Capítulo 61 - "Por Cecilie!"
Abenforth sentia suas mãos tremerem conforme seu escudeiro afivelava a armadura em seu corpo. Estavam em seus aposentos, em frente ao grande espelho de chão enquanto o rapaz prendia a ombreira direita apressadamente. O rei fechou as mãos em punhos e respirou profundamente engolindo o xingamento que estava na ponta de sua língua. O pobre rapaz não tinha culpa de nada e fazia um bom trabalho ao prepará-lo, não merecia ser alvo de sua fúria já que uma armadura levava algum tempo para ser vestida. Seus pensamentos retornaram à Cecilie, fazendo seu estômago revirar. Mais uma vez a filha escapava por entre seus dedos. Sentia-se tão caótico por dentro que não era capaz de pensar adequadamente, ferido como um animal acuado.
-- Está feito, majestade. -- o rapaz anunciou orgulhosamente.
Puxou sua mente de volta ao presente e encarou-se no espelho. Mexeu-se brevemente testando a armadura e acenou para o menino que devia ter a idade de seu filho, saindo dali em seguida. Do lado de fora Christopher e Zaya o esperavam, ansiosos. Não parou para conversar com eles pois cada segundo era importante e deveriam partir em poucos minutos.
-- Tem certeza de que deve ir? -- perguntou a rainha, apreensiva, enquanto acompanhava seus passos rápidos.
-- É claro que eu devo ir. -- soou mais grosseiro do que pretendia.
-- Temo que suas emoções o atrapalhem nessa batalha, Abenforth. Talvez seja melhor ficar e deixar o capitão fazer seu trabalho.
-- James já fez o suficiente. -- recusou, sentindo uma pontada de raiva do homem -- Já basta disso, Zaya. Eu irei. Christopher?!
-- Sim, pai.
-- Você está no comando até eu voltar. E se isso não acontecer até amanhã, convoque o Conselho de Guerra e coloque o restante dos exércitos em marcha. Ordene que Vendel lidere as tropas, de maneira alguma saia da Cidade Real, entendido?
-- Sim, senhor. -- concordou -- Irei até o templo rezar por sua segurança e pelo retorno de Cecilie.
Aquilo fez o rei interromper seus passos e olhou para o filho, um pequenino sorriso curvando seus lábios. Desde criança Christopher era muito apegado à sua fé, que só crescia conforme os anos passavam, e admirava demasiado aquilo. Aproximou-se dele e apertou seu ombro.
-- Eu tenho orgulho de você. -- anunciou olhando-o nos olhos, tão iguais aos dele -- Sabe disso, não sabe?
Christopher não respondeu, apenas sorriu feliz e acenou. Abenforth beijou-lhe a testa, deu uma última olhada para a rainha e seguiu para fora. No pátio um cavalo o aguardava, impaciente, arrastando os cascos no chão. O rei montou com agilidade e seguiu até mais adiante onde seus homens o esperavam. Levaria apenas uma tropa para o ataque, cerca de cem soldados seriam mais que suficiente. A Irmandade nunca foi populosa, provavelmente não chegavam à uma centena de rebeldes. Mas eram liderados por uma mente estratégica e que sabia se esconder muito bem. Nunca haviam se enfrentado realmente, seus homens apenas eram pegos em emboscadas, por isso nunca foram derrotados. Até aquele dia.
Caminhou por um espaço entre sua tropa, cumprimentando um ou outro soldado que cruzava seu olhar. Viu aqueles rostos repletos de obstinação, sobrancelhas franzidas em foco e desejo de vingança. Abenforth sabia que os laços de Cecilie com seus homens havia se estreitado nos últimos dias, desde que começou à ensiná-los. Pensou em impedir aquilo pois uma princesa não deveria passar tanto tempo sozinha entre homens. Certa vez, logo no início do segundo dia de treinamento, o rei se colocou à espiar a sessão. Escondido atrás de uma árvore ele passou horas assistindo enquanto ela lhes ensinava golpes de ataque, corrigia suas posturas e dava dicas de defesa. Constantemente derrubava seus homens de bunda ao chão, e ria abertamente quando o fazia. Mas depois Cecilie estendia a mão e os ajudava a se levantarem, mostrava qual fora seu erro e os ensinava como não repeti-lo. Abenforth viu os olhares de seus soldados mudarem de curiosos à admirados em poucas horas, viu como a cada dia mais homens queriam duelar com ela e aprender suas táticas. Ouviu os cochichos no castelo passarem de fofocas maldosas à elogios fascinados. Aqueles homens não estavam ali apenas por seu rei, mas sim pela princesa que foi tirada deles.
-- Majestade. -- capitão James o cumprimentou quando parou sua montaria ao lado da dele.
-- Estamos prontos? -- perguntou ao homem, tentando fortemente fazer o que sua filha pediu e não puni-lo pelo que fez.
-- Sim, senhor.
Abenforth puxou as rédeas de sua montaria e ficou frente à frente com seu exército. Os homens estavam todos montados em cavalos e junto da armadura vestiam as cores reais, preto e vermelho, e seu estandarte de leão balançava ao vento sendo empunhado pelo porta bandeiras.
-- Homens! -- bradou alto para que todos os ouvissem claramente -- Hoje não estou diante de vocês apenas como seu rei. Estou aqui como pai, dilacerado por ter minha filha tirada de mim novamente. Mais uma vez Willk e a Irmandade estão com ela. Aqueles malditos certamente pretendem castigá-la por ter traído o mestre da rebelião, e talvez... -- engoliu em seco, sentindo o peso de suas palavras -- Talvez a princesa já esteja morta. -- silenciou por um instante, vendo expressões de fúria contida entre os soldados -- Mas eu digo uma coisa para vocês! Isso não ficará impune! Chegou a hora de a Irmandade conhecer o peso de nossa ira e o fio de nossa espada! -- desembainhou sua espada e a empunhou no alto -- Por Cecilie!
Imediatamente os soldados levantaram suas próprias espadas, repetindo aquelas palavras com respeito e reverência, fazendo os pêlos de seu braços se arrepiarem. "Por Cecilie" clamaram em voz alta, ansiosos por salvarem a princesa que consideravam uma deles. Devolveu a lâmina à bainha e partiu em alta velocidade, logo ouvindo uma centena de cascos atrás de si. Infelizmente devido ao grande número de pessoas fizeram um progresso lento, o que fazia o coração doer mais a cada hora que se passava. Temia o que iria encontrar quando chegassem à Vila Violeta. Não podia perdê-la mais uma vez, não seria capaz de suportar. Mal havia sobrevivido ao luto quinze anos atrás, apenas a responsabilidade para com a Coroa o fez seguir em frente. Agora tendo um herdeiro já quase apto à governar, nada o manteria são caso o pior acontecesse.
Para manter-se controlado e não sucumbir ao desespero que rodeava sua alma, recordou-se da conversa que tiveram no dia anterior. Um sorriso ínfimo curvou seus lábios, admirado com a força de sua filha. Cecilie o enganou junto à todo o Conselho de Guerra, depois aceitou fazer as pazes com ele certamente por pensar que não se veriam mais um vez. Ah, Cassandra... ela é tão parecida com você, pensou com saudade de seu amor, uma força da natureza impossível de controlar. Em quê estava pesnado quando cogitou ser capaz de conter aquela impetuosidade latente? Desde criança Cecilie foi geniosa, sempre arrastando Thomas para diversas travessuras ousadas. Ao reconhecer aquela força que queimava dentro dela como brasas crepitantes, William certamente jogou mais lenha em sua personalidade feroz, tornando-a indomável. Tão diferente de seu filho Christopher... o rapaz de dezesseis anos se prendia fortemente à suas crenças e às antigas leis, às tradições e aos bons costumes. O príncipe jamais faria algo tão radical quando ir diretamente à toca dos inimigos e se entregar à eles sem hesitar. Suspirou, irritado. Maldito Thomas! Se não tivesse saído da Cidade Real nada daquilo teria acontecido, Cecilie estaria em segurança e Abenforth não estaria pensando em mandar o duque para a forca.
Sacudiu a cabeça, espantando o pensamento. Sabia que jamais faria aquilo, mas a ideia lhe era atraente naquele momento de desespero. Porém, como disse mais cedo, Cecilie estava disposta à dar sua vida por Thomas e não tocaria nele. Acima do amor que sentia pela filha, Abenforth respeitaria suas decisões. Diversas horas haviam se passado, talvez oito ou dez. O sol chegou à pino no céu e iniciou sua descida lenta rumo ao pôr do sol, que não tardaria muito à chegar. Pararam cerca de meia hora apenas para alimentar os cavalos e se refrescarem, e logo continuaram a jornada. Por fim, chegaram.
-- A princesa disse que estariam na maior construção da cidade, senhor. -- anunciou o capitão.
-- Eu sei exatamente onde estão. -- murmurou o rei, incitando seu cavalo e guiando seus homens.
Vendo os transeuntes saírem das ruas amedrontados, seguiu para a antiga casa da mãe de William. A primeira esposa de seu pai, o antigo rei Oliver, era uma donzela que viveu ali na Vila Violeta. Filha de um baronete qualquer, a mulher conquistou o rei em uma única noite. Casaram-se algumas semanas depois de se conhecerem e, quando Oliver deserdou o primogênito, a única coisa que não lhe tomou foi a casa ancestral que pertencia à sua família materna. Abenforth foi até ali uma única vez, junto de seu irmão, antes de tudo acontecer. Na infância e até o final da adolescência eles foram próximos, mais que isso eles eram amigos. William sempre fora orgulhoso de sua posição, sempre sarcástico e com humor ácido. Guerreiro exemplar e com mente afiada, prometia ser um sucessor excelente para o reino. Até que suas tendências assassinas vieram à tona. Meses de terror assolaram o castelo enquanto corpos apareciam misteriosamente, criados estavam sendo mortos continuamente por alguém tão cruel que nem fazia questão de esconder seus rastros. Até que certa noite Willkam foi pego sobre o cadáver de uma jovem lady que estava na Cidade Real para o baile de inverno, o então príncipe estava banhado em seu sangue e com um cutelo em mãos. No dia seguinte, perante os súditos num julgamento oficial, rei Oliver usou da Suprema Justiça do Rei e deserdou seu primogênito e o sentenciou ao exílio. Permitiu que ficasse com aquela casa para vendê-la e ter fundos para partir, mas ele nunca o fez. Quando saiu do castelo naquele dia, William nunca mais foi encontrado.
Ao chegarem percebeu que o lugar não carregava mais o ar majestoso de outrora. Estava mal cuidada, caindo aos pedaços. Ainda assim, lhe pareceu um tanto abandonada demais. Um frio subiu por sua espinha, acompanhado de uma sensação de mau agouro. Permaneceu encarando os muros altos enquanto ouvia o capitão James dando ordens aos soldados para se posicionarem cercando a propriedade. Quatro homens desmontaram e seguiram até o portão de madeira. Surpreendentemente este foi aberto com facilidade, apenas com um puxão, mostrando estar destrancado. Abenforth desmontou de seu cavalo e seguiu em frente, adentrando o lugar de uma vez. Como já imaginava, o encontrou vazio.
-- Quero metade de vocês patrulhando a cidade, de olho em cada pessoa suspeita e investigando a possível direção que tomaram na fuga. O restante montem guarda aqui fora, não percam um só centímetro desse lugar de vista, entendido? -- ouviu o capitão ordenar aos soldados -- Dos que ficaram, quero dez homens junto comigo pois vamos invadir. Não podemos descartar a chance de estarem escondidos sem procurar direito.
Ouviu a movimentação atrás de si conforme os soldados acatavam as ordens que haviam recebido, mas algo dentro dele sabia que estavam apenas perdendo tempo. Entretanto James não estava errado em sua maneira de fazer as coisas e o rei não iria interferir pois, como a rainha supôs, sua pressa em agir era movida por suas emoções e não seria sábio ignorar a razão naquele momento crucial. Acompanhou os homens ao invadir a casa, todos com as espadas já em mãos. Ainda tinham uma hora de luz do sol, talvez menos, mas não necessitaram de mais de vinte minutos para descobrir o lugar completamente vazio. No porão, uma cela sem um prisioneiro deu a confirmação de que Cecilie fora levada para Deus sabe onde e que haviam chegado tarde demais. No chão, uma significativa poça de sangue quase seco fez seu coração já desesperado sofrer ainda mais. Que não seja dela, por favor, que não seja dela, repetia a oração em sua mente.
-- Majestade? -- ouviu James o chamar.
Parou de encarar a maldita poça de sangue e olhou para o homem.
-- A princesa disse que, se não estivessem aqui, deveríamos seguir até a Cidade das Rosas que é onde a Irmandade costuma se refugiar.
-- Se é o que eles provavelmente fariam, então certamente não o farão. Mas já que é um lugar importante para eles, vá até lá com essa tropa e tome posse da Cidade das Rosas. Ela ficará sob seu comando até que recuperemos minha filha.
-- Mas... eu deveria ficar com o senhor.
-- Não, capitão. A partir deste momento estamos em alerta de guerra. Agora, devo voltar ao castelo e tomar as devidas providências.
-- Como queira, majestade. -- o homem fez uma reverência, aceitando as ordens. Abenforth ia saindo quando foi chamado uma última vez -- Meu rei? -- parou e olhou para trás, percebendo o homem verdadeiramente abatido pela primeira vez -- Eu falhei com o senhor, peço que me perdoe. Mas se desejar me punir, eu aceito as consequências de meus atos.
Abenforth virou todo seu corpo para ficar frente à frente com o homem e cruzou os braços, percebendo James engolir em seco.
-- Acha que merece ser punido, capitão?
-- Honestamente? Sim, senhor. -- suspirou resignado -- Após alguma convivência com Cecilie eu me senti próximo dela, quase um amigo. Não fui capaz de negar ajuda quando me pediu. Deveria tê-la subjugado e a levado até o senhor.
-- E então ela encontraria uma outra maneira de fugir. -- o rei argumentou, frustrado -- Eu não estou feliz com você no momento, James, mas não irei castigá-lo por ter sido leal para com minha filha. Não é minha intenção excluí-lo de tudo ao mandá-lo nessa missão. Pretendo tomar o controle de todas as Cidades Fortes que Cecilie nos deu conhecimento, estabelecer um ponto militar do rei em cada uma delas. Você receberá novas instruções quando for hora de tomar uma nova cidade.
-- Obrigado, meu rei. -- curvou-se mais uma vez -- Não irei mais desapontá-lo.
Abenforth acenou e saiu dali, apressadamente. Apenas quatro soldados o acompanharam na viagem de volta, que foi feita mais rápido agora que estavam em menor quantidade. No trajeto tentou pensar nas próximas estratégias, forçando-se a se concentrar, mas sua cabeça doía pela luta do controle de seus pensamentos e ele abraçou a dor, preferindo-a em detrimento do vazio sufocante que ameaçava invadi-lo. Precisava pensar como William, se colocar um passo à frente dele mas não tinha dentro de si a crueldade nata de seu irmão.
O sol se foi, dando lugar à lua minguante que parecia estar sorrindo de sua tristeza. Quando chegou à Cidade Real já era tarde da noite, quase alta madrugada. Entretanto ao adentrar o castelo, o encontrou bem iluminado e cheio de movimentação. Zaya e Thomas vieram correndo em seu encontro assim que as portas lhe foram abertas, claramente ansiosos por notícias. Precisaram apenas ver sua expressão de desamparo para perceber que Cecilie não fora encontrada. Zaya apenas franziu de leve as sobrancelhas e enrijeceu a postura, ocultando sua decepção.
-- Onde ela está? -- ouviu a voz de Thomas.
Encarou o sobrinho da esposa por alguns segundos, percebendo que ele havia se alinhado. Ainda assim, não parecia mais o mesmo homem. Havia se limpado e se vestido, entretanto seus longos cabelos castanhos que lhe caíam na altura dos ombros não mais estavam ali. Seus fios agora estavam raspados rentes à cabeça, e de alguma forma estranha aquilo tornava a magnitude de sua dor ainda mais evidente.
-- A casa estava vazia. -- anunciou, simplesmente -- Onde está Christopher?
-- No salão de reuniões. -- respondeu a rainha -- Ele já convocou o Conselho de Guerra, os homens chegaram não faz muito tempo.
-- Perfeito, isso vai me poupar tempo.
Sem despender de mais tempo com Zaya e Thomas, o rei seguiu apressado até o salão de reuniões. Sentiu cheiro de café recém passado e só agora percebeu estar faminto. E exausto até os ossos. Mas não podia descansar, não enquanto tudo não estivesse encaminhado. Ouviu um zumbido de conversas quando se aproximou do lugar e, quando entrou, o silêncio foi súbito. Encarou cada rosto presente, e sentiu uma pontada de alegria ao ver o rosto de seu filho se iluminar ao se aperceber de seu retorno. Deu um sorriso à Christopher, prometendo a si mesmo que aconteça o que acontecer, seguiria em frente por ele.
-- Podemos começar? -- sua voz soou alta cortando o silêncio da madrugada, dando início à reunião mais importante dos últimos tempos.
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