Capítulo 2
A faca abriu uma lacuna fina e irregular em meu antebraço, não me importei. Afundei um pouco mais a lâmina, saboreando a pequena fragmentação de dor que nascia no local, observando o estreito rio vermelho e frio deixar meu corpo e serpentear até a madeira velha, revestida por uma fina camada de neve.
O talho logo se refez: linhas finas, como teias, se uniram, recriando a velha pele morta.
- O que está fazendo? - Nicholas agarrou meu pequeno punhal e o balançou no ar para limpá-lo. - Você está louco? - sua voz de barítono ecoava no silêncio, tornando-o uma versão pouco menos assustadora do vilão de um filme.
Dei de ombros, alinhando-me um pouco mais à parede fria da velha cabana. Uni os joelhos e os pressionei contra o peito.
- Não - protestei, envolvendo-me um pouco mais -, a dor é boa, faz com que eu me sinta humano. Vivo! E não esse... Esse monstro - concluí, observando o local onde ainda deveria existir uma quantidade absurda de sangue.
Xingo baixo. Exausto. Frustrado.
O sangue que fragmenta o chão não é meu, saiu de mim, mas não é meu.
- Lamentável, Ace, la-men-tá-vel! - soletrou a palavra dando tempo de meio segundo para cada sílaba. Nicholas se sentou ao meu lado, observando a lâmina entre seus dedos e intercalando o olhar entre a neve manchada sob seus pés e meu rosto curvado para trás. - Já se passaram mais de um século e meio e você ainda não entende que não pode mudar isso?
Balancei a cabeça: nem negativa, nem positivamente.
Nicholas arfou profundamente, ponderando sobre meu movimento. Chutou a bruma para cobrir a mancha vermelha que eu deixara.
- Ora, rapaz, você precisa entender que é um vampiro agora - gesticulou para meu braço. - Não há como voltar atrás. Não há como retirar isso...
Apertei os olhos e pressionei a testa contra os joelhos. O silêncio não me disse nada.
Por mais que eu saiba que tudo o que Nick diz é verdade, prefiro fingir que a ciência evoluiu e pode tirar essa toxina do meu sangue, ou que um padre contém segredos em sua Bíblia que podem expulsar os demônios da minha alma. Que posso morrer - outra vez - e então ressuscitar humano, como eu costumava ser, com um sangue quente e meu, correndo em veias coloridas, com alma...
- Você não tem alma - cortou-me Nicholas, lendo minha mente.
Abri os olhos e ergui a cabeça ao ponto em que o rosto de Nicholas me fosse completamente visível.
- Você está morto - continuou, riscando a fachada com a ponta do punhal - como eu, como qualquer um de nós.
- Tentarei encontrar uma - seguro seu olhar por um segundo antes de ergue-me, em um pulo, acelerando meus passos, correndo para dentro da floresta.
Não há almas vagando por aí para que você possa simplesmente se apossar de uma - Nicholas continua em minha mente.
- Então eu invento uma - sorri, pulando uma rocha de quase três metros e caindo perfeitamente em pé, metros mais ao longe.
Já te disseram que você sonha alto de mais? - quase posso vê-lo sorrir. - Pois é verdade.
- Sai da minha mente! - infiltrei-me na mata escura, fazendo os poucos pássaros que não migraram, empoleirados em seus galhos altos, voarem espantados e os pequenos esquilos que procuravam suas nozes, para sobreviverem o resto do inverno, voltarem aos pulos para as árvores, causando um barulho imenso na paz noturna.
Câmbio. Desligo - Nick brincou, e, por seu silêncio tão avassalador, concluí que ele realmente não está mais aqui.
Nicholas vem sendo como um pai para mim há muitas décadas. Ele é um dos poucos vampiros, com quem esbarrei, que não perseguem humanos a procura de sangue ou um novo exército. Ele só não entende que, as vezes, eu preciso quebrar a cara por mim mesmo. Descobrir quem sou, ou como posso parar tudo isso, mesmo que venha a me arrepender no fim de tudo.
Pulei sobre uma fissura na terra, acompanhando o ritmo rápido do vento intermitente. Quando a massa branca pontilhada por diminutas luzinhas surgiu no horizonte, apressei-me até que as casas se tornassem visíveis.
Por fim, a cidade, banhada por camadas e mais camadas de neve, como chantilly sobre o sorvete de chocolate, se tornou próxima de mais para andar como um flash, então fiz meu ritmo ficar suave, lento, humano.
Me aproximei.
O latido de um cachorro aguçou meus sentidos, andei um pouco mais. Lá está, um garotinho jogando bola para um cachorro de pelo felpudo. O garoto caiu, sorrindo como a criança que é.
Sim, sinto inveja daqueles movimentos lentos e naturais, sinto falta de quando eu era apenas aquilo, uma criança, brincando na neve. Foi minha vez de rir, enfiando as mãos nos bolsos da frente do meu jeans.
- Para, Tesse, para! - o garoto empunhava seu pequeno galho, balançando-o para um lado e para o outro, tentando fazer o cão sair de cima dele. - Vai pegar! - ele gritou, lançando o galho para longe, aproveitando o afastamento da cadela para se manter de pé.
Invés de correr a procura do galho, o cão veio em minha direção. Latidos altos. Rabo abanando, alegremente.
- Olá - eu disse, pegando o pequeno animal de modo desajeitado.
Tesse latiu em resposta.
- Tesse! - o garoto chamou, olhando para os lados, gritando o nome da pequena cachorrinha.
Andei até o ponto em que as árvores não fossem mais minha camuflagem, levando o animal para seu dono.
- Oh, você está aí! - o garoto andou até mim, trepidante, arrastando suas botas na neve. O cheiro doce do seu sangue encheu meu corpo com uma descarga elétrica de algumas dezenas de volts. Tremi.
Fechei os olhos profundamente, controlando-me, tentando manter a aparência o mais humano possível, tentando continuar com meus olhos escuros, não vermelhos, escuros.
- Cuidado... - o garoto disse, apressando-se. Impulsivo, dei um passo para trás.
Mas o garoto não estava falando de mim - obviamente não devo parecer, em nada, um demônio sanguinário.
- ...ela é brava -- continuou, me forçando a agachar.
O garoto passou os braços ao redor da cachorrinha, enquanto eu tentava fazê-lo não me tocar, e a segurou firme levando-a para longe de mim.
-- Não lhe disse para não importunar os vizinhos, Tesse! Que parte do acordo você não entendeu? Quer ficar sem ração? - parecia que a qualquer momento aquela criaturinha iria falar alguma besteira.
- Isso seria maldade, não?
- O que? - perguntou o garoto, deixando Tesse correr para dentro de casa.
- Deixar a pobrezinha sem comida seria muita maldade! - assegurei, erguendo-me e limpando os tornozelos, onde a neve tinha pintado de branco.
O menino deu de ombros.
- Não, claro que não. Se eu continuar sendo bonzinho, como você, ela nunca vai aprender o que é certo e o que é errado. Brie me ensinou a ser mais... - ele pôs o dedo indicador no queixo e bateu algumas vezes, olhando para cima, para além de mim. - Sev...? Severo? Severo! É essa a palavra que ela me ensinou - deu pulos de satisfação ao recordar a palavra. - Ela disse que se eu quero ser a... Autoridade... Preciso agir como uma!
- Ah, a Brie está certa - olhei para a porta entreaberta da casa do garoto, esperando que em algum momento outra criança saísse saltitante. Iria ser mais difícil de me controlar com todo aquele sangue correndo, pulsando em tantas velas, como não estou habituado a ter humanos tão próximo. Aliás, isso só me fará sentir mais desgosto sobre o rumo que minha vida tomou. - Você precisa ser um líder durão e inteligente!
O garoto me olhou como se tivesse descoberto outra palavra estranha a qual ele não podia pronúnciar, pois não a conhecia.
- Isso mesmo. Um líder!
- Você é o líder da alcatéia, então Tesse precisa ouvir e seguir suas ordens - minha voz soou em tom firme, como se eu fosse um pai, ou o próprio líder de um bando.
- O que é... Alca... Alcatéia?
- Alcatéia é como chamamos o cole... - talvez ele não saiba o que coletivo quer dizer, e isso me renderá mais explicações - os grupos de lobos.
- Alca...téia. Eu gostei - ele pensou um pouco. - Obrigado...?
- Ace.
- Obrigado, Ace. Quero ver a cara da Brie quando eu falar a ela que sou o líder de uma alcatéia, e Tesse é meu braço direito!
Ele correu de volta para casa, aos pulos, deixando marcas na neve com suas galochas azuis.
- Tchau, Ace - ouvi o garoto gritar.
Recolhendo novamente minhas mãos aos bolsos do casaco, andei um pouco mais "humanamente" e pude me deixar sorri, observando o quão bom estou ficando nisso - em ignorar a sede. Só preciso de um pouco mais de tempo, e, talvez, eu possa ignorar até mesmo o tão perverso sol. Talvez.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro