VII - H a n n a
Não tenho nenhuma prática nisso e sou um desastre. Ele não parece nada com o Nate calado e invisível da sala de aula. Há algo brilhante que aparece em seu olhar e em seu sorriso sincero.
Eu tento, sem sucesso, empilhar os livros de maneira organizada, mas eles não param de cair.
Bebo o chocolate quente que ele preparou num gole rápido, desejando que a bebida me dê forças para ganhar esse desafio idiota no qual me meti. Estou pronta para contar meus segredos? Não, acho que ninguém nunca está preparado para se mostrar vulnerável para alguém, ainda mais um estranho. Ou quase estranho...
A bebida é adocicada e quase queima minha língua. É uma ironia do destino ele ter feito o chocolate quente para mim sem saber que todos os Natais eu tomo um copo como esse aqui nessa biblioteca?
Quem duvida que o destino esteja pregando uma peça em mim? Outra peça de azar na minha vida.
O cronômetro finaliza a contagem com um barulho agudo. Eu suspiro, irritada com o resultado da minha árvore. Planejei mal a colocação dos livros e há muitas irregularidades. Os livros pequenos da base ameaçam o equilíbrio da minha árvore.
Pelo menos meu querido Orgulho e Preconceito está no topo. É uma edição linda, de capa dura e colorida. Já li tantas vezes a mesma história e, mesmo assim, continuo completamente apaixonada pela escrita da Jane Austen. Não só pela escrita, claro... Mr. Darcy que o diga. Quer dizer, me acho mais parecida com ele do que com a Elizabeth.
Ergo o queixo e, fingindo não saber que perderei, encaro a árvore dele.
Está bem mais alta do que a minha. Vejo livros empilhados de maneira organizada, simétrica, formando uma árvore de Natal. Não escondo minha frustração.
Minha mãe dizia que eu era um livro aberto, pois tudo o que eu sinto está estampado em meu rosto.
━Obviamente eu venci, Nate diz, de maneira convencida.
Sento-me na poltrona novamente, sentindo-me derrotada e humilhada. Azar natalino.
━Orgulho e Preconceito, ele analisa meus livros e pega o primeiro. Abre-o na primeira página e lê: "É uma verdade universalmente reconhecida que um homem rico e solteiro precisa de uma esposa."
A voz dele soa grave e potente. Quase rio com seu tom forçado de narrador.
Nate pega o primeiro livro da própria árvore, abre e lê a primeira frase.
━"O doutor Darwin e alguns fisiologistas alemães têm dado a entender que o fato sobre o qual se fundamenta esta ficção não é impossível de acontecer. " Se isso fosse uma competição para decidirmos qual a melhor frase de início, acho que eu também ganharia.
━Achei entediante o início de Frankenstein, digo com desinteresse.
Nate se empertiga e vejo incredulidade em seu olhar. Ele inclina-se, com as sobrancelhas quase unidas e murmura, num tom sério:
━Só o início ou o resto também?
Dou uma risada nervosa, pois ele me encara com muita intensidade. É como se o livro significasse bastante para ele.
━Só o início. Depois comecei a odiar o Victor, o verdadeiro monstro da história, por ter criado a criatura e não ter dado a ela nenhuma companhia.
Os olhos dele ficam arregalados e me afasto, com o cenho franzido.
━Sim, eu entendo perfeitamente, porque eu sou filho único, Nate murmura.
━Você está comparando a sua mãe ao Victor? Está dizendo que você é um monstro? Quase rio ao perguntar isso.
━Monstro não, criatura, ele me corrige com um sorrisinho bobo.
Minhas bochechas esquentam e respiro fundo de maneira impaciente.
━Você ganhou, então vamos acabar logo com isso, murmuro sem nenhuma vontade e checo o horário no celular.
Mais uma hora e meia nessa biblioteca. Lá fora a neve já está subindo o parapeito da janela. Como vamos sair daqui, cavando um buraco por entre a neve?
━Seu segredo é tão ruim assim? ele faz uma careta e senta-se próximo à poltrona, no chão. Próximo demais para o meu gosto, mas, estranhamente, gosto da proximidade.
Nate apoia a cabeça na guarda da poltrona. Os olhos intensos me olham com curiosidade, como se ele quisesse muito saber o que eu escondo.
Decido acabar logo com isso, como eu havia dito. Respiro fundo, fecho os olhos e confesso:
━Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos em um acidente de carro.
Ele continua a me encarar de um jeito estranho. Não esboça choque ou surpresa. Meu rosto esquenta.
Agora que falei um dos segredos, os outros querem sair. Não consigo controlar minha boca.
━Todos Natais algo de ruim acontece comigo. É um azar natalino. Sempre venho até aqui para ler. Também trabalho aos finais de semana para ajudar meu pai a pagar o aluguel. Sinto falta da minha mãe.
A última frase me pega de surpresa. Nate inclina-se e seu queixo quase encosta na minha coxa. Seu olhar é tão compreensivo e cheio de compaixão que engulo em seco, com o coração acelerado. Algumas luzinhas refletem em sua pele, fazendo seus olhos brilharem ainda mais.
Ao invés de dizer palavras de conforto, como todos fazem, ele fala:
━Talvez esse seja seu Natal de sorte.
Nate dá uma piscadinha e meu coração dá um salto. O que há com esse garoto?
Desvio o olhar, mas sou surpreendida com um toque na mão. Os dedos dele tocam minha pele com gentileza e dão um apertão fraco e reconfortante.
━Sinto muito. Entendo por que o Natal não é bom para você. É uma péssima época para mim também, se você lembra...
━Por causa do acidente?
O acidente dele também aconteceu na semana do Natal.
━Sim. Eu também perdi algo nele.
━Alguém? Franzo o cenho, sem entender e ele ri.
A mão de Nate ainda está na minha.
━Não.
Então ele se afasta e o frio do afastamento do calor da pele dele contra a minha me desconcerta.
De perto vejo uma pintinha marrom em seu pescoço e sinto uma vontade enorme de tocá-la. Tenho de me lembrar que esse é o nerd da escola, o garoto com quem eu nunca troquei mais do que dez palavras.
Reparo no que ele está fazendo: puxando para cima a barra da calça da perna direita. Não entendo, franzo o cenho e começo a gaguejar, mas então vejo a prótese.
Ele perdeu uma perna. Era por isso que mancou durante tantos meses naquele ano!
Fico estática, sem saber ao certo o que dizer. Nate abaixa a barra da calça e sorri.
━Nós dois perdemos algo nessa época do ano, ele comenta.
━Nós dois somos azarados então? Pergunto baixinho, sem conter um sorriso.
━Esse pode ser o Natal da mudança.
━Por acaso vamos fazer um ritual contra a má sorte? Pergunto com sarcasmo e ele balança a cabeça.
Seus cabelos se movimentam conforme ele se move e fico tentada a tocá-los, porque parecem macios e bonitos demais. Mordo os lábios ao invés disso.
Nate parece pensar, então sua expressão se ilumina, como se tivesse uma ideia.
━Outro desafio não!
Faço uma careta e ele ri.
━Um dueto no piano. Esse será nosso ritual de purificação contra o azar natalino.
Ele se levanta do chão. O zumbido da nevasca lá fora torna-se assustador. Seria bom mesmo cantar uma música para fingir que não estamos no meio de um fenómeno climático perigoso na véspera do Natal...
E eu poderia vê-lo tocar piano mais uma vez.
Sou surpreendida por suas mãos, que seguram as minhas e me puxam para me levantar. Equilibro-me com dificuldade e quase tropeço nos meus pés. Nate me segura com confiança e segurançã.
Ele põe um braço em volta da minha cintura.
Nossos corpos estão colados. Sinto a respiração dele no meu pescoço, quente, assim como sua pele.
Levanto o olhar. Ele me encara. Há uma vermelhidão bonitinha em suas bochechas.
Meu coração acelera e consigo sentir o dele no mesmo estado.
Sua mão aperta a minha com gentileza.
Nate fecha os olhos, sorri e respira fundo. Quando os abre, diz:
━Eu sempre amei esse cheiro de chocolate.
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