Capítulo Um
Oito anos após o massacre
Uma garotinha corria desesperada por uma mansão, sem ao menos saber para onde estava indo. Várias figuras apressadas a empurravam para fora do caminho, impedindo que a criança saísse do lugar. No meio de todo aquele caos, um chamado familiar chamou a atenção de Liza; sua mãe. Ela se virou apenas para ver uma silhueta ao lado do corpo de Louise, o qual se encontrava estirado no chão. Sobre este estava o de seu pai, rodeado pelas figuras imóveis e ensanguentadas de seus irmãos.
Antes que Liza pudesse abrir a boca para gritar, a figura apontou uma arma para ela e pressionou o gatilho.
Liza abriu os olhos repentinamente, levando alguns segundos para focar as imagens a sua volta. A visão do teto branco do quarto acalmou sua respiração acelerada, e com os braços trêmulos ela apoiou os cotovelos na cama. Um beliche gasto de madeira, diversos pôsteres de bandas alternativas pregados pelas paredes. Tomando consciência de que estava no dormitório da faculdade, a jovem suspirou audivelmente e se levantou, se direcionando ao banheiro.
Ela não se surpreendeu ao sentir uma coisa peluda e fofinha se esfregar em suas pernas enquanto escovava os dentes. Amon-Rá, como a maioria dos gatos, tinha aquela estranha mania de seguir os humanos quando eles iam ao banheiro. Provavelmente era o gato mais peludo que Liza já vira, e as meninas com quem ela dividia o apartamento viviam dizendo que ele era de raça, mas ele havia sido encontrado na rua.
A pelagem marrom e preta brilhante era bonita e sedosa, mas o impressionante delineado preto natural em volta dos olhos do felino foi o que originou seu nome. Liza era uma grande fã do panteão egípcio, então já era de se esperar que o gato acabasse com um nome assim.
Amon-Rá miava sem parar, o que significava que ele queria atenção ou estava com fome. Liza apostou na segunda opção e andou até a cozinha atrás da ração. Danielle, que estava acabando de coar o café, sorriu quando viu a colega de quarto se aproximar. Liza não entendia como ela conseguia ficar tão animada de manhã.
"Está procurando a ração?" Liza ouviu a voz da jovem mulher após desperdiçar dois minutos vasculhando os armários. "A Amanda ficou enchendo a tigela do Amon sem parar ontem e acabou com ela."
"Comprei um monte ainda essa semana, desse jeito você vai ficar gordo." Liza pegou o felino no colo e o aninhou, fazendo este ronronar folgadamente. "Então eu vou lá comprar. Fala pra Amanda que ela vai ter que ajudar com o dinheiro da ração se continuar enchendo ele de comida."
Danielle assentiu, mas seu foco estava em seu precioso café. Liza então se direcionou para o quarto a fim de pegar sua mochila e o dinheiro. Ela mal havia aberto o zíper quando Amon-Rá se enfiou ali dentro como uma bolinha peluda. Animais não eram permitidos no dormitório da faculdade, então esse era um dos únicos meios de sair com o gato.
Após Liza negar o café mais de três vezes, Dan se cansou de oferecer e foi assistir TV na sala. Todo dia era a mesma coisa; moravam juntas havia quase seis meses e ainda assim a ideia de que ela detestava café não entrava na cabeça de Danielle. A jovem verificou sua mochila uma última vez antes de fechar a porta atrás de si.
O alojamento era pequeno, mas bem aconchegante, e pela primeira vez Liza se sentia feliz em dividi-lo com suas colegas de quarto. Danielle era energética e fanática por esportes, já Amanda gostava de arte, e todo mês mudava de a cor do cabelo. A única coisa que deixava Liza triste sobre morar com as duas jovens era o fato de que ela também queria entrar em um curso, mas não podia correr aquele risco.
Mas aquele não seria o único motivo no futuro, visto que várias fontes diziam que a instituição não vinha recebendo a devida verba há meses, e provavelmente ia acabar suspendendo todas as aulas.
O pequeno prédio tinha quatro andares, e nada em particular atraía a atenção para o local. Liza se direcionou para as escadas, descendo com cuidado enquanto esperava os sensores das luzes detectarem seus movimentos. O ronronar de Amon-Rá era um som calmo e aconchegante enquanto a jovem se direcionava até o térreo.
Apesar da boa relação com as suas colegas, Liza ainda tinha suas preocupações. Logo ela teria que inventar alguma desculpa nova para as meninas do porquê não iniciava a faculdade. Na primeira vez tinha alegado que os documentos não haviam sido devidamente processados e que teria que esperar até o próximo semestre para ingressar, mas este em breve chegaria e Liza não estaria na faculdade de psicologia, como havia prometido.
E também tinha a questão de seu dinheiro, cada vez mais próximo de acabar. A situação era tão preocupante que Liza estava até mesmo cogitando se arriscar e começar a trabalhar em algum comércio local, para variar. Amon-Rá soltou um miado baixo enquanto eles desciam as escadas, provavelmente um resmungo para a dona ir mais devagar. Diminuindo o passo, Liza empurrou a porta pesada e deixou o alojamento para trás.
Quando as meninas questionavam, Liza alegava que ficar em casa era a coisa que mais amava no mundo, a maior mentira de sua vida. Amava sair, conhecer novos lugares, novas pessoas. Mas o problema de conhecer novas pessoas eram as pessoas. Ela sabia que não podia confiar em ninguém, nem mesmo em Danielle e Amanda. As duas meninas não eram de perguntar sobre a sua vida pessoal, e a jovem era grata por aquilo; explicar que era uma fugitiva da máfia não estava em sua lista de atividades favoritas.
Já havia cogitado mudar a aparência mais de uma vez pintando o cabelo, mas se tinha uma coisa que havia aprendido com Amanda era que pintar o cabelo não era barato. Manter parecia pior ainda, então Liza preservou seu característico castanho escuro na esperança de que ninguém a notasse.
Liza ouviu o barulho animado dos pássaros antes mesmo de chegar na casa de animais, sentindo Amon-Rá se agitar dentro da bolsa. Quando a jovem abriu o zíper, o gato saiu da mochila e foi direto para os recipientes de ração. Ela sempre o trazia, já que todo mês ele parecia mudar o gosto e querer uma comida nova. Tarde demais, Liza percebeu que tinha criado um gato mimado.
"Qual será que ele quer hoje?"
O rapaz que sempre a atendia perguntou, e Liza notou que ele parecia estar nervoso por alguma razão. Seu nome era Nathan, e ele era sempre educado.
"Parece que a de peixes." Ela respondeu com um sorriso preguiçoso olhando o gato se esfregar no pacote da ração escolhida, já tirando o dinheiro do bolso. "A mais cara delas, por sinal."
Nathan sorriu e foi pegar o troco, deixando Liza sozinha na loja. Olhando em volta, a jovem franziu o cenho ao observar o comércio deserto naquele horário; não que não fosse comum, não com a economia do país decaindo cada vez mais, mas ainda assim aquilo a deixou tensa.
Após checar em seu relógio de pulso que havia se passado cinco minutos, Liza começou a estranhar. Seu coração acelerou e ela olhou em volta. A imagem de homens de preto aparecendo no meio da casa de ração a aterrorizou. Nathan reapareceu logo depois e pediu desculpas pela demora, alegando ter tido que atender uma emergência familiar. Liza assentiu e por pouco não sorriu de alívio. Membros da máfia em uma casa de animais, aquilo seria realmente estranho.
Após alguns segundos esperando Nathan entregar o saco de ração, Liza percebeu que ele queria dizer alguma coisa. Parecia nervoso, olhando para a saída a todo momento, fazendo Liza ficar tensa novamente. Amon-Rá, por outro lado, estava aproveitando a enrolação, comendo todas as rações que encontrava pelo chão.
Nathan pareceu finalmente reunir coragem para falar o que queria. "Escuta, você precisa sair..."
"Como assim?"
Liza tentou questionar, confusa, mas algo parecia ter feito o atendente perder a fala. O garoto recuou alguns passos lentamente, os olhos repletos de medo. Liza franziu o cenho achando aquilo tudo suspeito, mas foi nesse exato momento que a jovem ouviu uma voz grave e severa atrás de si.
"Ei, você."
Ela virou o rosto lentamente, o coração quase saindo do peito. Talvez tivesse mesmo uma razão para se preocupar, afinal. Roupas pretas, altura exageradamente grande. O desespero não deixava Liza absorver nada direito, mas ela notou o cabelo preto em contraste com os olhos azuis do homem. Era estranho, mas ela se acalmou um pouco ao olhar para eles, como se soubesse que ele não lhe faria mal.
Então ele decidiu abrir a boca. "Quer parar de me atrasar? Vamos logo."
A cara infeliz e o tom impaciente do estranho fizeram com que Liza fosse obrigada a desviar a atenção da pinta um tanto charmosa localizada na lateral esquerda do queixo do homem.
"Como é que é?"
Ao ouvir o tom da dona, Amon-Rá até mesmo parou de comer.
O homem claramente impaciente a encarou com irritação. Ele aparentava ser jovem, mas não deixava de parecer intimidante por isso. "Não consegue ouvir?"
"Escuta aqui, eu nem te conheço!" Liza rebateu, claramente irritada com a situação. "Não vou pra lugar nenhum com você."
"Cara, ela já disse que..."
Nathan gaguejou quando o homem o encarou. Liza não julgou, comparado ao desconhecido, ele era uma miniatura magra e esguia.
"Presta atenção," Liza começou, tentando ao máximo manter sua voz calma. "Eu nunca nem te vi. Não sei quem te criou, mas você não pode chegar em mulheres, aliás, em qualquer pessoa ditando coisas e agindo como se fosse..."
"Ah, puta que pariu."
No momento seguinte, o homem a pegou pelo braço e a levou para fora da loja. Ao ver aquilo, Amon-Rá escalou as gaiolas dos pássaros e entrou novamente na mochila nas costas da dona. Liza tropeçava e se debatia, não acreditando na situação. Por que Nathan continuava parado ali, sem fazer nada? O aperto não estava forte ao ponto de doer, mas apertado o bastante de modo que ela não conseguia se soltar.
"Se você não me largar agora, eu juro por tudo que eu vou gritar tão alto que..."
"Quer parar?" Ele a interrompeu, sua voz inalterada. "A gente tem que sair daqui agora. Ele está vindo."
A jovem literalmente paralisou, facilitando o trabalho do homem de a arrastar. Ele não havia citado nomes, porém Liza só conseguia pensar em um: Jasi, o líder dos líderes da máfia, com mais dinheiro do que podia contar e que parecia nunca estar satisfeito com a quantia. O homem que matara seus pais.
Jasiel Endo Hyeon era o dono da Alpha, a corporação mais rica e poderosa do país. A fachada de empresa nada mais era do que um belo disfarce para acobertar todos os crimes horrendos que o homem cometia, que não eram poucos. Com diversos aliados, inclusive o próprio governo, ele era imbatível. Tendo controle dos impostos, dados e do exército, não era surpresa que o homem tinha o total controle da população.
Com o aumento da violência policial com o passar dos anos, as pessoas passaram a evitar sair nas ruas. Os impostos subiam cada vez mais, causando a falência de empresas e o inevitável desemprego. Após a abolição do auxílio médico gratuito, o destino de quem contraía uma doença grave era uma morte lenta e dolorosa, sem qualquer condição de arcar com o serviço médico caro que só a Alpha provia. A taxa de escolaridade caiu consideravelmente após as escolas e faculdades públicas deixarem de existir. Tudo se tornou pago, e caro.
A realidade para os aliados da Alpha, porém, era outra; ela oferecia descontos e benefícios para quem aceitasse seu termo de condições. Entre as cláusulas, a garantia de que a aliança seria eterna enquanto as duas partes existissem se destacava, junto da cobrança de cinquenta e cinco por cento do lucro mensal do suposto aliado. Com o passar do tempo, várias empresas se sentiram tentadas a se aliarem com a corporação, até mesmo as pequenas. Algumas delas se mesclaram para poderem arcar com as despesas e usufruir dos benefícios, antes gratuitos e um tanto desvalorizados.
Vendo que era mais seguro juntar o lucro para pagar os impostos da Alpha, os empresários se juntaram a fim de formarem clãs, que nada mais eram do que grupos que queriam garantir a saúde, o bem-estar e o diploma de seus familiares. E assim, Jasiel conseguiu aumentar mais ainda o sistema que alimentava o monopólio da família Hyeon, que já existia há muito tempo.
Liza recobrou os sentidos ao saírem do estabelecimento e mais uma vez tentou se soltar, falhando miseravelmente. O homem a encarou com o mesmo olhar de antes, mas incrivelmente a jovem não se intimidou.
"Quer me largar? Caso não tenha notado, não sou uma criança."
Quando o desconhecido diminuiu o passo e soltou seu braço, Liza se surpreendeu. "Vamos logo, estou estacionado na rua de trás."
Enquanto o seguia, Liza se perguntou como o homem sabia sobre Jasiel. Não que ele não fosse conhecido, muito pelo contrário, mas aquele homem falara dele em um tom diferente, como se soubesse o que ele fazia por trás das câmeras. Como se o odiasse.
"Tem uns caras no fim da rua, do outro lado, esperando você passar por lá. Vê se anda mais rápido."
Liza estava praticamente correndo para alcançar ele naquele ritmo. "Como você conhece o Jasiel?" O homem não parou, pelo contrário, acelerou o passo. "Quem é você? Não pense que eu vou entrar em um carro de qualquer um, eu só vim até aqui porque você falou do Jasi e..."
"Filhos da puta."
O homem xingou ao avistar algo que Liza não conseguiu ver o que era, mas mal teve tempo de pensar sobre quando o desconhecido a segurou novamente e saiu correndo pelos carros. Enquanto era praticamente arrastada, Liza avistou o que deixara ele tão alarmado: dois homens de preto vinham correndo em sua direção com as mãos escondidas no casaco, muito provavelmente segurando armas.
Liza não percebeu que tinham chegado até as portas de um trailer imenso se abrirem e o estranho a empurrar para dentro, as fechando em seguida. Antes que a jovem pudesse entender o que estava acontecendo, o homem entrou no veículo e ocupou o lugar do motorista, acelerando logo em seguida. Elizabeth se encolheu ao ouvir o barulho de disparos e de pessoas gritando ao lado de fora, abraçando seus joelhos instintivamente.
Após longos minutos, Liza notou que estavam em uma estrada mais calma, que mais parecia um atalho para fora da cidade. Ela ainda estava no chão, se sentia enjoada com toda aquela movimentação e desconfiava que só não tinha vomitado porque não tivera tempo de tomar o café da manhã. Foi aí que ouviu passos, e vozes, uma atrás da outra. Mas eram vozes infantis. Liza levantou o olhar do chão, avistando uma, duas, não, três crianças e um bebê.
"Nossa, ela tá igualzinha na foto, né?" Falou uma delas, um menino que se parecia muito com o homem, e que até mesmo tinha uma pinta negra localizada no canto esquerdo do queixo. Com toda a certeza eles eram parentes.
Um outro garoto ao lado dele a fitou. Era um pouco mais baixo, mas não se parecia em nada com o estranho. "Sim, mas me parece meio pálida."
Uma garotinha loira que aparentava ser mais nova se aproximou para observar, parecendo curiosa enquanto segurava o bebê, que não parecia ter mais de um ano.
"Ei Kyle, você lembrou de comprar o cereal?"
Notando que o homem tinha voltado de mãos vazias, o pequeno clone pareceu ficar chateado. Ao ver que Elizabeth carregava uma mochila, porém, seus olhos azuis brilharam.
"Lucca, não é educado mexer nas coisas dos outros." O garoto mais baixo tentou argumentar, em vão.
Mas Lucca não hesitou em bisbilhotar a bolsa aberta de Liza, que estava atordoada demais para se mover. Quando o menino viu o que tinha dentro, seus olhos se arregalaram em surpresa e ele tirou um Amon-Rá estressado de dentro da mochila.
"Eita, olha só! Um gato!"
Isso fez Kyle tirar os olhos da estrada. O homem olhou primeiro para o gato, depois para Liza no chão, e em seguida para o felino novamente, uma expressão de desgosto imensa estava estampada em seu rosto. "De onde esse negócio surgiu?"
Recebendo o olhar de todas as pessoas presentes ali, Liza apenas cobriu o rosto com as mãos e praguejou, se perguntando se a vida como prisioneira de mafiosos assassinos era menos estressante do que aquela.
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[2800 palavras]
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