"Sinto falta do que já fui e do que nunca serei. Era só seguir em frente. Já não posso mais. Quero me aquecer no teu calor, reinventar meu mundo, minha fé, minha paz de um jeito meigo e voraz."
Scarcéus
Abandonando as imagens de seu pretérito imperfeito e desviando a atenção para o que precisava fazer, Hector cutucou a companheira no ombro.
A garota lhe dedicou um olhar intrigado, se desligando do universo ao seu redor e se conectando completamente a ele.
— Precisamos observar o mapa de pessoas e buscar por todas elas, Zahra — anunciou ele, sério. — Já se passou muito tempo desde que derrotamos a Amélia. Há algo errado com isso!
A garota abriu a boca para falar algo, mas em um instante se ouviu um barulho brusco vindo da mata e estando amedrontada pela lembrança do homenzarrão rude que a havia perseguido, Zahra se lançou contra Hector, se atracando contra ele, se firmando no pescoço do rapaz.
Hector gargalhou ao notar a forma como a amiga apertava o seu pescoço.
Ele a afastou, mostrando que se tratava apenas de Adofo e Kisla, mas ao olhar para ela, percebeu que Zahra estava realmente traumatizada, pois com a sua face encharcada e quase fúcsia de tanto se apertar contra ele, Hector notou um semblante aterrorizado na face da companheira.
— Se acalme! — pediu, com cuidado. — São nossos amigos, Zahra — completou, enquanto ela soluçava. — Você está comigo, ninguém vai te fazer mal!
Kisla se aproximou instantaneamente, preocupada com o que tinham visto.
— Aconteceu algo no enterro?
— Muitas coisas — respondeu Hector. — Mas ela só está assustada com o ataque de ontem.
A mulher sorriu para Hector, tomando Zahra em um abraço gentil e cômodo.
— Já temos um local — anunciou Kisla, piscando um dos olhos para Hector.
Sem dizer mais nada, todos começaram a caminhar, guiados por Adofo, que ia à frente como um guarda-costas.
O homem peludo, parecia ter adquirido o hábito de ficar calado, mas Hector sabia que aquela atitude acumulava medo de falar o que não devia em lugares que não deviam, pois o semblante sério do homem mostrava o quanto ele estava assustado.
Chegaram ao buraco em que Mariah se escondia, rapidamente. Ensejando que ninguém estivesse por ali, Kisla deu uma olhada rápida em todos os cantos. E não vendo ninguém, ela ajeitou a alça de seu vestido, fingindo que estavam ali para descansar. Porém, com um olhar sério e firme ela apontou para o monte de folhas secas que encobriam a entrada do esconderijo e indicou que era ali que ela estava.
Arrastando o pé sobre as folhas e galhos rasteiros, Hector notou a boca para uma gruta profunda. E percebendo como aquilo era oculto, notou que tinha ao seu lado uma talentosa aliada.
Todavia, não podiam ficar de muito papo ali. Tinham que disfarçar indo passear, enquanto se despediam dos dois guardiões de Mariah.
Começaram a caminhar calmos e se mostrando serem natos para encobrir as suas transparências, pois naquele instante, não aparentavam esconder nada.
Porém, quando chegaram a um ponto mais logo à frente, pararam novamente e daquela vez para se despedirem.
— É um ótimo lugar! — cochichou Hector. — Ninguém a encontrará lá dessa vez.
Kisla assentiu, sorrindo e tomando o braço de Adofo.
— Não mesmo! — afirmou ela. — Mas agora volte para Mariah, pois eu e Adofo temos que voltar correndo para o cabaré da Naomi. Por sorte e com a nossa insignificância, com certeza ninguém notou nossa ausência no enterro.
Hector meneou a cabeça, afirmando que não haviam notado nada. E sem falar mais, acenaram uns para os outros, se separando naquela estrada.
Furtando a atenção de Hector para si, Zahra puxou a sua camisa, sem querer falar muito.
— Eu acho que minha performance não anda muito boa, pois eu estou extremamente cansada — ela falou, se mostrando cabisbaixa.
Hector a encarou por alguns instantes, levando a mão à testa de Zahra. A garota estava com uma febre branda, mas o suficiente para fazê-lo lembrar em meio à confusão daquele dia, que a garota ainda estava em recuperação dos ferimentos.
— Vamos lá! — falou, enquanto a pegava no colo com facilidade. — Vamos encontrar a nossa amiga e você pode descansar um pouco — sussurrou no ouvido dela, fazendo-a fechar os olhos.
Na caminhada não demorou muito para que ela pegasse no sono, mas logo depois, já estavam na entrada para o poço em que Mariah se escondia e furtivamente Hector entrou, encontrando o olhar tristonho da moça.
Colocou Zahra em um canto e se aproximou para abraçar sua protegida.
O local onde se encontravam, era fedorento e escuro e ele admirou o modo como Mariah aceitava ser submissa a qualquer decisão que tomassem por ela.
Porém, Hector esperava que aquilo não demorasse muito mais, pois ele mesmo não aguentava mais vê-la naquela situação.
Sem abandonar o seu salão principal, Tudor ordenava que qualquer pessoa se afastasse da torre, que até pouco antes, havia acontecido um baile de sangue, ainda confuso.
Porém, sem saber a procedência das pessoas que estavam chegando ao reino e sendo aprisionadas, Afrodite se enfurnou em um canto qualquer para tentar entender quais eram os planos de seu pai.
Depois de algum tempo encarapitada entre a entrada e uma opulenta estante, a moça viu passar um homem alto e com os cabelos cobres.
O rapaz tinha uma beleza genuína, mas pela primeira vez, a volúpia não sussurrou em seus ouvidos e Afrodite não se importou com o fato de quem que se tratava ser aquele homem.
Apenas usando a sua razão, deslizou um pouco mais para perto da estante para não ser vista.
Contudo, ao vê-lo se apresentar ao rei, notou que aquele era o seu antigo futuro noivo: o primogênito do rei de Galáx.
— Me avisaram sobre os invasores no seu território — anunciou o príncipe. — Queira me desculpar pelo incomodo, mas vamos alvejar um a um por conta desse disparate!
Tudor assentiu, com um sorriso vil nos lábios.
— É bom que você tenha vindo buscar os fanfarrões pessoalmente, pois preciso muito de sua ajuda e também da de seu pai... — informou o rei, mostrando apenas um ar maquiavélico.
— Meu pai se encontra acamado e muito mal de saúde, mas ficarei contente em lhe ajudar, Tudor — respondeu o rapaz. — Apesar de ter me negado a mão de sua filha em casamento, não existem ressentimentos.
O rei o chamou com um gesto de mãos, o instruindo a se sentar.
— Você não perdeu nada, Nicholas! — respondeu Tudor. — Afrodite é apenas uma menina boba. Ela não sabe nada. Minha filha é apenas bonita, mas nem um pouco interessante.
Em seu canto, Afrodite silvou de raiva, porém, logo tapou seus lábios e tentou se manter o mais escondida possível, pois ela queria saber o que seu pai desejava com Nicholas; o príncipe de Galáx.
— Mas vamos ao que interessa… — reclamou Nicholas.
Imputando confiança no príncipe de Galáx, Tudor lhe contou toda a história sobre a morte do filho e seu assassino, que naquele momento se encontrava foragido.
E enquanto ouvia cada detalhe, o rapaz aboliu o sorrisinho pomposo que mantinha nos lábios e adquiriu uma expressão séria.
Afinal, Tudor colocava em suas mãos o privilégio de caçar um criminoso e quem sabe assim, pudesse fazer uma maior aliança com o reino de Epimoni, que era muito bem-visto em Galáx; apesar de o orgulho esnobe da população não os deixar admitir na maioria dos casos.
Ficou ali, conhecendo detalhes sobre Nilo e naquela conversa, se sentia quase aconchegado, pois não era somente o seu reino que passava por momentos difíceis; a tão adorada Epimoni não era tão perfeita quanto todos pensavam.
De maneira peculiar, Tudor mostrou o seu desejo em dizimar Nilo da maneira mais propícia em que um meliante de sua alçada deveria ser.
Nicholas concordou, sabendo que faria o mesmo com os arruaceiros de seu vilarejo.
Afrodite os observava por uma fresta. Seu pensamento racional, mostrava que a nata da sociedade era mesmo desprezível; e ela não se excluía desse adjetivo.
A única pessoa que nunca fora rude e perversa fora sua mãe. E talvez fosse exatamente por isso que ela estava entrevada em um calabouço.
Por seu altruísmo, a rainha havia ido morar na masmorra, enquanto o seu poema latejava na mente de Afrodite.
Afinal, quem poderia ser aquela tal concubina?
Que o seu pai fosse capaz de trair, isso ela não tinha dúvidas. Mas quem poderia ser a tal moça, que tivera tanta importância e que acabara levando a sua mãe para uma morada fria e esquecida?
Sem entender, abandonou o local e deixou que Tudor e Nicholas debatessem sobre os acontecidos em Galáx. Pois o namorico de uma empregada com um membro da corja real não era do seu interesse.
Se essa tal garota, Monalisa, era uma farsante que fingia amar para dar o golpe do baú, não lhe importava.
Afinal, já haviam feito um brinde com a sua morte, assim como o seu pai havia brindado tantas outras naquela mesma régia.
No cemitério da vila, escondido e esquecido, Jocka esperava por seu mestre.
Havia recebido um recado e o homem das trevas lhe havia salientado que se não aparecesse, o agravo para os seus erros seria a morte.
O homenzarrão desfalecia entre as tumbas, enquanto esperava por uma surra em breve.
Não demorou que o sujeito surgisse, arrastando a sua capa pela imundice do esquecimento daquele lugar.
Aproximou-se de seu capanga e ao olhá-lo nos olhos, deixou transparecer a maldade patológica que o seguia.
Não estava disposto a ser benevolente.
Não suportava erros e a qualquer momento estava disposto a acabar com um jogo e renovar o seu tabuleiro.
— Você afugentou as presas, idiota! — o homem gritou com a sua voz que mais parecia um tiro de canhão.
O indivíduo rondava Jocka, como uma aranha viúva-negra, que constrói a sua teia, antevendo o momento de capturar a sua presa.
— Preciso daquelas garotas inteiras,— anunciou o mestre —, e você me deixa elas fugirem. E ainda por cima tenta machucá-las. Eu as quero vivas. Se fosse para matá-las, eu mesmo faria isso!
O capanga beliscava o próprio braço em nervosismo, pois os silvos que o homem soltava ao respirar, mostravam que ele estava possuído.
— Eu não me importo de mudar o roteiro e abandonar as suas tripas pelo nada até os urubus virem provar da sua carniça — ameaçou, agarrando-o pelo pescoço. — Você pensou que eu não viria, não é? Acredita que pode fazer a farra do modo que quiser, não é? — Apertou o pescoço de Jocka, fazendo a face do sujeito ficar roxa. — Mas não pode! Eu estou aqui e você vai pagar por zombar de mim, renegando a minha ordem! — uivou, quase quebrando o pescoço do capanga entre os seus dedos.
Jocka se debateu, tentando dizer que tinha um álibi; que tinha como salvar a situação.
— Diga, asno! — ordenou o homem, lançando-o contra um túmulo.
O homem respirou, acariciando o pescoço marcado.
— Eu sei onde se encontra Mariah! — anunciou. — Eles a trocaram de lugar, mas eu sei onde ela está.
O homem tentou consagrar a conversa com aquela notícia, tentando não morrer ali, naquele mesmo momento.
O homem em sua parca observou de dentro seu disfarce o discurso de seu capanga e acreditando que ele falava a verdade, percebeu que Jocka ainda lhe era necessário.
— Capture-a, mas observe o momento certo! — ameaçou-o com seu tom de voz macabro. — Mas não me prove que é um rato, deixando essas garotas lhe escapar das mãos! — rosnou. — São duas criaturas “indefesas” — zombou —, e você, um brutamonte. Mas não me prove que não serve para nada, que eu não vou sentir nem um pouco em te descartar aqui mesmo!
Assentindo e sentindo o cheiro de morte exalar de seu mestre, Jocka prometeu que lhe traria tanto Mariah quanto Zahra, para que assim, não pudesse morrer naquele esquecido cemitério da cidade.
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