Capítulo 29
A estufa parece estar mais viva esta manhã, com flores desabrochando e brotos emergindo da terra, mostrando-se verdes ao mundo congelado.
Permaneci, por alguns minutos intermináveis, apenas ali, de pé, olhando a vivacidade presa naquele deck, observando folhas secas e verdes na estação mais errada. Fúcsias rosadas, íris alaranjados e orquídeas em toda a sua diversidade, ganhando vida aos cuidados de verdadeiros mortos. Quando enfim peguei o regador, senti que uma eternidade havia se passado.
Um tanto atordoado, regei as plantas, uma por uma, e retirei as velhas folhas e joguei num grande latão junto ao que também se tornaria adubo.
Nicholas me trouxe duas fatias gorduchas do bolo que pedi para ele fazer ontem, o Super Lincoln's Cake. O gosto doce da baunilha com chocolate se instalara sobre minha língua, mas não lembro de tê-lo provado. Por um momento insensato, voltei no tempo. Ao dia anterior a morte de William.
Eu estava sentado no chão, com os joelhos apertados contra o peito, a deleite da fria madrugada de Londres que invadia as grandes janelas à minha frente. As cortinas balançavam como véus à penumbra, ocultando algo além da noite. Não fazia noção do que havia lá fora já que nunca tinha andando por aquelas ruas, mas algumas garotas sussurravam sobre o palácio de Buckingham a alguns poucos quilômetros da instituição Graystone. Uma pilha de livros estava ao meu lado, mas eu preferi ler as estrelas que, vez ou outra, piscavam para mim atrás das nuvens cinzentas. Eu esperava por William ou pela Carrancuda Nicholson, ou por qualquer pessoa que me obrigasse a falar. Já estava farto do silêncio.
Ver o reflexo do garoto na vidraça que permanecia fechada, me causou um leve sobressalto; William parecia um fantasma, tão pálido estava, além de me parecer mais magro que a dois dias atrás. As manchas escuras ao redor de seus olhos estavam negras e profundas, ele andava meio capenga, chacoalhando um lenço branco de algodão para lá e para cá, a medida que caminhava. No lugar de fatias suculentas de bolo, ele trazia entre as mãos ossudas, uma grande xícara de chá que perfumava o ar com seu aroma adocicado. William se sentou ao meu lado e voltou-se para o céu britânico.
– Algum dia eu vou sair daqui... – a tosse interrompeu seu pronunciamento. – Vou para um lugar muito, muito, muito ensolarado, como a Califórnia ou o Brasil. – Mais um ataque de tosse o fez parar.
Olhei para Peterson, seus olhos brilhavam benevolentes, como dois pequenos e redondos Diamantes banhados pela mais forte luz. Ele bebericou seu chá, fazendo uma cara azeda... Mais um ataque de tosse. Não podia fazer nada a não ser sentir pena, mas eu não queria sentir aquilo, queria poder curá-lo do que o estava matando, queira trocar de lugar com Will e sentir todos aqueles sintomas. Não queira ver meu amigo sucumbir daquela maneira.
Tossiu mais uma vez.
William pôs o lenço de algodão sobre os lábios e, quando o retirou, o lenço não era mais assim tão branco.
De volta ao deck de Nicholas, olhei para os jacintos no canto posterior, no grande jarro de barro pende a parede de tijolos. As pétalas delicadas sujas de um vermelho sanguíneo me lembram o sangue de William, fazendo-me odiar ainda mais o que me tornei.
Larguei o regador meio vazio aos meus pés e sentei-me, pesadamente, na banqueta, sentindo o calor das lâmpadas penetrar minha pele impermeável.
Naquele instante único, tentei esquecer-me de tudo: esquecer meu pai, esquecer William, Nicholas, Brie, Ace, a neve, o sol... Tudo. O mundo virou uma bola de vôlei, sendo arremessa de um lado para o outro sobre a rede, no meio da mais terrível tormenta.
O escuro me fez sentir-me tonto, abri os olhos, subitamente, esbarrando-me com a luz forte. Não lembro de tê-los fechado.
Posso ou não ter me sobressaltado.
Num momento de puro torpor, fixei meus olhos na luz azul que as lâmpadas fluorescentes, pende de maneira íngreme ao telhado, lançam na parede nua, atrás dos vazos pende em grandes pregos aparentes. Mais uma vez, estava ponderando sobre quão bonito é o fato de flores e hortaliças estarem nascendo e crescendo enquanto tudo parece morto atrás daquela mesma parede. As portas da estufa – grandes, pesadas e fortes, feitas de uma madeira a qual não consigo identificar, ornamentadas com finas tiras de ferro – sofreram alguns curtos solavancos para provar que meus pensamentos estavam corretos.
Olhei para elas, para as portas, atentamente e depois pousei os olhos nas curtas paredes de vidro que protegem as plantas que estão sobre uma grande e baixa ilha central. Elas resistem ao meu entra e sai. Resistem ao frio entrando pelas brechas da porta, prendendo-se a luz com tamanha voracidade a ponto de o frio intermitente não causar-lhes danos.
Se eu pegasse ao menos uma dessas plantas ornamentais e a plantasse no chão coberto de neve, quanto tempo ela sobreviveria? Uma hora? Duas? Essa seria a eternidade dela. Ou apenas a vida que lhe foi corrompida.
Meu suspiro soou alto o baste para sobressair ao barulho do vento. Estiquei uma mão até o prato com a, agora, solitária fatia de bolo. Queria saber qual a fórmula para se tornar eterno e não necessariamente precisar estar vivo. Bem, primeiro eu precisaria fazer algo esplendoroso, depois seria preciso uma testemunha para relatar o ocorrido, então eu teria que morrer e esperar que meu feito entrasse para a História, isso se entrasse, e permanecesse nos livros didáticos ou em datas importantes. Eu seria apenas lembrado. E já seria o bastante para querer desistir do que quer que tenha feito.
Pegando migalhas do bolo de baunilha, contei mentalmente os segundos que demorei para levar a minúscula amostra de sabor à boca. Três segundos. Então senti o bolo se dissolver na língua, o gosto não pode ser posto em palavra alguma a não ser lembrança. Lembrar era a última coisa que eu queria neste momento, as lembranças do pequeno William ainda rodopiam em torvelinho na minha mente. Mas acabara de ser fuzilado por uma corrente de memórias, tristes, alegres... Incompreensíveis.
Primeiro, os olhos de Nicholas no primeiro instante em que o vi. Ele sabia exatamente o que eu era, diferente de mim. Nick me apontou sua casa – a única luz na primeira noite de inverno. As manchas das queimaduras do sol e o odor agridoce de carne queimada ainda ensopavam meu corpo. Nicholas não me odiara por manchar seu tapete, nem por ter esvaziado seu estoque de carne. Eu tinha fome e Nick, comida.
– Vai com calma Homem das Neves – disse ele, retirado os pequenos fragmentos de gelo grudados em meus cabelos. – Essa carne duraria duas semanas inteiras!
– Desculpe... – pousei os olhos nos tênis rasgados, esperando ver meus pés pelos buracos.
Quando não se pode viver na luz, nem a mercê da sociedade, tudo o que você tem é uma dose de miséria por dia.
– Tudo bem. Só não coma tudo o que vê pela frente, principalmente se esse tudo for eu.
Então ele me deixou comer o restante da carne e logo depois apresentou meu quarto, que, naquele momento, estava recheado de caixas cheias de livros.
– Não há cama, nem a necessidade de uma, mas, talvez, você queira se deitar... – ele pôs um dedo na sobrancelha, pensando. – Ora, daremos um jeito! Que tipo de vampiros seríamos se não conseguíssemos montar uma cama temporária?
Fizemos a cama com as caixas postas lado a lado e as forramos com vários e vários lençóis. Dois dias depois, Nicholas estava montando uma bonita e grande cama de cedro.
De súbito, fui levado para a floresta, décadas atrás, mas décadas a frente da lembrança anterior, quando Nicholas me apresentou a um outro vampiro e teve que mentir – foi a coisa mais hilaria que ele já fizera:
– O que vocês estão fazendo aqui, perto dos humanos, quando poderiam estar bebendo deles? – perguntou o vampiro que disse se chamar Calígula, erguendo mais uma de suas sobrancelhas fartas e mostrando-nos presas afiadas num sorriso torto.
– Estamos esperando, óbvio. Não somos burros a ponto de atacar humanos enquanto outros podem nos ver e nos atirar alho pelas costas. Para seu governo, humanos podem ser cruéis quando atacamos sua prole, rapazinho. E que tipo de monstro gosta de ser bombardeado por dentes de alho flamejantes? – Nicholas imitava explosões com as mãos e negava o tempo todo com a cabeça, enquanto eu reprimia meus risos. – Vai me dizer que você gosta de alho? Eca! Se me disser que usa crucifixos de prata serei obrigado a te denunciar! Que tipo de suicida é você? – Nicholas se virava para não sorrir na cara de Calígula. Então voltava a olhá-lo e fazia a maior cara de nojo.
O pobre Calígula achou que éramos loucos e apenas bufou antes de voltar para onde não deveria ter saído.
Nicholas e eu rimos durante o que pensávamos se tratar de séculos ou milênios. Sempre comentando Viu a cara dele? Que cara idiota! Você o pegou, Nick. Você é hilariante.
Como as lembranças anteriores, os ombros tensos de Brie entraram em minha mente e bagunçaram a paz que eu sentia. Sua face doce transmitiu aquela mesma benevolência embasbacada que ela sempre carregou, atiçando o cheiro das flores na minha primavera falsa e enlatada. A melancolia manchou meus olhos, mais uma vez, e eu a deixei transbordar, até não conseguir fazer outra coisa que não fosse lamentar.
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