosse para dançar no corpo de baile. Não tem coisa mais chata do que ficar de fora de uma suíte tão linda quanto Lago dos Cisnes, mas eu tenho que aceitar que não tem lugar para mim.
Sem ter o que fazer, me acomodo na minha condição de expectadora, apreciando o ensaio desse grupo tão jovem, porém cheio de talento e potencial.
Dominique nem de longe lembra a garota petulante que sente prazer em tentar me convencer de que não sou boa para estar aqui. Não tenho problema algum em reconhecer que ela é boa no que faz, que tem musicalidade e encanto. Quando olha para Yuri – cujo papel de Príncipe Siegfried parece feito pra ele – , eles parecem sintonizados, como se estivessem no palco.
Desde já, quero me sentir assim com ele quando estivermos dançando, e fazer valer a pena cada minuto de ensaio, cada gota de suor que nossos rostos derramaram até agora.
Estou ao lado de duas garotas cujos nomes ainda não decorei. Não presto atenção direito na conversa das duas, só nos elogios tecidos à desenvoltura da Nastia, que é um dos quatro cisnes do Pas de Quatre.
— A irmã do Yuri faz tudo — uma delas diz.
— É mesmo. Ela é quem carrega nas costas essa coreografia — a outra murmura.
As outras três garotas meio que vão na cola da primeira solista. São boas tecnicamente, mas não têm a mesma entrega que a garota ruiva, por quem tenho uma admiração muito grande e um carinho mais que especial.
Quando dançamos para nós mesmos, nos transportamos para um mundo de sonho, onde ninguém pode pisar.
As quatro garotas estão quase no fim de sua apresentação, dando aqueles chutinhos com as pernas esticadas, segurando as mãos umas das outras. Até que o imponderável acontece: Manuela cai e leva Nastia junto ao chão como uma peça de dominó que cai sobre a outra.
Levo a mão à boca, reprimindo uma exclamação, preocupada. Olga sinaliza prontamente para que a música pare de ser tocada e anda apressada para perto das duas bailarinas. Nastia se levanta. Manuela, no entanto, tem um semblante de dor e esfrega seu tornozelo.
— Está doendo muito? — a russa se agacha, preocupada.
— Sim — Manuela geme baixinho. — Acho que torci o tornozelo.
Todo mundo se junta em torno da morena machucada, rostos compenetrados, olhares cheios de aflição. O tornozelo dela tem uma cor vermelha, o que pode não ser só uma torção. Na hora me vem à cabeça a lembrança de quando Duda caiu de uma altura de quase dois metros, fraturando o osso cubóide do pé direito.
Chego perto dela um pouco mais, quase me abaixando para ver melhor o estado de seu pé. Está inchando rapidamente e lágrimas descem de seu rosto.
— Afastem-se, não estão ajudando em nada — Olga faz um duro gesto com seu braço para que nos dissipemos. — Você! — ela aponta para Guilherme. — Leve-a para a enfermaria.
O bailarino negro assente. Ele ajuda Manu a se levantar e põe o braço dela em torno de seu pescoço, os dois saem da sala. Meus olhos ficam parados na porta por um instante mesmo após ela se fechar.
Ando até Nastia, que está sendo segurada pelos ombros por Yuri. Ele olha para a irmã, preocupado como irmão carinhoso que é.
— Você está bem? — tomo a mão da ruiva. — Não se machucou?
— Estou bem — ela retruca. Seu semblante é grave, mas vejo que é verdade. Ela se apoia no ombro do irmão com o braço direito, força as pontas dos pés no chão alternadamente, esticando o arco dos mesmos, e como a mobilidade e o alongamento estão normais, é um motivo a menos para eu ficar preocupada.
Yuri e eu trocamos um olhar fugaz. Ele quase consegue abrir um sorriso, e eu entendo bem porque reprime esse impulso. Ele pensa nas pessoas. Sabe que não é hora para sorrir. Sabe que há uma apresentação da Companhia Jovem no teatro Claro Rio, em Copacabana.
Ainda bem que toda companhia que se preza tem um plano B. Olga vai achar uma substituta.
Engraçado. Essa palavra sempre me soou depreciativa.
Você só vai dançar meu papel porque eu me machuquei, você não passa de uma substituta!, lembro Duda dizendo quando me viu dançando com seu partner.
Mas quem não quer abraçar essa chance? Foda-se se estamos substituindo alguém, isso não importa mais quando dançamos.
— Uma de vocês se machucou, e se ela sofreu uma torção de tornozelo, como acredito que seja, está fora do elenco — Olga retoma sua impossibilidade.
Faz uma pausa para tomar ar e leva uma mão à cabeça.
— É triste, mas não é o fim do mundo — prossegue, minimizando a situação. — Também sofri uma luxação, quando eu tinha a idade de vocês e era solista do Ballet Kirov¹. — essa revelação me pega de surpresa. Se Olga dançou na antiga companhia russa, então sua postura rígida com a gente é justificável.
A mestra de dança se interrompe para olhar o teto por um instante. Seu semblante grave me faz pensar que está se lembrando do passado.
— O espetáculo não para. Vamos prosseguir com os ensaios! — bate palmas e passa por entre seus alunos, que abrem caminho. — Sergei — empina o queixo com dureza para o pianista —, vamos começar do início.
Quando passa por mim, Olga para e me olha.
— Danielle, você será substituta de Manuela — decide.
Não há hesitação em sua voz. Meus olhos se abrem em admiração. Não sei o que dizer (se é que Olga se disponha a ouvir algo que saia da minha boca), sinto uma pontada de empolgação e um sorriso tímido surge em meu rosto.
— O que está esperando? Tome sua formação com Nastia, Tiffany e Michelle — a russa balança as mãos.
As três garotas do conjunto me oferecem sorrisos encorajadores. Dou a mão para Nastia, que fica comigo,no meio da formação, com Michelle e Tiffany nas extremidades. Trocamos olhares de cumplicidade, e apesar de estar triste pelo que aconteceu com a Manuela, não posso negar que estou feliz por essa oportunidade.
— Não é incrível? Você vai dançar com a gente amanhã à noite — Tiffany fala, mal escondendo seu entusiasmo.
Caramba, é verdade. Amanhã é minha estreia no palco como bailarina do Ballet Imperial de Petrópolis. Não é como eu esperava, mas é uma honra e tanto.
E é só o começo.
…
Olga não faz correções no restante dos ensaios, deixando tudo correr e só se limitando a recomendações quanto à expressividade e olhares. Estou radiante com o papel de pequeno cisne.
A mestra de dança me segura na sala enquanto todos saem.
— Você já dançou esse papel antes? Achei ter ouvido você dizer que foi Cisne Branco no espetáculo da Promoarte — ela murmura com curiosidade.
— É, eu fui o Cisne Branco. Mas era para eu ter dançado o Pas de Quatre, só tive meu papel trocado porque a primeira bailarina se machucou. O diretor achava que eu daria conta de dançar o papel principal.
— Hum! Bom.
Olga toca meu ombro com sua mão enrugada, fria. Algo parecido com um sorriso toma forma em seu rosto.
Mas deve ser só impressão minha.
Capítulo de 5k de palavras
Ballet Kirov¹: antigo nome do Teatro Marinsky, famosa companhia da cidade de São Petersburgo. Curiosamente, a cidade tinha o nome de Petrogrado, nos tempos dos tsares, sendo rebatizada como Leningrado, na era soviética, e recebendo o nome definitivo de São Petersburgo em 1991.
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