Capítulo Sete
"Se eu soubesse que ia ter que comer isso todo dia, tinha me contentado com a pobreza." Lucas murmurou enquanto encarava seu prato cheio de legumes.
Graças a Liza e sua palestra sobre a alimentação infantil, eles haviam adotado um cardápio saudável. As crianças não pareciam muito contentes por abandonarem as frituras, mas não se opuseram. Lucas era o único que vinha reclamando da comida pelos últimos três dias.
"Eu nem sou criança, por que tenho que comer essas coisas?"
"Você tem que dar o exemplo." Liza rebateu enquanto dirigia. A verdade era que nem ela gostava daquele tipo de comida, mas queria ser uma boa influência para as crianças.
O jovem estava prestes a iniciar outra sessão de reclamações, mas fechou a boca quando notou um olhar gélido lançado em sua direção; Kyle estava sentado no sofá, dando papinha para Thomas, com Amon-Rá logo ao lado. Os dois pareciam ter entrado em algum tipo de trégua em favor de um inimigo em comum: Lucas.
"Falta muito pra gente chegar?" Lucca perguntou com uma careta enquanto comia seu frango não frito e algumas verduras.
"Não vai demorar, talvez uns três dias." Liza respondeu de olho na estrada, notando algo estranho no movimento. "O que é aquilo ali na frente?"
"Parece que estão interditando a pista." Kyle disse indo se sentar no banco do passageiro ao mesmo tempo em que Liza mudava para uma faixa com mais carros para ganhar tempo. "Enzo, dá uma verificada."
Lorenzo pediu educadamente o celular para Lucas, os dedos trabalhando em uma velocidade razoável para quem não mexia com aquele tipo de tecnologia. O menino em si só já era esperto, mas com acesso à internet virava uma verdadeira enciclopédia.
"É a polícia, estão à procura de fugitivos." Lorenzo continuou pesquisando. "Mas não há nomes nem fotografias. Provavelmente estão cientes de que os foragidos vão trilhar por esse caminho e criaram essa estratagema."
"Por que a polícia tá atrás da gente também?" Lucca perguntou dando uma colherada de papinha para Thomas, depois mordeu o lábio inferior com preocupação. "Será que foi porque eu peguei a ração do gato aquele dia na feira?"
Lucas olhou para as crianças, depois para os adultos. Provavelmente havia pensado que as crianças tinham noção de quem era Jasiel, e que este controlava todas as figuras de autoridade daquele país, mas aquele não parecia ser o caso.
"Bom, não podemos passar por lá." Liza murmurou, também fitando Kyle por um momento. "Enzo, tem alguma rota alternativa?"
Lorenzo focou a atenção no aparelho novamente, depois o inclinou na direção de Liza. "Existe uma estrada rural aqui perto, o destino vai ser o mesmo, mas a rota é mais longa."
"Obrigada." Liza agradeceu o garoto, procurando por um retorno logo em seguida. "Vamos por esse caminho, é melhor do que arriscar."
Kyle suspirou com uma leve irritação. "Bom, esse dia não pode ficar melhor."
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"Toda vez que você é irônico, uma desgraça acontece." Liza concluiu ouvindo os resmungos do motor que indicavam que o veículo estava sem gasolina.
O homem encarou a estrada deserta de terra em que eles se encontravam, sua expressão claramente incomodada. "Ironia é alguém dirigir e não prestar atenção na gasolina."
"Pensei que você estava prestando!"
"Se eu estivesse dirigindo, isso não teria acontecido." Lucas murmurou em um tom convencido enquanto mexia no celular.
"Só eu dirijo." Kyle resmungou, depois indicou Elizabeth sem a olhar. "E ela."
E era verdade. A mão de Kyle já estava bem melhor, mas ainda assim Liza permanecera no volante. Ela não entendia o porquê, já que o homem parecia gostar de dirigir seu trailer em paz, mas ele não havia dito nada a respeito de ter sarado, ficando em silêncio no banco do passageiro enquanto ouvia as músicas estranhas que Liza achava nas estações de rádio.
"Tem uma casa aqui perto, a gente podia tentar encontrar alguma gasolina."
A fala de Lucas atraiu a atenção de todos para uma casa que não estava longe. Era uma espécie de chalé feito de madeira, e parecia que ninguém ia ali há um bom tempo. Havia uma placa do mesmo material pendurada na porta, dizendo que o local se tratava de uma pousada. Vendo a situação em que a construção se encontrava, a jovem duvidou que alguém ainda estivesse morando ali. Após rodear a casa, Liza não encontrou nada além de galões cheios de água suja.
"Pode ter até algo lá dentro, mas as janelas e as portas estão trancadas." Liza falou enquanto aninhava Thomas em seu colo. O bebê estava sonolento após o almoço.
Um chute de Kyle foi o suficiente para que a fechadura gasta cedesse, e então ele entrou na cabana. Liza ergueu as sobrancelhas enquanto Lucca colocava um Amon-Rá preguiçoso no chão.
A sujeira foi a primeira coisa que Liza notou ao entrar na casa. O primeiro cômodo era uma cozinha empoeirada. Logo depois havia uma sala grande de tamanho mediano. No andar de cima havia alguns quartos simples, e no fundo um banheiro. Não existiam fotos nem decorações na casa, apenas móveis gastos de madeira.
Liza abriu um dos armários em busca de gasolina. Era comum pessoas terem reservas do combustível em casa nas áreas rurais, mas não acharam nada no térreo. No segundo andar, vasculharam os quartos empoeirados e abriram as janelas para o ar ventilar. Quando estavam certos de que não encontrariam nada, Lucas os chamou no banheiro.
"Você achou?" Liza perguntou, chegando lá com Kyle e as crianças um segundo depois.
"O quê? Ah, não. Mas olha!" Lucas ligou a torneira e observou maravilhado a água caindo na banheira e o vapor subindo. "Tem água quente!"
Kyle fungou com ódio, estava espirrando devido à poeira fazia um tempo. Ele espirrava com tudo, notara Liza, até mesmo com os pelos de Amon-Rá. Lucca tinha os mesmos sintomas, porém mais leves.
"Nunca viu água quente?"
"Não desde que eu pisei o pé no seu trailer." Reclamou Lucas. "Qual a dificuldade de instalar um chuveiro elétrico lá? Não aguento mais tomar banho frio."
"Um chuveiro elétrico ia exercer muito da reserva de energia, ia acabar rápido demais." Lorenzo explicou.
Kyle concordou com um resmungo. "Já não basta você carregar esse maldito celular a cada meia hora. As reservas que sempre duram um mês estão quase na metade."
Lucas ignorou o comentário, feliz com sua nova descoberta. Ao ver que a casa ainda tinha encanação, Kyle disse que eles poderiam ficar ali enquanto não achavam combustível para o trailer. Lorenzo dividiu as tarefas, e eles passaram a tarde inteira limpando a velha cabana. Ao anoitecer, todos fizeram bom proveito da água quente para tomarem banho, principalmente Lucas. Após trocar de roupa, Liza desceu para a cozinha, seu cabelo ainda molhado do banho.
"Então, você também cozinha."
Liza não se impressionou ao ver Lorenzo preparando o jantar. Ele vinha ajudando com as refeições no trailer, mas eles não faziam muito além de cortar ou ferver legumes. Kyle ainda comprava frango de vez em quando, mas assado. A jovem viu aquilo como uma grande evolução.
"Apenas coisas básicas, mas se eu olhar a receita consigo preparar refeições mais complexas." Disse Lorenzo ao mesmo tempo em que provava suamistura.
"Coisas básicas..." Repetiu Liza enquanto assistia o menino preparar um molho que não parecia nada simples. Passou o olho pela cozinha, observando o local. "Meu pai cozinhava muito bem, sabe."
Lorenzo virou o rosto para ela com um brilho nos olhos, parecia se interessar pelas histórias da família de Liza. "Mesmo?"
"Ah, sim. E a gente até tinha alguém para cozinhar, porque meus pais eram bem ocupados, mas ele insistia em cozinhar o jantar quase toda noite."
"Tipo um empregado?"
Liza riu baixo. "Tipo um amigo, ele era um membro da família."
Lembrar de Oliver acabou deixando Liza cabisbaixa. Passara anos sem ouvir sobre ele desde o episódio na mansão, e sempre se perguntava se ele ainda estava vivo. O corpo do homem não havia sido encontrado, mas aquilo não significava que ele estava vivo. Naquele mundo, Elizabeth tinha aprendido a sempre esperar pelo pior.
Ao notar a mudança no humor de Liza, Lorenzo tentou mudar de assunto. Ele observou o ambiente, agora limpo, depois olhou para os ingredientes que eles tinham buscado no trailer.
"Pode me ajudar?"
A jovem piscou quando Lorenzo lhe estendeu uma faca, mas logo focou a atenção em cortar alguns temperos. Não tinha muita afinidade com a culinária, mas teve que admitir que a atividade era um tanto terapêutica.
"Seu pai gostava de alguma culinária específica?"
"Ele cozinhava de tudo, mas sempre preparava alguns pratos coreanos só pra agradar minha mãe." Liza falou em um tom melancólico, notando que Lorenzo sorriu levemente ao ouvir aquilo. "E você? Quem te ensinou a cozinhar? Seus pais?"
Lorenzo parou de sorrir, suspirando e voltando a mexer o molho. "Eu cozinho desde pequeno. Morava com meu pai, mas ele nunca parava em casa, então..."
Pelas contas de Liza, o garoto cozinhava desde muito novo. Ela não acreditaria na história se o garotinho ali na sua frente não fosse Lorenzo. Observou de cima os belos cachos castanhos, a expressão concentrada que ele tinha enquanto preparava a refeição.
"E a sua mãe?"
"Ela saiu de casa quando eu era bem pequeno, não me lembro com exatidão." Lorenzo respondeu ao misturar os temperos que Liza tinha cortado com o conteúdo na panela. "E então eu fiquei com meu pai."
"Onde ele está?"
Lorenzo não parecia incomodado em responder as perguntas de Liza. "Provavelmente ainda mora no mesmo lugar. Nunca tivemos muito dinheiro, então acho improvável ele ter se mudado."
Liza começou a cortar uma cenoura em fatias, mas se questionava como Lorenzo havia ido parar naquele trailer tendo uma família. Achava incomum que o pai do menino tivesse apenas entregado ele para Kyle, que não se parecia em nada com uma babá.
Uma das primeiras coisas que Liza havia reparado em Lorenzo quando o conheceu foi o fato de que ele parecer ser uma versão pequena de um adulto, e apesar de aquilo parecer fofo em algumas ocasiões, não deixava de ser triste; em um mundo ideal, crianças deveriam ser e agir como crianças, mas aquela realidade estava longe de ser qualquer coisa além de cruel.
"Ainda tem contato com ele?" Quando o garoto negou com a cabeça, Liza franziu o cenho. "Ele deve sentir sua falta."
O garoto hesitou por um momento. "Não sei dizer, mas acredito que não."
Notando que não era a única que ficava triste quando o assunto era família e passado, Liza suspirou e voltou a fatiar a cenoura. A cozinha ficou silenciosa, mas aquele não era um silêncio incômodo. Sorrindo sem perceber, Elizabeth notou que a companhia de Lorenzo a lembrava da presença de Benjamin.
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Minutos depois, o jantar estava pronto. Lorenzo tinha achado um macarrão que não estava vencido em um dos armários, e serviu a massa com o molho de antes, junto de alguns legumes refogados. Fazia tempo que Liza não comia algo tão gostoso, e ela elogiou o menino diversas vezes. Até mesmo Lucas, com todos os seus gostos refinados, fez uma expressão satisfeita ao comer.
Quando tudo já estava escuro, Kyle decidiu que iria buscar gasolina na cidade. Era uma caminhada longa, então as crianças ficariam na cabana com Liza. Como o homem ainda desconfiava de Lucas e de seu envolvimento com Jasiel, obrigou ele a ir junto. Antes de sair, porém, ele puxou Elizabeth em um canto.
"Não vou demorar, mas algo pode acontecer." Kyle pegou um embrulho de pano negro e estendeu para ela. Liza já sabia o que era, mas tirou o tecido e encarou o objeto mesmo assim. "Já está carregada. Vou te ensinar a..."
"Eu já sei." Elizabeth falou com determinação, surpreendendo Kyle. Os dois ficaram em silêncio, apenas observando a arma nas mãos da jovem. Depois de um tempo, Liza o fitou. "Você deveria levar uma também. O exército de Jasiel deve estar pelas ruas."
Kyle apenas levantou parte de sua blusa preta de mangas longas, mostrando que carregava outra pistola em sua cintura. Liza, por outro lado, se concentrou na pele da região, inibida de qualquer bronze. Depois se xingou mentalmente. Por que estava agindo assim?
"Certo." Liza falou, torcendo para a face não estar corada quando ela a ergueu. "Toma cuidado. Com o Lucas também. Quer dizer, tome conta dele, mas também tome cuidado com ele."
Ao se atrapalhar com a frase, Liza negou com a cabeça; Lucas era realmente um caso complicado, senão perdido.
"Vou tomar." Kyle respondeu em um tom que quase soava divertido, a fitando. "Você também, se cuida."
Liza não sabia dizer o que aqueles olhares profundos que ambos trocavam significavam, mas eles vinham acontecendo com cada vez mais frequência. Era como se ela não conseguisse desviar a atenção daqueles olhos que aparentavam não ter vida, mas ao mesmo tempo pareciam intensos demais.
Focando o olhar na pequena mancha localizada no queixo do homem, Liza se perguntou se era normal decorar todos os traços no rosto de alguém, se era normal o coração bater com toda aquela velocidade toda vez que eles estavam próximos.
"Então, eu já vou." Kyle disse minutos depois. Sua expressão era indecifrável.
A jovem colocou uma mecha de cabelo atrás da orelha e abaixou o rosto, desconcertada. "Ah, tudo bem. Boa sorte"
Kyle andou até a porta, depois se virou como se quisesse falar alguma coisa para ela, mas no final apenas saiu. Liza suspirou e foi para a entrada do velho chalé observar o homem alto e seu irmão se afastarem da casa. Encostada em uma pilastra, ela sentiu a presença de mais alguém lá fora, mesmo quando as duas figuras masculinas e conhecidas sumiram em meio às árvores.
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[2300 palavras]
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