Capítulo 11 - parte 1
Take, just one last dare
Pretend you don't care
Till twilight falls
Wait, is someone else here?
And I can't stop my tears
I've never been so scared
The Birthday Massacre, Lover's end
As meninas estão demorando. Faz quase vinte minutos que voltei da cantina, e nenhuma delas apareceu enquanto eu me trocava no vestiário.
Como fui a primeira a entrar na sala, aproveitei o tempo para me alongar um pouco enquanto ouvia uma playlist de músicas clássicas pelo fone bluetooth.
Devem estar se trocando ainda. Ou só dando um tempo conversando sobre um pouco de tudo no vestiário, menos sobre balé.
Me sento com as pernas abertas para os lados, respirando longa e lentamente para que a sensação de dor nos músculos das virilhas me deixe, inclino meu corpo para frente até tocar meu peito no chão. Fecho os olhos. Relaxo.
Fico assim por cinco minutos. Nesse tempo, minha mente se esvazia de tudo.
Então fico em pé e tiro minhas botas de aquecimento, andando até uma distância de quase dois metros do espelho, onde vejo que valeu a pena o dia inteiro que passei ontem na praia. Eu estou com uma cor linda, do tipo que faria a Stefany ficar de queixo caído.
Luna disse ontem que eu fiquei diferente. Quando a questionei o que esse diferente queria dizer, ela respondeu que eu não pareço mais uma vampira da Transilvânia, mas uma brasileira. As outras concordaram e fiquei sem saber se eu entendia as palavras dela como um elogio ou se me ressentia.
Elas também voltaram com cores lindas. Luna ficou mais morena, assim como a Kauane, que estava eufórica porque começou a trocar mensagens com um cara que conheceu e que Melissa afirmou ser um gato.
Como não tenho tempo a perder com devaneios e essa semana promete ser puxada, respiro profundamente e giro uma bateria de trinta e dois fouettés en tournant. Mas elas não saem a meu contento, porque posso ver pelo espelho (mesmo minha imagem parecendo um borrão) que na parte final do exercício meu corpo sai do eixo.
— Merda! — ando um passo enquanto esfrego minhas têmporas a fim de me acalmar e ao mesmo tempo buscar mais concentração.
Respiro novamente, tirando o collant da minha bunda.
Sete. Oito.
À medida que giro fazendo minha perna cortar o ar como um chicote, todas as distrações se dissipam na minha mente. A única coisa que digo a mim mesma é vai, você consegue.
Basta meu corpo sair um pouco do eixo e meu pé de base quicar para a esquerda para eu reaprender a dura lição de que não adianta só concentração se corpo e mente não estiverem harmonizados. Mesmo assim, continuo girando, até que vejo a imagem desfocada de Olga entrando na sala e batendo a porta, provocando meu desequilíbrio.
Por pouco não caio. A professora russa franze a testa. Seus lábios estão com uma linha reta e dura, insinuando um mau humor proverbial do povo das estepes.
— Bom dia — ela diz enquanto anda em direção ao piano, sem olhar para mim.
Semiabro a boca.
— Bom dia — respondo baixinho.
O toc toc dos sapatos de dança da idosa me intimidam, mas tento não aparentar que estou intimidada por sua presença inesperada. Normalmente ela só chega depois do pianista. Por que hoje chegou mais cedo?
A mulher se posta de costas para o piano, apoiando o cotovelo direito no teclado, me estudando da cabeça aos pés como se eu fôsse uma intrusa ou estivesse fedendo. Se eu não fôssem seus olhos miúdos piscando e os dedos de suas mãos enrugadas se mexendo levemente, acharia que é um robô.
— Continue — ela pede.
Faço um leve movimento afirmativo.
Tento buscar concentração não sei de onde, olho para a garota loura e de collant diante de mim e digo que é hora de mostrar porque me tornei primeira bailarina da Fantini.
Infelizmente, não consigo girar como eu queria, e murmuro um palavrão em voz baixa ao pôr as mãos nos joelhos ao me abaixar, fugindo dos olhos invasivos e frios como aço de Olga.
— Você é do tipo que se desconcentra quando sua professora a vê executando um passo?
Me viro prontamente para a mestra de dança. Sua pergunta me atinge como um soco.
— Ou se preocupa em dançar só para agradar sua professora?
Eu tenho que responder alguma coisa. Não filtro minhas palavras, nem me incomodo que minha resposta soe ríspida.
— Eu só danço para agradar uma pessoa: eu mesma.
— E você se agradou com o que acabou de fazer? — a russa vem em minha direção.
Não, respondo mentalmente.
— Você tem muita força muscular — ela pontua. — Arco de pé formidável, en dehor, flexibilidade e alongamento. Além disso, tem uma força de impulsão graças ao seu plié que permite que você salte a alturas impressionantes. Em outras palavras, você tem um potencial imenso. Mas potencial não é nada sem resultados. E para se chegar aos resultados, você precisa mudar sua cabeça.
— O que há de errado com a minha cabeça? — quero saber.
— Você é muito emotiva. Uma bailarina não pode ser fria como um robô ao dançar num palco, mas tem que ter frieza para saber lidar com a pressão que ela joga em si mesma.
— Eu só quero ser perfeita. Não é o que toda bailarina almeja?
— Perfeita! — ela zomba. — Você acha que eu exijo isso dos meus alunos? Perfeição? Acha que eu exijo o impossível?
Fico desconcertada com a resposta da minha professora.
— Isso aqui é balé. É impossível ser perfeita. Se você se dedicar toda a sua vida a buscar algo inalcançável e a se fechar para o que existe de mais belo na dança, só vai ser mais uma bailarina entre tantas. E vai ser uma frustrada.
Pelo visto, Olga Fiodorovna quer pôr minha paciência à prova. Mas não estou com humor para receber lições de vida numa segunda feira.
— Quem quer que tenha dito que é impossível alcançar a perfeição, esqueceu de me dizer quando aos dois anos decidi que queria ser bailarina.
Os olhos da mulher se arregalam como se quisessem saltar das órbitas enrugadas.
— Você acha que pode chegar com sucesso ao final dessa sua demanda? — Olga insiste.
— Pode ser que eu não consiga — respondo. — Isso não depende só de mim. Mas eu vou deixar meu rosto no coração de cada pessoa que me ver dançando, e só isso já é o suficiente para mim.
Olga anui em silêncio. Fico à espera de outra de suas lições de vida, com os braços descansando ao lado do meu corpo, e como sua boca não pronuncia nenhum som, lhe viro as costas de um jeito que não pareça desrespeitoso.
— Eu conversei com sua professora pelo telefone — fico surpresa com a informação. Me viro para ela com a boca entreaberta.
— Não se surpreenda — a russa pede. — Eu precisava saber um pouco mais de você, a fim de saber com quem vou trabalhar. Letícia foi muito prestativa. Segundo ela, você era primeira a chegar ao estúdio, e uma das melhores da Promoarte. Você é ex-primeira bailarina Fantini, certo?
Ex!
Como essas duas letras soam humilhantes.
— Sim — afirmo.
— Hum. Bom, ela me enviou vídeos de suas apresentações em Belo Horizonte, Curitiba, Jundiaí, Campos do Jordão e Buenos Aires. Eu observei muitas coisas a contento. Você se transforma quando dança. Parece ter aura pulsante que a faz se jogar, se entregar.
— Será que é porque sou filha da Shushunova? — digo com ironia.
— O fato de você ser filha da Françoise não quer dizer nada para mim ou para qualquer professor, coreógrafo ou ensaiador do Ballet Imperial de Petrópolis — percebo que a russa se sente muito ofendida com minhas palavras.
Ela expele o ar pela boca, anda até o batente da porta, me esquadrinhando antes de sair.
— Escolha duas variações clássicas para dançar. Você vai começar a ensaiar esta semana, como todos os outros, para o Circuito de Outono da Dança. Quanto à contemporâneo e neoclássico, ainda estou pensando. Mas os balés de repertório, é imperativo que você já comece a escolher.
Meu coração dá uma batida forte contra meu peito, um sorriso surgindo em minha boca discretamente. Eu vou dançar! Não que isso não fôsse acontecer, mas eu esperava fazer mais algumas semanas de aula antes de disputar competições, sei lá.
Olga se mantém séria e indiferente quanto à minha alegria súbita.
— Como a escola fornece figurinos para os alunos, não se preocupe com custos — a idosa acrescenta. — Apenas dance.
— Pode deixar.
Olga resmunga qualquer coisa ao mesmo tempo em que vira o pescoço e sai, e quando me vejo sozinha, ponho minhas mãos no peito murmurando um yes animado.
…
Bailarinas precisam dançar o tempo todo, a fim de não se esquecerem que não são mulheres comuns. E para que elas possam mostrar de que são capazes, toda sua leveza, força e técnica, ter um bom parceiro de dança é essencial.
Angel me deu todo o apoio de que precisei para girar e saltar nos espetáculos da Promoarte, e sempre vou me lembrar dele com carinho e gratidão por ter tido paciência todas as vezes que eu dava piti quando um ensaio não saia legal. Não era sempre que eu me descontrolava, mas acontecia. Eu ficava puta quando as coisas não saiam do jeito que eu queria.
Nós éramos os melhores. Não estou sendo convencida (pelo menos desta vez), mas a crítica e as pessoas diziam que nós dois parecíamos um casal de verdade. Era só um olhar para o outro, que sabíamos o que fazer.
Chamamos isso de conexão. Leva-se tempo até alcançá-la e o caminho é sempre difícil, mas quando o bailarino e a bailarina passam a confiar um no outro, você faz o impossível acontecer no palco.
O garoto com quem estou dançando, o Guilherme, é bom, com uma pegada firme, e é super gentil. O legal é que gostamos um do outro. Desde aquele dia em que viemos de São Paulo de avião, eu enxerguei nele um cara do bem, otimista, e quando vi que seríamos colegas, achei que não seria nem um pouco difícil criarmos uma amizade sincera. Ele desconhece o significado da palavra filtro.
Só que ele não é o Angel.
Ao nosso lado estão dançando Yuri e Dominique. Nastia e Nikita estão atrás de nós com a Luna e o Júnior. Somos as quatro últimas duplas.
— Por favor, não aperte tanto as minhas costelas — peço a Guilherme, enquanto ele encaixa seu corpo no meu para depois me dar impulso para girar.
Ele murmura qualquer coisa que não compreendo. Sem me desconcentrar e fazendo de conta que não estou ouvindo as orientações da mestra de dança (que fica o tempo todo em cima de nós dois), sorrio de um jeito docemente artístico e giro quatro pirouettes, sendo depois girada em promenade.
— Mantenha força nas costas, Danielle! — Olga exige. — Alongue o tronco para subir, com o braço te puxando!
Me distancio um pouco à frente do bailarino negro. Piqué, arabesque. Volto até ele, afundando meu corpo em plié, e de uma forma cirúrgica e precisa, sou levantada por cima de sua cabeça. Sinto, nesse momento um frio na barriga, o que é normal. Toda bailarina sente um pouco de medo ao ficar longe do chão, um medo que se mistura à sua volúpia de estar acima de todos.
De olhos fechados, sentindo meu coração se esmagar contra o peito, me deixo cair livremente nos braços do meu parceiro, que me segura pela cintura e pela parte de baixo da minha coxa com firmeza e segurança, finalizando nossa dança em pescado.
A música para de ser tocada, e até o pianista, habitualmente blasé, esboça contentamento com nossa performance, como que agradecido.
Olga espera pacientemente que nos quatro façamos reverance para vir andando ao nosso encontro, e sua fisionomia não é das melhores. Dominique e eu trocamos um olhar apreensivo, e instintivamente nos viramos para a russa, que para à nossa frente.
— Como suporto olhar para isso?
Todos nos entreolhamos perplexos por causa da dureza das palavras da professora. Não que esperássemos elogios, mas penso que ela podia pontuar o que a gente precisa melhorar, ao invés de se dirigir a nós de um jeito tão rude.
Um suspiro entediado sai da boca de Olga Fiodorovna. Queria saber o que ela está pensando de nós.
— Se um professor explica várias vezes à seus alunos o que devem fazer, e mesmo assim, eles não compreendem, então o problema não são os alunos: o problema é o professor. Por isso, peço perdão à vocês todos.
Me sinto horrivelmente mal ao ouvir esse lamento da russa. Será que todos também estão assim?
— Nenhuma das meninas fizeram developé ao final da quarta pirouette — ela começa a observar —, mas não é só isso: não vi extensão de cambrés; os pés de vocês, bailarinas, não ficaram em quinta no momento em que caíram nos braços dos seus parceiros. Sem falar no atraso das elevações.
Suspiro envergonhada. É incrível o quanto nossos erros são vistos melhor pelos outros do que por nós mesmos.
— Eu olho para vocês — Olga prossegue — e vejo jovens com um potencial incrível. Mas não mostram entrega. Parecem mais preocupados com técnica do que com arte. Não conseguem harmonizar uma coisa com a outra. Você, Dominique — aponta com o dedo para a primeira bailarina júnior —, que tal parar de esperar que o Yuri faça tudo por você?
Dominique semiabre a boca carnuda, intercalando um breve olhar com o garoto russo em que parece pedir desculpas.
— Você sabe muito bem no que precisa melhorar: se mantenha em seu eixo. E também mantenha sua perna de base em en dehor ao descer em penché. É difícil? Se vira!
A garota assente em silêncio.
— O Circuito de Outono de Danças vai começar. Em outras palavras, vamos ensaiar mais, fazer mais aulas e dançar mais.
A russa olha para o relógio de parede, faz uma expressão desgostosa e se vira para nós.
— Muito bem, não vou pedir para repetir. Vamos agora ensaiar Ato 2 de Lago dos Cisnes. Yuri. Dominique. Pas de deux de Siegfried e Odette.
Vou até o outro lado da sala, onde Nastia está alongando a perna esquerda na barra, e ela me olha por sobre seu ombro quando a toco pela cintura. Ofereço um sorriso, que ela retribui.
— Você esteva incrível — a elogio. Ela dançou com o Andreas, um bailarino forte que não esconde ter uma pequena queda pela Melissa.
— Obrigada, Danielle — ela responde.
Me abaixo para pegar minha garrafa de água gelada, e desviando de Olga, que só tem olhos para os bailarinos a quem chamou para ensaiar, vou para perto de Guilherme. Nos sentamos no chão, um ao lado do outro, encostando nossas costas na parede de espelhos.
— Não está fácil hoje — ele me olha. — Parece que ela está naqueles dias.
Rio do comentário.
Guilherme sendo Guilherme.
No segundo dia de aula, no refeitório, ele se sentou comigo e com a Luna, e em meio uma conversa sobre vários assuntos aleatórios, ele falou sobre coisas idiotas para fazer no Rio de Janeiro. Minha colega de quarto e eu nos entreolhamos sem entender.
Ele disse que nunca havia vindo ao Leblon antes de ser aprovado no exame do Ballet Imperial de Petrópolis. Quando veio, ao ver aquelas bolas das calçadas, no cruzamento da rua Cupertino Durão com a Avenida Ataufo de Paiva, pensou que elas eram de qualquer material, menos de cimento. Uma ideia idiota, um chute bem dado, e então, uma unha à menos na semana seguinte.
Mas não foi apenas isso.
Ele girou piqués na mureta da Lagoa Rodrigo de Freitas confiando em seu equilíbrio. Mas se desequilibrou e caiu na água com limbo verde, se molhando todo e perdendo um celular novo, do qual só pagara duas de dez prestações.
— Você acha que eu perdi o rebolado? Imagine! — ele falou. — Sai da água, bati cabelo e continuei andando com classe.
Tentei não rir. Porém, foi inevitável. Principalmente porque eu estava sentada com uma palhaça contumaz chamada Luna, que ri fácil de qualquer coisa e contagia a gente com seu sarcasmo.
Balanço a cabeça em negação e mordo o lábio inferior.
— Não acho que a Olga tenha idade para isso — contesto meu parceiro. — E não é elegante dizer isso de uma mulher, sabia?
— Só sou sincero, gata.
— A mim soa um pouco machista.
Ele dá uma risada de deboche, mas tomando cuidado para que Olga não escute.
— Amiga, agora magoei. Vou tomar mais cuidado com meu vocabulário — faz uma careta de tristeza, teatral.
— Se você tomar cuidado para não apertar minhas costelas, já está bom para mim — digo com ironia.
— Eu machuquei você, Danny? — o bailarino fica angustiado. — Me perdôe, eu não queria te apertar, vou tomar cuidado na próxima aula.
— Ei, calma, está bem? Não me machucou — tranquilizo Guilherme enquanto seguro sua mão.
Dou a ele um meio sorriso. Ele sorri e vira a cabeça para frente e faço o mesmo, vendo Dominique executando um pas de couru, batendo as pontas das sapatilhas em passos graciosos ao mesmo tempo em que seus braços se movem feito asas de um cisne branco.
Não consigo vê-la agora como uma garota arrogante. O papel de Princesa Odette absorveu completamente a garota pobre da Tijuca, transformando-a na mais encantadora das criaturas.
Continua...
Capítulo de 2,8k de palavras
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro