Capítulo 11 - parte 2
Observando a bailarina de olhos verdes flutuar no piso de madeira, tão linda e confiante, faz eu ter lembranças fortes de quando dancei pela primeira vez este papel. Foi o dia mais feliz da minha vida.
— Expressão, Dominique! Expressão! — Olga bate impaciente nas partes externas das coxas.
Então Yuri se aproxima de sua parceira. Ela tenta fugir, mas sua mão é segurada e os dois se olham, criando um contato visual misterioso que só o coração entende. Ela ainda sente medo, posso ver isso. Mas Yuri lhe oferece um meio sorriso, e isso a acalma.
Eles dançam e se conectam de um jeito tão bonito, que não consigo mais ver técnica ou performance. Só vejo um casal que parece apaixonado.
Yuri a segura pela cintura, e enquanto ela faz plié, ele a ergue várias vezes por sobre sua cabeça e a ampara no alto só apoiando-a pela lombar. A garota retesa seu tronco e a cabeça para baixo, as pernas esticadas à frente e em quinta e os braços abertos em cruz. É como se ela fosse um arco suspenso, com o peso de seu corpo concentrado apenas na parte apoiada pelas mãos do bailarino russo.
Minhas lembranças me levam então para os últimos festivais, quando todo mundo que me assistiu dançando com o Angel se levantou para nos aplaudir.
Como quero reviver logo tudo isso, ter de volta o brilho dos holofotes em mim.
— Ela é uma ótima bailarina — comento com meu parceiro, que parece mais focado na bunda do Yuri do que na performance dos dois.
— Muito arrogante e esnobe! — ele franze o nariz. — Mas muito boa.
— Acho engraçado você dizer isso da Dominique. Parece que não gosta dela.
— E por que eu morreria de amores por ela?
Dou de ombros.
— Não gosto do jeito dela — Guilherme continua. — Prepotente, sempre de nariz empinado, sempre se achando a bailarina do Ballet Imperial. Mas não sou cego a ponto de não reconhecer as qualidades dela. Força e técnica. E também muito bonita.
Sou obrigada a concordar, mesmo guardando pra mim minha opinião.
— Você sabia que a Dominique é engajada em causas sociais?
Olho com descrença para meu parceiro de dança. Este me dá um sorriso irônico, meneia a cabeça em afirmação.
— Ela lidera um grupo de bailarinas que, pelo menos uma vez por semana, dança em hospitais. A Nastia, a Kauane e a Brenda fazem parte. É sempre às terças.
— É difícil de acreditar que aquela vaca se ocupe de outra coisa que não seja olhar para o próprio umbigo — lanço a ela um sorriso provocativo enquanto Yuri a traz para perto de onde Guilherme e eu estamos.
O ruivo a desce e a suspende em pescado, erguendo-a em seguida e deixando-a cair em seu braço direito. A música termina no instante em que os dois se olham com amor e tristeza.
— Os dois são lindos dançando — reconheço com sinceridade.
— Pena que não ficou bom — Guilherme sibila, e olho para ele com surpresa.
— Como é? — franzo o cenho.
Os passos pesados de Olga Fiodorovna assaltam meus sentidos. Ela anda em direção aos bailarinos, e mesmo estando de costas para mim, sei pela sua postura rígida que não está contente.
— Dominique, quantas vezes eu tenho que dizer que você não pode desmontar sobre sua perna de base? — ela diz quase vociferando. — Você não está aproveitando as aulas particulares que vem fazendo com a professora Tatiana?
— Eu não estou desmontando sobre minha perna de base.
Fico chocada com a reação de Dominique. Não é comum uma aluna responder assim a uma professora. Normalmente escutamos caladas, sem dar desculpas.
— Então eu não vi você perder sua linearidade? Devo estar enxergando mal ou então, meus quase cinquenta anos de balé não servem mais para nada — acho desnecessário esse tom rude e zombeteiro da mestra de dança.
Dominique compreende que não está em condições de bater de frente com a russa, e por isso abaixa o tom.
— Me desculpe — pede. E intercala um olhar entre Yuri e Olga: — Podemos ensaiar de novo.
— Não. Talvez você precise ver ao invés de ouvir. Sente-se e descanse.
A garota bufa enquanto vem em nossa direção. Sua cara é o mais perfeito retrato de frustração. Sinto um pouco de pena, por ela estar dando além do que pode, e mesmo assim, não ser suficiente para satisfazer nossa professora exigente.
Então, como num filme de suspense, Olga se lembra que há mais pessoas na sala e seus olhos a vasculham, esquadrinhando todas as garotas até pararem na direção em que Luna e eu estamos.
— Danielle. Venha.
Assim que meu nome é pronunciado, todo mundo da sala desvia a atenção para mim.
Me levanto antes que ela me chame de novo, e sem querer, dou um chute na minha garrafa de alumínio. A água entorna, forma uma poça que corre justo para o lugar onde Dominique está se sentando. Ao se sentar na água gelada, a primeira bailarina leva um susto e arregala os olhos, escancarando a boca em choque.
Posso sentir o delicioso aroma refrescante do desodorante que o corpo do Yuri exala enquanto me aproximo dele. Olho cautelosamente para Olga, que me fita da cabeça aos pés.
— Você dançou o papel de Odette nos espetáculos da Companhia Permanente da Promoarte em São Paulo, não é?
Balanço a cabeça, afirmando.
— Mas era um pouco diferente.
— Pode nos mostrar?
Yuri se mantém atento no semblante duro de sua compatriota, sem tomar conhecimento de que estou ao seu lado e com uma linha dura entre os lábios.
Hesito antes de responder. Eu prestei bastante atenção aos passos e movimentos dos dois, e acredito que não é problema para mim girar quatro pirouettes e executar um developé.
O problema é que não conheço o Yuri. Sei que ele é preciso, forte e que não vai me deixar cair, e além disso, sou experiente com pas de deux.
Mas não temos uma conexão, somos estranhos um para o outro.
— E então? — o queixo de Olga Fiodorovna se empina.
Olho de novo para o Yuri, e então, ele vira a cabeça lentamente em minha direção. Sua boca delineia um meio sorriso que me deixa desconcertada, porque eu esperaria tudo dele, menos que mostrasse esse lado humano tão raro de ver.
— Vamos? — diz com amabilidade.
Respondo que sim, balançando a cabeça.
— Você prestou atenção no pas de deux? — Olga pergunta.
Sim, aceno sem mexer os lábios.
O pianista arruma a partitura sobre seu piano e prontamente atende ao sinal de queixo da mestra de dança. Seus dedos deslizam pelas teclas sem apertá-las, só tocando, conseguindo criar o clima de drama que o pas de deux de Lago dos Cisnes tem, e então, caminho dois passos em direção à parede de espelhos.
Todos os sentimentos de Odette agora passam a viver dentro de mim. Danielle deixa de existir.
Eu me torno o Cisne Branco, a princesa triste transformada em ave e que só a noite, quando ninguém a vê sofrendo, se transmuta em mulher à espera do amor de um homem de coração puro.
Enquanto executo pas de couru movimentando os braços, ora calma, ora agitadamente, sinto o cheiro de Yuri se aproximando de mim por trás e ao virar meu corpo, o vejo sorrindo e pondo a mão direita em seu peito, e me estendendo a esquerda.
Fujo de sua aproximação, mas meu braço é segurado. Então, meus olhos se fixam nos do bailarino, criando um contato visual que desmonta todas as minhas defesas e a abala as minhas estruturas.
Seu olhar é doce como o de um anjo. Minha boca semiabre e minha pele sob o collant de manga comprida sente arrepio.
Como não me sinto preparada para ser olhada assim, ajo como qualquer garota assustada faria: fujo desse contato visual.
Não.
Tento fugir.
Seus braços tentam me tocar, o que pede que eu desloque para a direita e para a esquerda, e quando parece que ele vai alcançar seu intento, giro em volta do meu próprio eixo na ponta dos pés e fico em piqué arabesque às costas de Yuri, olhando para o infinito por sobre os dedos do meu braço estendido.
O bailarino me segura pela cintura, tocando seu sexo na minha bunda, me arrastando pela sala e me fazendo olhá-lo dentro dos olhos, me perguntando em sua linguagem muda por que estou fugindo dele.
Em gestos, explico que não posso amar. Que tenho medo de amar, porque não sou humana como ele. Sou apenas uma ave ferida pela maldade dos homens.
Mas passando o dorso de seu indicador em meu rosto e tocando minha mão, ele me tranquiliza e coloca todas as minhas defesas aos seus pés.
É o amor do meu príncipe que vai me salvar.
Ando um pouco à frente com as mãos de Yuri segurando minha cintura. A mão direita de Yuri ergue minha mão direita, se abrindo para que eu gire três pirouettes só apoiando meu indicador em sua palma aberta.
Um meio sorriso triste aparece em meu rosto.
Faço plié e o bailarino russo me eleva várias vezes sobre sua cabeça. Depois, giro quatro pirouettes rápidas developando minha perna no alto. É o único momento em que Olga se manifesta ao se aproximar de nós dois e arrumar minha perna direita por trás de Yuri, em atittude, enquanto ele gira meu corpo sob a ponta do meu pé de base.
O contato do meu corpo com o do bailarino ruivo se torna aprazível, me sinto protegida e com confiança para ser mais ousada. Meus olhos pedem à ele que me faça não só chegar até o céu, mas tocar as estrelas.
Me impulsionando pela cintura e me levantando até o alto, parece que estou numa roda gigante e o mundo está aos meus pés. Apenas a mão direita de Yuri me suspende pela lombar.
Começo a ter sensações das mais intensas: de flutuar, de desafiar a gravidade, de reinar absoluta no céu.
Sou abaixada em posição de pescado quando a canção vai ficando lenta e acentuando o clima de paixão entre o Cisne Branco e o Príncipe. Enfim, me deixo cair nos braços do meu parceiro olhando bem dentro dos seus olhos, sorrindo por dentro.
O silêncio dura tempo suficiente para andarmos de mãos dadas em direção à Olga e fazermos reverance. Yuri me oferece seu sorriso mais lindo e também faz uma reverance a mim enquanto inclino meu corpo para frente arqueando meus braços para trás como asas.
Mantemos contato visual, agora sorrindo de verdade um para o outro.
Simplesmente estivemos distantes do mundo, vivendo um conto de fadas só nosso.
Foi sublime, porém nada parece agradar Olha. Ninguém é bom o suficiente para tirar um sorriso de seus lábios sulcados pelo tempo.
Estar ao lado de Yuri, por alguma razão, me dá tranquilidade. Não estou nem aí para críticas, pois sei que fizemos um bom ensaio.
— Obrigada aos dois.
E nos virando as costas, a russa anda até a porta, nos olhando por sobre seu ombro e dizendo:
— Aula encerrada por hoje! E, Danielle — presto atenção nela —, enxugue esse chão antes de sair. Por favor.
Dominique deve estar querendo me matar. O sangue dela pulsa através da veia do pescoço, mostrando que está furiosa por ter se sentado na água gelada que eu derramei sem querer.
Yuri me segura pelo pulso quando faço menção de sair para pegar um pano de chão. Fico um pouco ressentida por esse gesto brusco. O sorriso que ele me dá, no entanto, me desarma completamente.
— Foi bom — fala.
Ele não espera eu dar uma resposta. Anda até a parede das janelas, se abaixa para pegar suas botas de aquecimento, garrafa e faixa elástica, e deixa a sala junto com a Nastia.
Luna vem até mim e toma minhas mãos por entre as suas. Seus olhos estão tão arregalados que lembram os de uma personagem de mangá.
— Danny, o que foi isso? Tu simplesmente arrasou, amiga.
— Obrigada — o elogio da minha colega de quarta me deixa tão contente que tenho vontade de balançá-la de um lado para o outro, como a Mia fez comigo.
Conversamos animadamente até sermos interrompidas pela aproximação de Dominique. Ela está puta. Atira contra mim um pano de chão, que agarro no ar antes de me atingir.
— Você ouviu a Olga. Enxugue o chão.
A primeira bailarina vira as costas para nós. Não resisto e rio ao ver sua bunda molhada como se tivesse feito xixi.
…
— Danny, tu não vem deitar? — Luna pergunta depois de tomar um copo de leite.
Já são 23 horas. Ela está com uma camiseta verde e uma calcinha cor de rosa. Todas as meninas foram se deitar faz tempo, mas minha cabeça funciona melhor à noite, e preciso escolher logo uma variação clássica para começar a ensaiar.
— Daqui a pouco eu vou — respondo voltando minha atenção para a tela do notebook. — Vou assistir só mais dois balés de repertório.
— Boa noite, então — a paraibana boceja.
Pelo jeito, não vou conseguir decidir hoje. Estou na dúvida entre Harlequinade, Kitri e Gamzatti. Mas também gosto de Cisne Branco. O problema é que a perfeita Dominique está dançando esta variação nos festivais e a última coisa que quero é que ela pense que quero copiá-la.
Decisões, decisões.
Indecisa, cansada e com sono, mando uma mensagem de boa noite para meu namorado, e subo ao meu quarto depois de fechar o computador e apagar as luzes.
…
A entrada brusca de Olga na sala provoca expressões de apreensão e expectativa em todos nós. Luna e eu nos levantamos rapidamente e jogamos nossas botas de camurça num canto, vendo a professora andar até a parede de espelhos e ficar de frente para a classe.
— Meninos e meninas, boa tarde. Vou ser breve. Com a chegada da Danielle, da Mel, da Ângela e do Ulysses, o quadro de alunos da turma de nível 5 está completo. Sendo assim, já escolhi os pares, que dançarão pas de deux clássicos e duos contemporâneos ao longo deste ano letivo.
Sasha, a loura russa, corajosamente levanta a mão.
— Mas os pares foram formados no início de fevereiro.
— Sim, mas o balé exige dinamismo, e de qualquer forma, mudanças são necessárias quando minha intuição aponta para um caminho totalmente diferente. Eu ponderei sobre vários critérios. Sei que muitos de vocês criaram laços de amizade com seus pares, mas profissionalismo vem em primeiro lugar. Por isso, vou dizer quais serão as duplas a partir de hoje.
Fixo meus olhos nos lábios da russa. Ela olha panorâmicamente para sua turma, sempre altiva, sem fazer o mínimo esforço para ser ouvida.
— Dominique, você dançará com o Guilherme.
Dominique deixa escapar um o quê?, balançando a cabeça para os lados, sem entender o porquê de um dia para o outro não ser mais partner do Yuri. Guilherme e eu nos olhamos dividindo o mesmo sentimento de incredulidade.
— Nastia, você continuará formando par com o Nikita, por motivos óbvios: vocês são russos, e os dois têm uma complementaridade que quero explorar.
— Ulysses dançará com a Ângela — a professora prossegue.
Quando ela termina de informar as duplas, crio coragem suficiente de olhá-la com firmeza pra que me diga com quem vou dançar.
— Danielle...
Sustento o olhar frio da russa. Ela empina o queixo e subitamente aponta o braço para o garoto que está a minha direita. Sério. Impassível. Sempre calmo.
— ..., o Yuri será seu parceiro.
Minha boca semiabre, meu cérebro não consegue processar direito essa informação. Penso em pedir para Olga repetir a fim de eu ter certeza que ouvi direito.
Mas as palavras se dispersam em minha mente. Antes que eu abra a boca, a russa se dirige ao piano para combinar as músicas com o instrumentista.
Penso que Yuri está descontente com a escolha, compactuando do mesmo sentimento de Dominique. Eu não tenho culpa. Não pedi por isso.
O rosto dele se vira devagarinho para mim, e ao invés de um semblante fechado e de olhos frios como gelo, o garoto delineia um meio sorriso.
Não sei no que isso vai dar. Pode ser que não troquemos mais do que duas frases durante os ensaios, frases cordiais porém secas.
Por outro lado, ter um parceiro de dança talentoso e forte como Yuri Chuchukov só vai me ajudar a crescer. Talvez valha a pena.
Capítulo de 2,7k de palavras
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