Capítulo 1 - parte 2
Desfilo pelo corredor sem pressa de chegar à sala de aula. Se eu pudesse, nem viria hoje. Mas a diretora ficaria chateada se eu não me despedisse dela e da minha turma.
Percebo que Stefany não está em lugar algum, o que não me surpreende. Ela disse na mensagem de áudio que deixaria para se despedir de mim no aeroporto, porque não tem paciência para ver gente com cara de choro.
Lembro da nossa conversa, que tivemos na cafeteria do shopping West Plaza, onde vamos de vez em quando depois da aula. Nicole e Jordana sempre nos encontram lá antes de irmos para o balé. Nesse dia, porém, só a Stefany e eu fomos.
Contei a ela que tinha passado na audição do Ballet Imperial de Petrópolis. Achei que ela fôsse ficar feliz por mim e me dar um abraço forte. Mas o rosto dela entristeceu.
— Não acredito que você vai ter coragem de me deixar — Ela fez um beicinho.
— Eu preciso ir.
— Você sempre disse que odeia calor, e vai morar numa das cidades mais quentes do Brasil. Enfim, a hipocrisia, né?
Segurei a mão da minha prima, a olhei com ternura e sorri.
— Mas eu volto nas férias de inverno. E prometo te ligar todos os dias.
— Você diz isso agora. Não dou um mês pra você fazer novas amigas e se esquecer de mim.
Levei a mão à frente da minha boca, sem segurar o riso. Minha prima me olhou ressentida.
— Nada vai mudar entre a gente. Prometo — toquei a maçã do rosto dela.
Stefany e eu temos traços parecidos. Os olhos dela são verdes e irradiam uma pureza que fascina todos à sua volta. Os cabelos dela, castanhos e lisos, são uma moldura prefeita para seu rosto bonito.
Até entendo porque ela está um pouco brava, porque sempre fizemos tudo juntas. Vamos à igreja ortodoxa russa, ao shopping, para festas. Se ela não gostasse só de meninos e não fôsse minha prima, talvez a gente formasse um casal bonito.
— Tem tantas escolas boas aqui em São Paulo — Ela fez outro beicinho. — Por que tem que ser no Rio de Janeiro?
— Porque o Ballet Imperial é a melhor escola do Brasil. Stefany, pensa bem… quando eu me formar, um mundo de possibilidades pode aparecer para mim, e eu tenho que agarrar todas as chances.
— Tem certeza que é por isso?
Arqueei uma das sobrancelhas, sem entender.
— Como assim?
— Parece que você vai embora não pra buscar alguma coisa, mas pra fugir de alguém. Ou pra tentar esquecer de alguém que te machucou.
Só não fiquei ressentida com as palavras da minha prima porque eu sabia que não havia maldade nelas. Mesmo assim, me machucaram.
— Chega, Stefany — pedi.
— Desculpa! — Ela segurou minha mão com força. — Desculpa, Danny. Eu não queria...
— Tudo bem — insinuei um meio sorriso e soltei minha mão da dela.
Tomamos nossos cafés com croissants falando sobre outros assuntos e depois ela me acompanhou até a Letícia Ballet. Nos despedimos olhando uma para a outra, como se nunca mais fossemos nos ver.
Antes de dormir, me lembrei das palavras dela.
Esquecer de alguém. Apagar uma memória triste.
Pensei, de repente, em tudo o que aconteceu comigo e disse a mim mesma que ter uma lembrança triste é pior do que não ter lembrança alguma.
Três meninas estão conversando sorridentemente encostadas num armário metálico. Uma delas é a Jacque.
— Oi — digo cumprimentando todas elas com beijinhos. — Quero te devolver isso — tiro os livro da mochila.
— O que achou? — Ela pergunta.
— Bem legal. O livro é um pouco triste, mas adorei.
O título do livro é Nós dois na madrugada², escrito por dois autores dinamarqueses. Numa linguagem simples e seca, conta a história de dois adolescentes que precisam morrer para ficarem juntos. Quando o li, foi inevitável não me lembrar de Lago dos Cisnes.
Jacque acena levemente a cabeça em afirmação e morde o lábio inferior, delineando um quase sorriso.
— Hoje é seu último dia de aula, né?
Confirmo com um movimento de cabeça.
— Amanhã vou para o Rio de Janeiro — passo os dedos no cabelo, inclinando um pouco a cabeça para o lado.
— Nossa equipe vai perder a atacante que salta mais alto na rede.
— Fazer balé tem suas vantagens, não é? — a brincadeira faz as meninas rirem. As vantagens a que me refiro são minha altura e impulso para saltar.
— É…
Jacque sorri, uma pequena sombra de tristeza nos olhos escuros.
— Danny… Me desculpe por eu ter te xingado.
Uma vez nossa equipe perdeu uma partida praticamente ganha, num dia que eu não estava inspirada. Jacque cobrou atenção da gente, pediu para eu me ligar no jogo e me disse um monte de merdas a partida toda, e depois que a gente saiu derrotada da quadra, começamos uma discussão feia que quase terminou em agressão. Eu a chamei de idiota, e ela me chamou de bostinha.
— Eu já te desculpei faz tempo — olho bem dentro dos seus olhos enquanto falo.
Um clima melancólico se estabelece entre nós duas, que se espalha como um vírus por onde quer que eu ande no colégio. Pessoas que sempre me acharam metida de repente se aproximam de mim, pedindo para tirar uma selfie de recordação e dizendo que vão sentir minha falta e que vão torcer para que eu brilhe nos palcos do Rio de Janeiro. Me limito a fazer agradecimentos prontos.
Entro no vestiário junto com algumas integrantes da nossa equipe de vôlei, que conversam animadas sobre o jogo que vamos disputar contra equipe do terceiro ano. Fico só de calcinha e sutiã, prendo meu cabelo num rabo de cavalo alto e visto rapidamente o uniforme, que consiste numa camiseta preta de manga comprida, um short vermelho (que lembra uma calcinha da Calvin Klein, por deixar a papada da nossa bunda aparecendo), meiões brancos e tênis brancos.
Por falar em bunda aparecendo, o que mais tem aqui é garota com bunda bonita. Acho a da Jasmine a mais bem feita. Ela é uma garota baixa, se comparada a meus 1,78 de altura, mas pula alto na rede e tem uma forte cortada. Como tenho forte atração por garotas negras, não consigo evitar de olhá-la durante os jogos.
A gente venceu a partida. Fiquei no banco de reservas por boa parte do jogo, a fim de me poupar para a viagem, e além disso, não quero passar pela rigorosa avaliação médica da minha futura nova escola de balé com uma contratura na coxa ou qualquer lesão, por menor que seja, que me impeça de já chegar dançando. Quando entrei para jogar, marquei pontos importantes, subindo para bloquear ataques e cortar as bolas que a Jacque levantava.
Tirando a emoção da partida, o restante das aulas foi opressivo. Com lágrimas. Votos de felicidades e boa sorte em sua nova escola de balé. Não esquece da gente.
Agradeci ao carinho de todos. Sai muda, olhando só uma vez para trás.
Então, sigo meu caminho, andando em direção a um dos poucos lugares em que me solto e me sinto bem de verdade.
O estúdio Letícia Ballet fica na rua Caiowaá, perto daquele estádio de futebol que não gosto de dizer o nome – sou corintiana apaixonada – e que tem a cor verde. Como muitas casas, bares e lanchonetes daqui.
A fachada da escola é bonita, com suas paredes de tijolos à vista, uma porta dupla de vidro escuro e uma placa branca no alto, com uma bailarina fazendo arabesque. Se não fôsse por essa imagem estilizada, qualquer pessoa poderia confundir com uma casa. Abaixo do desenho estão escritos LETÍCIA BALLET, o e-mail do estúdio e o whatsapp.
Sensações estranhas me invadem assim que entro e vejo de cara o figurino de Odile exposto em frente à parede com fotos de bailarinos que estudaram aqui. Algumas destas fotos estão em preto e branco, evidenciando serem do tempo em que o estúdio se chamava Pas de Quatre Stude de Dance. Olho para a foto dos meus pais, lindos em seus figurinos vistosos de Príncipe Siegfried e Odette e em pescado. Esta foto é colorida e dá para ver a cor vermelha do cabelo da Françoise.
É incrível o quanto nós duas somos idênticas, como se eu fosse um clone dela. A única coisa que nos diferencia é a cor do cabelo.
Se fisicamente somos idênticas, de resto não tenho nada em comum com ela. Mamãe tinha sangue quente e era explosiva, e sabia enfrentar de frente todo tipo de situação, enquanto que eu sempre fui mais quieta. Não que esse quieta queira dizer comportada.
Ok, tenho mais coisas em comum com ela. Gosto de tatuagens. Além das três rosas tatuadas em meu braço direito, tenho vários pequenos cisnes atrás da minha orelha esquerda e que descem até minha nuca, e que só aparecem quando faço coque de bailarina ou rabo de cavalo. E flores no meu pulso esquerdo.
Toco suavemente no rosto de mamãe. Ela parece tão feliz, tão menina, mesmo o balé que ela está dançando com meu pai não ter sorrisos. Consigo ver uma pureza irradiar dela e uma doçura que eu quero ter, para pelo menos ser uma bailarina talentosa como ela foi.
Ela parece estar me olhando e me dizendo que se eu me esforçar e me dar por inteiro, também posso me tornar imortal no coração das pessoas e ser sempre lembrada, não importa que outra bailarina foda surja.
Há também fotos da Letícia e de um monte de bailarinas que dançaram pela Promoarte, mas que não chegaram a entrar em companhias profissionais. Na maioria destas fotos elas ainda eram adolescentes, alunas de uma ucraniana brava e exigente chamada Oksana Maznova. Ela faleceu há doze anos, mas deixou o legado de formar uma bela cota de excelentes dançarinas. E também de destruir carreiras.
Vejo Clara sentada diante de seu computador enquanto passo em frente à secretaria e dou um oi para ela acenando com os dedos. Ela sorri em retribuição me desejando boa aula. Mas devia dizer tenha uma boa última aula.
Se por fora o estúdio parece pequeno, por dentro é diferente. Tem várias salas para prática de dança, além de uma sala para Pilates, uma cantina onde dona Luzia serve o lanche de atum mais gostoso de São Paulo e várias estantes com livros sobre dança e anatomia do corpo humano.
Ouço uma música linda ao passar em frente à sala nº 2, e paro para ver, através do vidro, Duda ensaiando o adágio de Lago dos Cisnes. Ela só está de collant, e meias calça e sapatilhas rosas. Os movimentos dela, os port de bras e olhar amoroso são cativantes. Lindos mesmo. Ela é a única bailarina negra do estúdio, o que por si só já lhe dá destaque; mas o que a faz especial é o talento que tem.
Quando a Duda dança, é impossível a gente não se sentir uma iniciante. Ela tem técnica, controle e explosão, e dá vida às personagens que interpreta.
Por ser primeira bailarina, ela tem um horário exclusivo para ensaiar, geralmente sob supervisão do Faustino. Ele está sentado em frente à parede de espelhos, observando-a, e assim que a música termina, se coloca atrás dela e lhe pede para subir em arabesque na ponta. Duda tem seu bumbum tocado por ele, que faz observações quanto ao seu encaixe de quadril.
Foi graças às suas muitas qualidades artísticas que ela venceu a Nicole na disputa de títulos da Promoarte e conquistou o status de primeira bailarina pela Promoarte.
Ela me vê e percebe que estou acompanhando seu ensaio. Seu semblante fica sombrio.
Dou um sorriso irônico. Quase não nos falamos por causa de uma rivalidade idiota que dura há anos e que fugiu do controle no início do ano. Duda não gosta de ficar em segundo lugar para ninguém, quer sempre ser a melhor, e simplesmente surtou quando comecei a vencê-la em festivais. Inclusive tirei dela o papel de Cisne Branco no espetáculo Ato 2 de Lago dos Cisnes, que dançamos em cidades do interior de São Paulo.
Logo ela terá de volta o papel. Mas não sei se um dia poderemos ser amigas de novo. E agora, com a distância, vai ficar ainda mais difícil.
Faustino pede a ela que pare de me olhar e preste atenção nele. Solto um suspiro.
— Oi, dona Rita — dou um abraço na simpática faxineira do estúdio.
— Oi, Danny — Ela põe uma mecha do meu cabelo atrás da minha orelha e aperta meu queixo carinhosamente.
Dizem que o remorso é mais forte do que a gratidão e que só damos valor às pessoas quando as perdemos. Não é o meu caso. Dona Rita sempre teve um carinho especial por todas nós, é como um anjo. As vezes em que ela vinha enxugar meu rosto molhado de lágrimas depois de uma aula ruim vão estar na minha memória.
Como também vão estar na minha memória cenas parecidas com a que vejo ao entrar no vestiário, de duas garotas rindo e conversando animadas sobre garotos. Elas estão em pé e já com collants e sapatilhas, os coques médios perfeitos e com redinhas, como a Letícia exige.
Os rostos delas se revestem de seriedade ao me verem.
— Oi — sorrio e ponho meu capacete num dos bancos de madeira.
Nicole dá um gritinho e vem me cumprimentar com um abraço. Um abraço longo, cheio de carinho e também tristeza. A ex-primeira bailarina da Promoarte é uma das garotas mais bonitas do estúdio e a mais alegre. O olho direito dela é azul claro e o outro, castanho, o que dá à ela um ar de fada. Estes mesmos olhos, que encantam todo mundo e passam tanta doçura, agora transmitem uma melancolia que não combina com sua habitual alegria e que só torna tudo ainda mais difícil pra mim.
Intercalo um olhar afetuoso entre a fadinha de olhos bicolores e a Jordana, que espera sua vez para me dar um beijo.
— Meninas, não façam essa cara — peço. — Já é difícil para mim, e vocês não ajudam.
— Não peça pra eu não ficar triste — Nicole rebate. — Vou perder uma das minhas melhores amigas.
— Como você pode fazer isso com a gente? — Jordana põe as mãos na cintura.
— Vocês não vão me perder. Eu vou estar longe, não vamos nos ver por um bom tempo, mas a gente tem o grupo. Prometo conversar com vocês todos os dias.
— Não é a mesma coisa — Nicole cruzou os braços, me fazendo rir com sua carinha de criança birrenta.
— Eu sei que não é — admito resignada enquanto acarinho o rosto da “turquinha” com o dorso da minha mão. — Mas é importante pra mim.
Jordana me fita com seus olhos verdes e assente. Troca um rápido olhar com a Fada, as duas me olham e voltam a sorrir.
— A gente estava falando sobre você — me interesso pela revelação da Jordana.
— Espero que tenham falado bem.
— Só a verdade — Nicole ri.
— Que você é uma vaca, metida, que faz a gente se sentir como novatas quando dança.
Minha boca abre em espanto com a sinceridade da Jordana. Olho completamente atordoada para ela e para a Nicole sem saber o que dizer.
— Mas a gente te adora — Nicole completa e de repente as duas me dão um abraço apertado.
— Puxa, gente… Obrigada — sorrio meio sem jeito.
Elas mantém comigo contato visual. Aos poucos nossos sorrisos se desfazem e um silêncio denso se instala no vestiário. Me pergunto se vou ter no Ballet Imperial amigas como a Nicole e a Jordana, que sempre me fazem rir e às vezes têm humor ácido, ou se lá será como nas escolas de balé dos seriados americanos, em que a bailarina novata é hostilizada.
Se bem que não estou indo para fazer amigos. Tirando as duas bailarinas que estão curtindo seus últimos momentos comigo e que sei que nunca fariam nada pra me sabotar, não posso esperar que eu alguém me segure para eu não cair. Só uma amizade de verdade, daquelas que resistem ao tempo e à distância, superam choques de egos entre garotas que dividem a mesma barra e querem mostrar que são melhores que todas.
Não há para mim outra variante além de dar o meu melhor e agarrar com unhas e dentes qualquer chance que surja, mesmo que alguém tenha que ficar chateado como a Duda está.
— Promete que vai ligar para a gente todo dia — Nicole segura minhas mãos por entre as suas.
— Prometo — respondo.
— E que não vai virar uma esnobe, mesmo quando ficar famosa — agora é Jordana quem exige.
— Prometo — repito.
— E que vamos continuar sendo amigas — Nicole insiste.
Aceno em afirmação, sorrindo.
— Eu prometo, meninas.
As duas acarinham meu rosto cada uma por sua vez, sorrindo e começando a chorar. Sinto que meu coração não vai resistir e que no final da aula vou estar chorando também.
Quando elas vão para a sala de aula, me deixando sozinha, me sento um pouco no banco de madeira, olho perdidamente para o espelho. Meus olhos azuis estão lacrimejando, mas não chega a ser um choro. Ainda não é hora para desabar.
Fico pelada, boto meia calça e collant, e me sento no chão para calçar as sapatilhas de ponta. Passo um lenço no meu rosto e me maquio, terminando de me produzir com um coque médio preso por grampos e redinha.
Deslizo dois passos em direção ao espelho. O coração bate forte dentro do meu peito, me fazendo desejar que o tempo não passe tão rápido.
Capítulo de 2,9k de palavras
______________________________________
²livro escrito por Sanne Munk Jensen em coautoria com Glenn Ringtved, e que tem os adolescentes Louise e Liam como protagonistas de uma história triste.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro