Capítulo 45
Ao voltar para casa, escondido sob os galhos, ainda tão brancos e gélidos dos pinheiros, senti meu coração morto doer como se tivesse sido reanimado só para ser dilacerando.
Nicholas havia posto em caixas, roupas e suprimentos. As caixas de isopor que guardam o sangue que nos alimentará por toda a primavera e em boa parte do verão, estão na sala, encostadas ao sofá de couro que, por sua vez, está escondido sob agasalhos grossos e mais e mais caixas.
Não consigo aceitar o fato de que estamos partindo. Não a posso deixar, não agora. Ainda há algo que eu não disse, algo que não descobri. Preciso de tempo. Apenas mais alguns dias...
Parei, sentindo o vento gélido do inverno soprar meus cabelos.
Não pode ser primavera, não agora, não hoje... Não!
Fechei a porta atrás de mim, preciso convencer Nicholas a ficar, mesmo que só por mais um dia...
— Já? — sussurrei, tento desvencilhar-me dos pensamentos.
Nicholas me olhou um pouco, analisando a circunferência da mancha solar em minha testa.
— Não é profunda, vai sumir em duas horas — ele disse.
Eu não estou nenhum pouco preocupado com minha testa, com a aparência, com o sol... Minha preocupação é tão simplesmente ir. Não posso ir.
Engoli o ar, como se esse fosse me ajudar em alguma coisa. Mas é inútil .
— Não podemos ir agora, Nick. International Falls ainda dorme, foi só um aviso de que a primavera existe, nada mais — reclamei. Não, não esqueci que Nicholas pode ler minha mente, sei que ele está aqui dentro, em minha cabeça, tentando abrir as gavetas dos arquivos. Mas, isso já não importa mais. Ele pode saber de tudo, eu mesmo o conto se preferir. Não faz sentindo esconder isso por mais tempo, ele descobrirá mais cedo ou mais tarde.
— Sim, foi um aviso – Nicholas pôs um pequeno vasilhame de cerâmica dentro de uma das caixas. – Um aviso de que necessitamos partir, o mais rápido possível. O inverno está acabado, Ace – ele pegou mais uma garrafa de vidro azul que estava no chão, analisou-a lentamente. – Bonecos de Neve derretem ao sol, rapaz. Você não pode ficar aqui. Precisamos partir o mais rápido possível, ou se tornará difícil. Sei que parte de Minessota ainda está inerte sob toda essa neve, mas... Não há outro jeito, mais cedo ou mais tarde não haverá tantas nuvens assim para cobrir o sol.
Nicholas me encarou por meio segundo, não pude ser sua mente enquanto ele fazia isso.
– Esta claro, rapaz. International Falls despertou.
Sentei no chão, entre uma caixa que cheira a livros empoeirados e outra que cheira a sweaters sem uso. Internacional Falls despertou... Isso não pode ser verdade.
— O que foi? — Nicholas ajeitou mais uma caixa, analisando-a para notificar-se de que não faltava nada. — Você sempre gostou de mudar-se, de conhecer um lugar novo. Por que está... distante?
Bufei, mas poderia muito bem ter me fingido de surdo.
Brie.
Tudo o que minha mente diz é Brie.
Preciso de mais tempo... Apenas um pouco mais...
Os arquivos com Brie se abriram a toda e despejaram cada papel, cada recordação, cada fantasma, sobre o chão acarpetado do meu subconsciente.
— Ace? — Nicholas bateu na caixa ao meu lado, me causando um sobressalto.
Olhei para ele, meus olhos me parecem frios — talvez não estejam.
— Eu perguntei se você não vai levar nada.
Me ergui, ruidosamente. Tudo o que eu quero levar não pode ser levado.
— Vou checar. Talvez eu precise... — minha voz soou triste, muito triste, e eu precisei gritar para que os arquivos se controlassem.
Entrei em meu pequeno quarto, a cama ainda está desfeita, os quadros ainda me perecem uma guerra sanguinária, as paredes continuam vazias.
O que devo fazer?
De qualquer forma, mesmo se eu puder ficar por mais um dia, terei de abandonar Minessota e tudo o que a nela.
Se eu não fosse tão inútil acharia uma forma de escapar dessa maldição, voltar a ser o eu com um coração pulsando e sangue correndo nas veias, o eu que depende de ar, o eu que realmente importa. Talvez isso, ser o outro eu, me tornasse um pouco mais inútil, mas seria fácil dizer o que sinto, seria fácil amar alguém, seria fácil...
Tudo está perdido, agora. Só o que posso fazer é arrumar meus sentimentos em caixas e levá-los para onde quer que eu vá.
***
O dia acabava em saudades, tantas saudades que mal cabe em meus arquivos.
Abri as portas da estufa, as flores parecem alegres e mais verdadeiras. Aquela cor plástica parece menos perfeita, o que torna cada pétala única.
O perfume de rosas e papoulas bateram em minhas bochechas, eu senti o ruído oco que meu corpo vazio emitiu ao ser atingido.
Nas paredes, sombras dançam uma vez que as lâmpadas não estão todas acesas.
Flores me fazem lembrar da primavera iminente. E dela.
Brie.
Eu deveria esquecê-la.
As portas que levam para fora continuaram fechadas, mas eu podia ver a escuridão atentando as brechas finas.
Brie.
Deveria parar de lembrá-la.
Em alguns dias, as nuvens de International Falls serão dispersas para um outro lugar, e o sol queimará o chão.
Brie.
E o galhos dos pinheiros serão verdes e vivos.
Brie.
Babadilhos cor-de-rosa irão salpicar os arbustos.
Brie.
O chão não terá camadas infinitas de neve.
Brie.
Sem neve.
Brie.
Neve.
Minha primavera enlatada será tapeada, haverá uma primavera real e livre rondando-a e chamando-a para mais perto. Eu não estarei aqui para proteger seus frutos... Derek... A idéia de que outro alguém poderá fazer isso me atingiu no âmago.
Senti o gosto da bile em minha boca, amargo e quente como vodka.
— Ace? — a voz de Nicholas ribombou, batendo nas paredes da casa e causando um eco obscuro.
Esperei um pouco antes de responder, mesmo assim Nick não invadiu minha mente.
— Estou aqui — disse, finalmente. As flores me condenaram por responder, como se me quisessem em silêncio, para servir de expectador às suas belas formas frondosas.
— Está pronto? — completou Nicholas, vacilante.
Balancei a cabeça negativamente — nunca estarei pronto para abandoná-la.
— Estou — menti. Uma lança de culpa e medo atingiram-me o estômago.
Desci as mãos pela parede mais próxima, como se esse leve toque fosse me trazer paz ou qual tipo de consolo. Meus dedos formigaram com a breve despedida, e eu me prometi que não iria chorar.
— Que bom. — Nick parecia confiante — O caminhão vai levar essas caixas até o carro. Eu preciso ir com eles. Você vem agora, ou quer ir... andando?
Dei uma última olhada na estufa improvisada, o jardim subindo pelas paredes em vasos de barro e plástico. Pequenos botões de fucsia dependurados em galhos verdejantes, pendendo para fora dos vasilhames, roseiras subindo em espiral, cravando seus espinhos em folhas de plantas alheias, papoulas vermelhas como sangue, nascendo entre os espinhos das roseiras e se misturando a rosas douradas e vermelhas... Todas elas, juntas, emitem uma cacofonia de vozes, sussurrando para eu ficar, pedindo, implorando Fique! Ace, não vá. Por favor, Ace, não vá!
Virei as costas para a estufa e fechei a porta branca que dá lugar ao corredor.
Um dia, perguntei a Nick o porquê de às plantas não estarem no porão, por que ele não fizera a estufa lá. Ar, disse ele, roçando a barba loira com unhas sujas de terra. Elas irão precisar de ar quando não estivermos aqui. As portas trarão ar, deixarei alguma janela aberta.
Queria precisar de ar, e assim eu morreria apenas por não tê-lo. Henry Ward Beecher uma vez disse que a morte é a queda da flor, para que o fruto possa avolumar-se. Eu morri para ser o que sou. E se morrer for a cura?
Não Ace, isso não é cura para nada. Morte é dor. Não a cura — sussurrou Nicholas, em meus pensamentos, tornando-os ainda mais disformes. — Você está morto, mas não está curado, está? Ainda há toxina vampirica em suas veias, não tem?
— E talvez tenha sido essa toxina que tenha me salvado de não estar morto, humanamente, nesse instante. Sem toxina eu não estaria aqui, indo embora, mais uma vez.
Ande, rapaz. Nós fizemos isso em todos os inícios de primavera. Sempre foi tão fácil. Estaremos de volta em outubro, não é? Em outubro!
— Sempre foi fácil — sussurrei, dando passos pelo corredor vazio, ignorando as lembranças de Derek sussurrando que a amava. — Esse ano as coisas mudaram, elas aconteceram de verdade.
Nicholas parecia não estar mais em minha mente.
Caminhei trepidante até a sala, os casacos e o sobretudo pesam sobre meus ombros, com o peso equivalente a cem elefantes. É o peso da despedida, se alastrando entre minhas veias frias e morrendo onde deveria haver pulsação.
Puxo a porta, memorizado cada pequeno fragmento das paredes antes de fechá-la inteiramente.
A chave emite um ruído ao trancar, definitivamente, a porta.
A dor da partida é tal qual uma bomba em minhas veias; não estou me despedindo da casa, estou me despedindo dela... da Brie. E a única parte boa é que eu não verei seus olhos confusos e rasos de lágrimas me convidando mais uma vez para embriagar-me dela. É, não há nenhuma parte boa em ir.
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