Capítulo 15
A palavra rotina não existe quando estou ensaiando com Yuri. Faz três dias que estamos passando nosso pas de deux de O Quebra Nozes, e não é exagero afirmar: o cara é bom. Fico impressionada com sua capacidade de me fazer sentir mais leve, quando me suspende no alto pela lombar, usando só uma de suas mãos. Ele parece não fazer esforço algum.
Yuri não é muito se sorrir; já me acostumei com isso. Nas poucas vezes em que abre um sorriso, o faz com gravidade, com a tão conhecida alegria russa, situada numa linha difusa entre introspecção e tristeza.
Várias vezes flagrei, ao entrar no vestiário ou na sala de aula, bailarinas dizendo que me dei bem. Elas não estão erradas. Uma vez que ele se transforma num príncipe quando dança, só posso me sentir grata por só ter a aprender.
O problema é que a princesa também tem seus dias de gata borralheira.
Olga anda ao nosso lado enquanto dançamos, prestando atenção em cada movimento meu. De vez em quando pede que eu relaxe os ombros ou dobre mais minha perna de atittude. Às vezes fico confusa, porque de repente ela passa alguma instrução em russo, se esquecendo que quem fala sua língua é meu partner.
— Concentra — ele me pede quase encostando sua boca em meu ouvido, segurando minha cintura.
Continuo sorrindo, agora mais à vontade. Faço plié. Afundo meu corpo numa dobra de pernas, e me dando impulso para cima, o bailarino ruivo me ergue sobre sua cabeça com segurança e me põe sobre seu ombro. Dá uma volta comigo em torno da sala, meus braços levantados em terceira posição.
Olga, sempre perfeccionista, levanta seu braço e faz sinal para que meus olhos não percam contato com minhas mãos, mesmo que meus braços estejam acima da cabeça.
Yuri me leva para dar uma volta em torno da sala. Mantenho minha perna direita dobrada o suficiente para que uma xícara de chá possa ficar equilibrada sobre ela de um jeito estável, sorrindo para não sei quem – talvez uma plateia imaginária.
De súbito, um grito:
— Nyet¹! — Olga bate palmas e o pinaista para de tocar.
Saco! Já é a quinta interrupção. No que eu errei agora?
Yuri me põe no chão. Aborrecida, fecho os olhos enquanto solto o ar pela boca e ponho as mãos na cintura. Olga vem em nossa direção. Seu semblante é duro e vejo reprovação em seus olhos, além de um ar de superioridade capaz de fazer qualquer bailarina querer que um buraco se abra no chão para não ter de vê-los.
— Por acaso você não sabe usar força de costas? — ela agita as mãos.
— Sei — respondo.
— Então use essa força e fique reta. Não desmonte.
Esfrego minha têmpora esquerda, olhando para o chão, e Yuri está atento em meu rosto no momento em meus olhos se conectam de novo nos seus. Ele nada diz, mas sinto como se me encorajasse. Retribuo com um leve meneio de cabeça.
— Vamos tentar de novo — estendo minha mão à ele.
Começamos o ensaio do início. Numa das paredes da sala, Luna aproveita que nossa professora não está olhando para ela e faz para mim um sinal de positivo, numa tentativa de me animar. Ela e Tiffany comentam entre si sobre nosso ensaio, de vez em quando imitam meus movimentos e pontuam sobre alguma coisa.
Dominique, na parede onde ficam as janelas, está sentada no chão costurando com linha e agulha uma fita em sua sapatilha. Já que a origem do seu azedume está no fato de eu estar dançando com um garoto com quem ela fez par durante anos, então vou dar a ela muito motivo de recalque.
Sei que é infantil, sei que eu devia desfrutar só do ensaio e da beleza que eu e esse rapaz silencioso estamos tirando desse pas de deux tão bonito, que Nastia sugeriu como que por inspiração. Mas eu tenho momentos humanos, e de qualquer forma, sou adolescente; moças da minha idade gostam de confrontar.
— Pá! — Olga bate a mão numa outra no ponto máximo da música, quando Yuri me ampara pela lombar, ao seu lado, e meu braço direito e o braço esquerdo dele quase se encontram sobre nossas cabeças em terceira posição.
— Nastia! Nikita! Agora são vocês — ela direciona seus olhos constantemente desprovidos de humanidade para a irmã do meu parceiro e para o rapaz de cabelos castanhos e de quase dois metros de altura, que até então estiveram lado a lado e não trocaram nenhuma palavra, pelo que observei.
Yuri anda ao meu lado, um pouco à frente. Num primeiro instante, não há nenhuma interação entre nós após o ensaio. Penso que nosso laço é meramente profissional. Chego a supor que ele deve estar achando um saco ter que fazer par com uma bailarina emotiva, que vez ou outra resmunga e reclama de tanto ser cobrada. Tenho que lembrar que aqui as coisas funcionam bem diferente da minha antiga escola, e que eu tenho que ser resiliente. Ninguém gosta de quem se vitimiza. Ele não é uma exceção.
Nastia tem tempo para tomar minha mão por entre as suas, e se conectando comigo através de seus olhos invasivos, me dá um sorriso.
— Bom ensaio o de vocês — disse, com seu sotaque russo.
O enlevo de sorriso da bailarina ruiva me alenta, é o bastante para me fazer sentir melhor.
— Obrigada — respondo. Ela solta minha mão, vai para o meio da sala, para ela e seu compatriota começarem a ensaiar.
Me abaixo para recolher meus pertences (caixas de grampos, polainas, faixa elástica), guardo tudo na mochila, e ao me virar para sair, dou de cara com Yuri.
— Posso conversar com você? — seus olhos azuis e sempre questionadores nem se mexem nas órbitas.
O semblante dele é tranquilo, mas não me arrisco em fazer um julgamento precipitado. Ele não mostra emoções, mas as sente como qualquer pessoa. À menos que não seja humano.
Minha boca se abre um pouco. Sei que é sobre nossos ensaios que Yuri quer conversar, e pra ser sincera, não estou nem um pouco a fim de tomar bronca. Contudo, não posso fugir de uma confrontação; de qualquer forma, é melhor criarmos uma química logo, já que o Circuito de Outono da Promoarte está chegando.
— Claro, Yuri — concordo, apreensiva.
— Cantina, após os ensaios — um meio sorriso complacente se forma tímidamente nos lábios dele.
Meneio com discrição a cabeça.
Nastia se adianta, sorrindo e Nikita gira as mãos por sua cintura, fazendo-a executar pirouettes e me fazendo sentir orgulho por ela estar tão bem, tão à vontade com seu papel.
Alguns dos alunos de todos os níveis estão conversando nas mesas da cantina; fosse uma sexta-feira, lembraria um happy hour. Mas não há bebidas alcoólicas nas mesas, só suco natural, lanches de atum, peito de peru ou de frango, e o inconfundível aroma de café expresso (bebida preferida dos bailarinos da Companhia Profissional).
Nem bem adentramos na cantina e me alegro ao ver numa das mesas Lara, Lívia e Mia conversando; posso apostar um dos meus rins que não é sobre balé, já que estão sorridentes. É bem atípico a Primeira Bailarina não estar séria e com cara de poucos amigos.
Aceno para as três moças. Mia retribui, mostrando seu sorriso com aparelho. Ela usa sua habitual faixa cor de rosa em torno da cabeça, combinando com seu collant rosa pink.
— Por favor — Yuri estende a mão para que eu me sente.
Deixo meu corpo pousar com suavidade no banco com encosto, e suspirando, empino o queixo. Yuri não diz nada, o que não me encoraja a romper o silêncio opressivo entre nós.
Ele toma a iniciativa.
— Gosta de alfajor? — pergunta depois de folhear o cardápio espiralado e com folhas plastificadas.
— Sim — descontraío os músculos.
O ruivo levanta o braço direito. Uma moça com os logotipo da escola no avental se aproxima brandindo uma caderneta.
— Um cesto pequeno de alfajor com recheio de doce de leite, por favor — ele a olha sério, falando com voz neutra. Em seguida, me olha. — Quer beber alguma coisa? Suco, refrigerante? Café?
Leio os nomes das bebidas no cardápio. Não há muitas opções. Tomar uma coisa mais doce e encorpada, talvez?
— Quero uma xícara média de chocolate quente. Por favor — digo sorrindo, pondo o cardápio sobre a mesa.
— Certo — a moça diz. — E você, Yuri?
— O mesmo — ele é direto.
A atendente balbucia um ok, deixa nós dois sozinhos.
— E então? — pergunto.
— Então o quê? — a sobrancelha esquerda dele se projeta para cima.
— Sobre o que quer falar? Você propôs conversarmos, lembra?
— Sim.
— E…?
Yuri abaixa os olhos, e é a primeira vez que o vejo fazer isso. Não é de seu feitio fugir de um contato visual, pelo contrário. Seu queixo está sempre empinado, sua expressão sempre altiva.
— Talvez você é quem queira falar.
Meu cérebro fica fora de funcionamento com sua resposta.
— Não entendi — falo e ele cruza os cotovelos sobre a mesa.
— Sobre o pas de deux que vamos dançar — Yuri agora fala como se esse assunto fosse delicado para ele. — Creio que, se vamos ser parceiros este ano, tem que haver transparência entre nós dois.
Concordo, em silêncio.
— Sim — balbucio. — Temos que ter confiança um no outro.
— Você confia em mim, Danielle?
Faço uma expressão de espanto. Eu esperava que qualquer coisa saísse de sua boca, menos essa pergunta. Como não confiar num bailarino que é forte e sabe fazer a leitura de uma dança?
Me sinto um pouco ofendida.
— Claro que eu confio, Yuri. Que pergunta nada a ver.
— Não foi o que pareceu hoje no ensaio.
— O que pareceu? — tenho curiosidade em saber qual foi sua impressão.
— Que você achou que em algum momento eu te deixaria escapar de cima.
— Não tem nada a ver com você, Yuri.
— Então, é com você?
Essa conversa vai ser mais difícil do que imaginei.
— É, o problema sou eu — um suspiro aborrecido foge por entre meus lábios.
— Não use essa expressão. Você não é um problema.
— Eu não estava cem por cento focada no ensaio; errei tempo de música, passos, entrada na pirouette.
— Diga o nome de uma bailarina que não erra nada.
— Mas eu não me sinto boa quando a Olga, do nada, para a música e fala que meu cotovelo está alto, meu ombro está tenso, minhas costas não estão retas.
— Você exige demais de si mesma. Não precisa. Dançar tem que ser uma coisa que te faça feliz.
— Eu sou feliz dançando — meu tom de voz sobe em uma oitava.
— Então por que não consegui sentir isso no nosso ensaio hoje?
Um nó quer se formar na minha garganta. Odeio não saber o que responder. Eu podia dar uma desculpa, responder a Yuri que ao contrário dele, eu sou mulher, e mulheres têm TPM, cólicas, que tudo isso vem com mudança de humor e que nós somos instáveis. Mas ele não vai entender.
A atendente volta com nossos pedidos. Duvido que esse alfajor seja tão gostoso quanto os que são vendidos em Buenos Aires, mas tem uma aparência ótima. Dou uma mordida, e para minha surpresa, tem um gosto bom.
Concentrada por um momento efêmero no doce castelhano, me esqueço que Yuri está esperando que eu responda.
— Muito bom — termino de comer o alfajor.
— Danny — o russo põe a xícara de chocolate na mesa após tomar um gole.
— Oi?
— Não deixe a Olga entrar na sua mente. Você é uma ótima bailarina, só precisa se dar conta disso.
Mordo meu lábio inferior. Estou desconcertada. Não porque Yuri está sendo legal, mas porque ele tem algo que poucos bailarinos de sua idade tem: gentileza. Empatía. Ele não põe culpa, mas quer saber o porquê dos erros estarem acontecendo, o que era bem diferente com outros bailarinos com quem dancei.
Angel dizia que, em certos dias, eu era uma bomba relógio: do nada eu ficava irritada e nossos ensaios saíam ruins. Noutros dias eu era um perigo ambulante. Uma vez acertei o supercílio dele com a ponta da sapatilha, faltando dois dias para dançarmos em Garça, no interior de São Paulo.
Claro que eu mudei. Evolui muito como bailarina, graças a Letícia, que sempre me deu apoio e sempre acreditou que eu tinha potencial, às muitas aulas particulares e aos festivais, e workshops de dança. Mesmo assim, sei que tem uma coisa que falta, e não sei dizer o que é.
— Todo mundo sempre me viu como a “princesinha do balé” — ponho os dedos de ambas as mãos nas têmporas e solto um suspiro. — As pessoas esperam que eu faça algo mágico no palco. E eu sempre quero dar a elas um espetáculo de que nunca se esqueçam, não por que eu seja vaidosa, mas porque eu sei que isso as faz felizes. E quando elas estão felizes, é quando eu estou feliz de verdade.
Um vinco surge na testa do meu interlocutor, e este é um indício de que ganhei um ponto.
Mas ele não se dá por vencido.
— Nesse caso, não é você o problema. São as pessoas — esboça um sorriso.
Penso nessa possibilidade.
— Talvez — dou de ombros.
— Dançar para fazer as pessoas felizes é muito bonito. Mas não se esqueça que você também é uma pessoa.
— Acho que não entendi.
Ele olha para a superfície espumosa do chocolate quente como se olhasse para um tipo de vazio.
— Não faça as coisas pensando primeiro nos outros. Dance por você e pra você — noto uma pequena sombra de tristeza em seu meio sorriso, quase imperceptível.
— Esse é um pensamento bem egoísta, não acha? — o contesto.
Yuri hesita. Parece que toquei num ponto de sua personalidade que ele queria manter protegido.
— Pode ser. Mas é o que me ajuda sempre.
Intercalo um olhar entre a xícara de chocolate quente e o semblante do meu parceiro. De repente, ele fica sério e um silêncio se instala entre nós. Mas não é um silêncio opressivo, pelo contrário, é como se fôsse uma parte integrante da nossa conversa.
De alguma forma, ele está certo.
— Obrigada pelo alfajor e pelo chocolate quente — agradeço, me levantando.
— Nye zachta² — seus lábios mal se mexem.
Dou passos apressados em direção ao vestiário. Já é noite, e todo mundo terminou de ensaiar. Luna tinha me mandado uma mensagem de whatsapp enquanto eu conversava com Yuri, perguntando onde eu estava, porque ela também tinha terminado sua variação e já ia voltar para a república. Pedi para ela voltar sem mim.
Há poucos alunos nos corredores da escola, todos desconhecidos. A falta de rostos que vejo todos os dias me faz sentir solitária, por isso quero me trocar logo e sair daqui. Se não fosse noite, eu até iria pra casa de collant e meia calça (só calçaria o tênis), porém as ruas do Rio de Janeiro são perigosas nesse horário. Não é porque estou no Leblon que posso andar seminua.
Fecho a porta atrás de mim só puxando a barra vertical, paro diante do espelho e me vejo. Abro levemente a boca. Penso que talvez seja hora de trocar as pedrinhas do meu aparelho de dente.
Então, sou tomada de sobressalto ao escutar alguém – e como estou num vestiário feminino, esse “alguém” só pode ser uma garota – vomitando atrás da porta de um dos sanitários. Me viro instintivamente a tempo de ver Dominique saindo com um lenço na mão, e a expressão de cansaço e exaustão em seu rosto se transmuta em palidez quando seus olhos negros encontram os meus.
— Você está bem? — estou preocupada de verdade com ela.
A boca dela semiabre. De longe sinto cheiro de azedo, e adivinhando isso, ela se apressa em abrir a bolsa lateral de uma mochila. Uma caixinha de drops cai no chão, com grampos, calcinha, tesoura e elásticos.
— Está tudo bem, não precisa se preocupar — ela responde, seca.
Sorrio com ironia. Ponho as mãos na cintura.
— Aham. Sei — provoco.
A bailarina negra franze as sobrancelhas. Me fuzila com seu olhar mais intimidador, anda até o espelho depois de juntar o que deixou cair.
— Quer saber? Não é da sua conta — retruca.
Fazendo um movimento rápido, giro sobre meus calcanhares antes que ela alcance a porta.
— Não sei o que você ganha sendo tão marrenta. Qualquer um vê que não está bem — cruzo os braços. Ela estaca e primeiro me olha por sobre seu ombro antes de se voltar para mim.
— Não preciso que uma pata choca se preocupe comigo — dispara. — Se preocupe com seu jeito de dançar. Você cagou hoje no ensaio com o Yuri. Da minha vida cuido eu, ok?
— Ora, por que o Yuri apareceu na conversa? — uso minha pior face, que também é a melhor: a de garota que adora ser sarcástica. — Por acaso está com dor de cotovelo por Olga achar que sou uma parceira melhor pra ele, do que você foi todos esses anos?
— Você se acha, Danielle Raluca. Nem bem chegou e já se sente a bailarina do pedaço. Mas até agora, não vi nada do que as revistas dizem a seu respeito. Cadê a bailarina adolescente mais linda do mundo, a filha do Cisne Branco, a que parece voar quando salta grand jetés?
Lembro das palavras do Yuri, me pedindo para não me importar com as pessoas. Desculpe, mas nem eu tenho tanto sangue frio para suportar a afronta de uma má perdedora.
— Eu cheguei há pouco tempo, sim, e sei que tô atrasada em comparação a vocês — ando um passo em direção à Dominique, parando a uma distância suficiente para que eu possa ver a veia de seu pescoço pulsar. — Mas sei também que eu tenho o que essa escola precisa, e que mesmo você sendo boa, eu posso te superar.
— Olha aqui, sua pata choca…! — Dominique ergue seu indicador em riste, o apontando para mim. É uma atitude insensata: não suporto que apontem o dedo para mim.
Antes que ela termine, seguro seu dedo indicador e o abaixo, quase projetando meu queixo em seu nariz.
—Nunca. Aponte. O dedo. Pra mim. Ok? — falo pausadamente.
A garota recolhe o indicador. Ela se atrapalha, deixando cair a mochila aberta no chão. Uma pequena caixinha de remédio, com tarja preta, sai de dentro e para aos meus pés.
Dominique fica estática, a boca entreaberta. Me abaixo, pego a caixinha e leio o nome, estendendo a ela em seguida.
— É sério que você se acha a melhor daqui, tomando antidepressivos?
Minha mão fica estendida no ar mesmo quando a primeira bailarina toma a caixinha num bote.
O chão some sob meus pés por um momento. Toda a minha marra some.
— Você sofre de depressão? — pergunto.
Dominique meneia a cabeça para os lados; contudo, não é um gesto de negação.
— Por que você não diz nada? Por acaso tem medo que todo mundo veja que você não é a Mulher Maravilha que nem você acredita ser?
— Me deixa em paz, Danielle! Me deixe em paz! — a garota explode, entonando sua voz num volume que – acredito – pode ser ouvido do lado de fora.
Ouço a porta se fechar num estrondo. Olho para a madeira cor tabaco, podendo ouvir os passos pesados e apressados da bailarina ferida em seu orgulho.
Suspiro, fechando os olhos, me sentando no banco de madeira, sendo invadida por um sentimento de culpa. No fundo, não queria fazer Dominique se sentir mal. Não tenho nada contra ela, nem contra ninguém, só não aceito que batam de frente comigo e pensem que não vou responder à altura.
Mas eu podia ter escolhido melhor minhas palavras, eu sei.
Me levanto, tiro meu uniforme de balé, visto o conjunto de moletom do Ballet Imperial de Petrópolis. Ouço o alerta de mensagem do meu iPhone ao mesmo tempo em que vejo a luz azul da tela.
Uma mensagem do Odin.
Dou um sorriso.
Oi, amor. Como foi sua aula? Daqui a um minuto vou entrar na passarela, então não vou poder te ligar, mas queria te dizer que te amo, tá? Beijo.
A paixão é um sentimento que nos faz bobos, repetitivos e melosos. Mas como nos faz bem… É incrível ter alguém pensando em nós todos os dias, mesmo quando estamos fisicamente afastados.
Odin viajou ontem para São Paulo, onde participará de um desfile. Conversamos algumas vezes durante o dia e trocamos frases apaixonadas. Mas bastou eu vestir um collant e calçar minhas sapatilhas, e tudo o que passou a importar pra mim foi a dança.
Pressiono com o indicador o microfone do aplicativo.
Eu sei. Beijo.
Travo a tela, ponho a mochila nas costas, saio.
Uma forte chuva cai. Os galhos das árvores balançam ao vento, como se garras de monstros que só existem na imaginação de crianças quisessem arrancá-las, e relâmpagos clareiam o céu a cada explosão que parece que vai transformar o vidro das janelas em cacos.
Que merda, digo mentalmente.
— Boa noite. Já vamos fechar a escola — um senhor de paletó, gravata e rádio, me adverte ao se aproximar de mim.
— Tá. Só vou chamar um carro de aplicativo — tiro o iPhone do bolso.
Só que para minha infelicidade, a tela do aparelho escurece assim que o destravo, o que faz com que eu me recrimine e me chame de burra por não tê-lo posto para carregar numa das tomadas da sala de aula.
— Estou sem bateria — explico, nervosa. — Posso esperar a chuva diminuir um pouco pra sair?
— Tudo bem — ele hesita antes de responder. — Mas só um pouco. Vou apagar as luzes das salas e logo volto.
— Obrigada.
Abraço meu corpo assim que o vigia sai, numa tentativa de me proteger da lufada de vento frio vindo da praia do Leblon. O que me deixa desconcertada é que há pessoas correndo pelas calçadas, com capas ou guarda-chuvas, e tenho medo que elas sejam levadas pelo vento. O guarda-chuva de um senhor é virado pelo avesso, e desprotegido, ele atira o objeto destruído num cesto de lixo e começa a correr.
A chuva aumenta, frustrando minhas expectativas, e o vigia volta mais cedo do que eu esperava. Pelo seu semblante sério, não acho que vai adiantar eu pedir para esperar mais um pouco.
— Sinto muito, mas tenho que fechar, moça — ele diz com pesar, mas convicto de que tem que cumprir seu dever.
— Você quer que eu saia nessa tempestade? — pergunto em choque, embora eu saiba a resposta.
— Não posso deixar nenhum aluno passar a noite aqui. Você terá que ir. Se quiser, te empresto um guarda-chuva.
— Ah, obrigada. Vai adiantar muito eu sair com um guarda chuva nessa ventania.
Estou mais desesperada do que brava. Então, uma ideia me ocorre.
— Pelo menos chama pra mim um carro de aplicativo.
O vigia prontamente tira do bolso da calça um aparelho. Rio de nervosa, me perguntando como em pleno século XXI algumas pessoas ainda vivem na Idade Média.
— Seu aparelho não tem Android, moço! — bato nas laterais das coxas.
— Meu Deus, por que isso está acontecendo comigo? — emaranho os dedos no cabelo.
— Moça, eu tenho mesmo que fechar. Posso perder meu emprego se eu não fechar a escola no horário.
— Já sei! Me deixe carregar o celular numa tomada. Cinco minutos, é só o que preciso. Por favor! — uno as mãos em prece, com esperança de que meus olhos azuis o comovam.
— Não! Nem um minuto! Ou pega o guarda-chuva ou vai embora sem ele.
— Que tipo de ser humano é você? — fico emputecida.
— O que está acontecendo aqui, Jaime?
Meus olhos buscam instintivamente a direção de onde sai essa voz e se fixam no corpo e esguio, com músculos definidos, de Yuri. Ele vem andando em minha direção com a imponência de um premier danseur. Firme, decidido. Para a um metro de mim, me olha de um jeito que não sei definir.
— Yuri, quero fechar a porta da escola e essa garota não quer ir embora — o homem a quem meu partner chamou de Jaime esclarece.
— Ele quer que eu saia na chuva — replico.
Yuri intercala um olhar entre o vigia e eu.
— Não pode sair — balança a cabeça. — Muita chuva lá fora. Vai ter que passar a noite aqui.
Abro a boca, atordoada, e antes que eu o conteste, o chato do Jaime se adianta.
— Ela não pode dormir aqui. Ela não é interna.
— Ela vai dormir aqui, sim. No meu quarto. O Nikita está dormindo fora e tem uma cama sobrando. Danielle pode dormir numa delas.
— Olha aqui, eu… — faço menção de recusar a oferta. Contudo, ele projeta seu corpo alto em minha direção. Me segura pelos ombros, olhando bem dentro dos meus olhos.
— Por favor — fala.
O timbre de sua voz soa agora tão gentil e há tanta bondade em seus olhos, que perco o chão sob meus pés. E virando a cabeça para a porta de vidro ainda aberta, vendo os pingos pesados que caem sobre os prédios da rua Cupertino Durão, vejo que não tenho muita escolha.
— Tá — me rendo.
— Estamos entendidos? — Yuri se volta para Jaime, que só faz um aceno afirmativo com a cabeça, consentindo.
— Está bem — o vigia diz. — Acho que não há problema, já que você é bailarino.
Percebo uma ironia sutil nas palavras de Jaime. Sinto nojo.
— Danielle. Venha — Yuri pede, sem ligar para a indireta do funcionário.
Dou um olhar de desdém para o vigia antipático enquanto ando atrás de Yuri por um corredor. Subimos dois lances de escadas e adentramos um outro corredor, ladeado por uma parede de vidro – dá para ver as luzes acesas dos prédios e a chuva caindo – e por uma parede com várias portas de madeira, numeradas, com placas gravadas com pinturas de bailarinos e nomes.
— Neste andar dormem os alunos que conseguiram vagas para os alojamentos — Yuri informa, com voz neutra.
Presto atenção nos detalhes do aposento. As luzes se acendem sozinhas à medida que avançamos, para se apagarem logo em seguida.
Paramos em frente ao quarto de número 25. Yuri passa um cartão no leitor da fechadura eletrônica, e ele estende o braço para que eu entre.
O quarto é pequeno e há duas camas. Uma delas está arrumada. A outra tem um cobertor estendido e dobrado até a metade sobre o colchão. Há um pequeno guarda roupa e uma estante cheia de livros, e entre os volumes grossos, distingo alguns clássicos russos.
Entre as duas camas, na parede, um notebook ligado sobre uma mesinha, com uma cadeira giratória. Na parede voltada para o Oriente, dois ícones ortodoxos: de Jesus Pantokrator e da Theotokos. Nada que me me chame a atenção, nesse caso. Os russos são cristãos ortodoxos.
— Fique à vontade — Yuri diz.
Porém, acho que ele é que não está totalmente à vontade, por ter em sei quarto uma garota com quem começou a conversar a poucos dias.
Tento ser natural, oferecendo um sorriso.
— O Nikita não vai mesmo dormir aqui? — ainda estou desconfiada.
— Nikita namora um rapaz da Baixada Fluminense. Está na casa dele, agora — Yuri.
Pelo menos agora sei que Nikita é gay. Mas não sei ainda o que pensar de Yuri. Ele não demonstra gostar de homens, mas também não o faz com mulheres, lembrando muito mais um garoto andrógino.
Mas o que isso importa, para mim?
— Pensei que vocês não pudessem dormir fora — tiro o moletom, ficando só de camiseta.
— É uma escola, não uma prisão — Yuri dá de ombros. — Não é porque somos bailarinos que não podemos ter uma vida fora da sala de aula.
— Mesmo assim, achei que todo mundo aqui só vivesse pra dançar e dançasse pra viver.
— Você tem namorado?
Estou começando a tirar o tênis assim que ele faz a pergunta e a acho inpportuna. Finjo não estranhar.
— Tenho — respondo.
— Você terminaria com ele, ou deixaria de falar com as pessoas que conhece desde que era criança, ou deixaria de viajar, sair com os amigos, só para ser bailarina?
Nem preciso pensar para responder.
— Não. Não sou obrigada a me anular por causa da dança. Embora eu ame o balé.
— Então você é igual a todo mundo aqui. Amamos dançar, nos sentimos completos quando pisamos no palco, mas como jovens, também precisamos fazer coisas de jovens.
Não contesto o garoto. Ele é mais habilidoso com as palavras do que imaginei, inteligente, e isso me deixa desconcertada. Será que tem como eu puxar um assunto ou fazer uma pergunta sem que ele me faça sentir uma boba?
Yuri vira as costas para mim, abre o armário, e me estende uma camiseta branca e um short largo.
— É só o que posso te oferecer como roupa de cama — noto um pouco de encabulamento em seu tom de voz.
— Tudo bem. Obrigada — abro um meio sorriso, aceitando de bom grado o pijama.
Mantemos contato visual por alguns segundos, sem nada dizer. Os olhos dele não se mexem nas órbitas e penso que, mesmo que ficassemos por uma hora assim, ele não perderia sua postura tão elegante quanto séria.
— Você pode tomar banho, se quiser — seu queixo se projeta para uma porta que eu não tinha notado.
Balanço a cabeça em afirmação. Tiro uma calcinha limpa da mochila e uma toalha, além de escova e pasta de dente, e entro no banheiro. Fico pelada, abro o registro. A sujeira escorre pelo meu corpo, perdendo-se nos furinhos do ralo, e começo a sentir de volta o frescor revigorante na minha pele.
Não acredito que isso esteja acontecendo, digo a mim mesma enquanto reteso minha cabeça para trás para a água quente do chuveiro cair sobre minha testa.
Eu, tomando banho, no quarto do garoto de quem todas as minhas colegas de balé querem apertar a bunda bem feita.
Esfrego o sabonete pelo meu corpo, me demoro mais tempo do que eu queria. Por fim, fecho o registro me enxugo e saio após fazer minha higiene bucal.
Yuri está sentado na cama, lendo um livro, e ando até a mesa do notebook, onde deixei meu iPhone carregando. Como ele está compenetrado com a leitura, me mantenho calada e envio uma mensagem para Luna.
Oi. Não precisam me esperar, tá? Vou passar a noite na escola. Beijo.
E desativo o wi-fi antes que minha colega de quarto seja indiscreta e me pergunte com quem vou dormir. Pelo que conheço dela, não vai me deixar em paz enquanto eu não contar que dormi no quarto de Yuri Chuchukov.
O bailarino põe um marcador de página no meio do livro, pondo-o fechado ao lado de seu corpo. Percebo que é Expurgo, de Sofi Oksanen³. Além de bailarino prodígio, ele é amante de boa leitura.
Por cautela própria de seus hábitos esquivos, seus olhos buscam os meus. Sinto minha face se tingir de rubor, e uma voz diz na minha cabeça que eu estar aqui é errado.
Mas eu não podia ter saído naquele temporal, não é?
— Vou tomar banho agora — Yuri se levanta, vai ao armário e tira uma muda de roupa.
Ele está a um passo de entrar.
— Yuri.
O bailarino para e se volta para mim.
— Não quero que você se ferre por minha causa — tenho medo de que ele tome uma reprimenda do diretor, e que este considere seu gesto de abrigar uma garota em seu quarto como uma violação das regras.
Yuri percebe minha apreensão, e esboçando querer dar um sorriso, responde:
— Boa noite, Danny.
Acompanho a silhueta de seu corpo atravessar a porta e fechá-la atrás de si. Sozinha no quarto, me levanto e vou até os ícones de Nossa Senhora e de Jesus Cristo. Faço uma prece após me persignar com o sinal da cruz, me deito na cama do Nikita, e puxando o cobertor sobre meu corpo, fecho os olhos.
Capítulo de 5,2k de palavras
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Nyet (нет)¹: Não
Nye zachta (Не защита)²: De nada
Sofi Oksanen³: escritora finlandesa, nascida em 1977. Bissexual assumida, é também autora de As vacas de Stalin (Stalinin lehmät) e outros livros premiados tanto na Finlândia quanto em outros países. Expurgo (Puhdistus) conta a história de três gerações de mulheres estonianas, abrangendo a era stalinista e o período pós soviético.
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