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Capítulo 14 - "Você pretende nos matar?:

     Nix sentia-se cansada até os ossos. E nojenta. Muito, muito nojenta. Sua roupa ensopada do sangue de seus antigos irmãos estava grudada em seu corpo, e mesmo agora já quase seca, ainda causava uma sensação pegajosa e o cheiro, para dizer o mínimo, era desagradável. Tanto que nos últimos quilômetros, desde que o sol chegou à pino, seu estômago estava embrulhado. Mas ela não parou a cavalgada na tentativa de acrescentar o máximo de distância entre eles e a região à qual pertencia a fortaleza da Irmandade. Certamente Willk enviou diversos grupos à procura deles em todas as direções possíveis. Nix quase os podia sentir às suas costas mas se impelia em frente pois caso precisasse enfrentar mais alguém, corria o sério risco de perder a luta exausta como estava. Então, manteve-se firme e em movimento.


     A cavalgada não permitia conversação com seu companheiro de viagem, o que ela considerou uma benção.  Ainda estava ligeiramente irritada com ele por ter denunciado a localização deles, mesmo se esforçando para aceitar que a culpa não foi realmente dele, afinal quem consegue segurar um espirro numa chuva de poeira? Thomas foi mais atingido do que ela, que estava mais próxima à entrada da pequena caverna. Olhou de relance para ele, que estava à sua esquerda, uns dois metros atrás. O pobre homem estava quase tão sujo quanto ela, sendo a única diferença que o sangue que o cobria era o dele. Ainda assim, parecia infinitamente melhor do que na noite anterior, mesmo com todos os hematomas que lhe cobriam o rosto, mais arroxeados agora do que ontem. Ele olhou para ela e sorriu, o que a fez revirar os olhos e retornar sua atenção ao caminho à sua frente.


     Aquele homem mudou tudo na vida dela e lhe causava sensações diversas que Nix preferia não sentir. Raiva e amargura eram algumas delas. Se a mulher não tivesse sido tão estúpida ao se permitir conhecê-lo um pouco mais, ouvir tudo o que ele tinha a lhe dizer, sua vida continuaria a mesma e não esse turbilhão de desastres sequentes que desencadeariam num futuro desconhecido. Mas, então, ela continuaria na ignorância, ainda acreditando no homem que a usou e manipulou. Decepção, mágoa e alívio eram outros sentimentos que a invadiam. Decepção consigo por ter sido tão facilmente usada, mágoa para com seu antigo mestre e alívio por Thomas ter lhe aberto os olhos. Sentia-se aliviada, também, por ele ter se recuperado. Nos momentos que passaram naquela caverna, temeu por ele a cada hora que permaneceu desacordado e isso a deixava confusa. Qual a razão de sua preocupação? Aquele homem apenas a atrasava e lhe arranjava encrencas.


     Ouviu um assobio já familiar e conteve um sorriso. Ele era imprudente, estranhamente vulnerável para um homem de seu tamanho e posição, era destreinado e não sabia nem a diferença entre faca e adaga. Sacudiu a cabeça, exasperada com o quanto a situação era cômica. Mas não era só isso. Mesmo que não soubesse manejar nenhuma arma, ele tinha força. Suportou dores terríveis, sobreviveu à fuga e um considerável ferimento na cabeça, e ainda assim ele sorria para ela sempre que seus olhares se encontravam. Aquele sorriso convencido lhe revirava o estômago numa nova sensação que a deixava desconfortável por não saber como nomeá-la.


      Nix chegou à uma clareira e viu ao longe a Mata Senegal, lugar que precisavam atravessar para pegar a Trilha da Poeira que os levaria à Oeste. Três quilômetros à céu aberto, totalmente expostos. Estava tensa com a possibilidade de serem vistos, mas não havia escolha. Parou às margens da vegetação do Bosque do Trevo e esperou Thomas se juntar à ela.


-- Precisamos atravessar essa clareira o quanto antes pois estaremos visíveis demais. -- ela explicou -- Vá o mais rápido que puder, entendeu?


     Olhou para o homem e viu que parecia tão cansado quanto ela. E com dor. Imaginou se os sorrisinhos e assobios eram para distraí-lo dessas dificuldades e uma parte dela o admirou por aquilo, pois sorrir sentindo dor não é tarefa fácil.


-- Entendi. -- ele concordou.


     Saíram em disparada, o som dos cascos dos cavalos somados às suas respirações ofegantes abafaram quaisquer outros barulhos, e Nix sentia o suor dos animais que deveriam estar tão exaustos quanto eles. Uma pausa era imprescindível e urgente. Não demorou muito e chegaram às sombras da Mata Senegal, lugar onde as árvores eram mais espaçadas o que facilitava a movimentação, mas ainda eram abundantes. Puxaram as rédeas quase ao mesmo tempo, diminuindo bruscamente a velocidade.


-- Poderemos descansar agora? -- perguntou Tom.


-- Ainda não. -- ela disse.


-- Você pretende nos matar? -- retrucou irritado -- Uma facada seria mais rápida do que a exaustão, sabia?


     Ela o encarou com um aviso no olhar que, aparentemente, o homem ignorou. Decidiu que discutir apenas os atrasaria e, mudando a direção para a esquerda, continuou seu caminho sem esperar para ver se o homem a seguiria ou não. Questionou-se se ele estava debatendo se deveria ir atrás dela, pois demorou até que ouvisse o cavalo dele se aproximar, mas por fim isso aconteceu. A próxima meia hora foi preenchida por tenso silêncio, onde todos os quatro - humanos e animais - ansiavam por um merecido repouso. A mulher, se fosse mais emotiva, poderia ter chorado de alegria no momento em que viu o azul brilhar ao longe e o barulho de água corrente pôde ser ouvido, invadindo seus sentidos com um punhado de energia renovada ao imaginar-se limpa de novo.


-- Um rio! -- exclamou o homem, parecendo tão feliz quanto ela -- Por que não me disse que estávamos indo até um rio?


-- Você não perguntou. -- ela deu de ombros.


-- Sabe, você é particularmente desagradável às vezes. -- ele apontou.


     Ela virou-se para olhá-lo e, mesmo com a acusação, não havia rancor no castanho dos olhos dele. Percebeu que Thomas não estava brigando com ela, estava apenas constatando um fato.


-- Sim, eu sei. -- ela suspirou, pela primeira vez desde que toda aquela loucura começou, demonstrando seu cansaço.


     Encontrou um espaço adequado entre as margens da mata e desmontou, sendo seguida por Tom que o fez com dificuldade, mas sem precisar de auxilio. Sem poder aguentar um segundo mais daquela nojeira, e sentindo o cheiro do sangue seco ainda mais fedorento do que antes, apressou-se em retirar sua bolsa do alforge.


-- Eu trouxe uma troca para nós. -- disse retirando as roupas da sacola -- Terá de ser suficiente até chegarmos à Cidade Real.


     Pegou o conjunto masculino e o atirou à Thomas que estava se aproximando dela após prender sua montaria numa árvore.


-- Eu espero que seja mesmo, afinal... -- ele apanhou as roupas no ar -- Espere, você disse Cidade Real? Pensei que estávamos indo até minha propriedade em Monte Branco.


-- Não. -- ela disse, apenas, enquanto desamarrava sua capa.


-- Chega de dizer apenas não, por favor! -- ele pediu, observando os movimentos dela ao pendurar a capa numa árvore e começar a desabotoar a camisa ensanguentada.


     O cheiro de sangue velho pareceu ficar ainda mais forte sem a brisa da cavalgada, aumentando as náuseas que a torturaram nas últimas horas.


-- Podemos conversar sobre isso depois. -- respirou fundo e sentiu suas mãos tremerem -- Agora eu preciso...


-- Não, não! -- ele a interromopeu e ela afiou o olhar para ele -- Viu como é irritante? Somos parceiros agora, e eu quero saber qual é o plano antes que aconteça, e não mais ser arrastado como um pedaço de carne que todos querem abocanhar!


     Finalmente ela retirou a camisa e olhou para si. Usava por baixo uma chemise branca de manga curta e simples, que agora estava manchada de vermelho, quase preto. Sentia o tecido grudado ao corpo, banhado em sangue. Seus braços estavam um pouco melhores, apenas o direito estava manchado devido ao ferimento da luta no calabouço. Em todas as suas missões, ela nunca ficou tão imunda, e o sol daquele dia quente piorou tudo. Curvou-se sobre si, incapaz de segurar por mais tempo, e vomitou tudo o que tinha no estômago em grandes jatos. Não demorou e sentiu alguém puxar sua trança para trás e, depois, acariciar suas costas. Pensou em afastar-se mas não foi capaz, e não sabia exatamente o porquê. Ao terminar, cuspiu no chão e limpou a boca com as costas da mão, endireitando-se em seguida. Seus olhos se encontraram com os dele, que pareciam cautelosos, quase preocupados.


-- Poderia ter me dito que sentia-se mal. -- o homem disse num sussurro.


-- Eu só preciso me limpar. -- pegou a barra de sabão que levou e a partiu ao meio, entregando uma metade à ele -- Me dê dez minutos de privacidade, sim?




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