Capítulo 19 - Verdades Incompletas
Antes da expedição de barco pelo rio chegar de volta, aconteceu algo importante e maravilhoso, mas foi de modo tão imperceptível que Catherine só foi se dar conta do que tinha acontecido muito tempo depois.
No domingo de manhã Nick revelou-lhe um fato que, embora não justificasse, explicava em parte a reação dele para com ela logo no início. Ele tinha ido à sua cabana buscar algumas coisas para continuar dormindo no posto médico, o que assegurou a Catherine que Nick não pretendia ter mais nada com ela.
— Aquela noite eu vi você no restaurante, sim. — Disse ele de repente, encarando-a. — E não foi a primeira vez. Já a tinha visto antes, no mesmo dia, na casa de meu cunhado. Revelou ele parcialmente a verdade.
Catherine tentou lembrar-se e Nick continuou.
— Eu tenho a chave da casa deles e precisei ir lá naquele dia. Entrei, subi e saí no terraço. Foi então que vi você tomando banho de sol.
Lembrou-se imediatamente de que estava nua. Iria ficar sozinha a tarde toda, pois Paulo e Henry tinham saído com duas garotas cariocas. Só que a garota de Henry faltou ao encontro e ele voltou para casa antes da hora. Catherine, que cochilava ao sol, nem percebeu que ele se aproximou e só acordou quando ele a beijou.
— Então você viu Henry me beijando...
— Vi, mas foi só isso, porque saí no mesmo instante. Eu não queria, nem podia, ver mais do que aquilo.
— E ficou pensando que aconteceu a continuação daquele beijo. Não era à toa que Nick a achara leviana!
— É, pensei. Depois, naquela mesma noite, vi você com outro homem, então...
— Não precisa Explicar. — Interrompeu Catherine. — Não tem importância, deixe para lá.
Durante a tarde choveu torrencialmente e eles ficaram no terraço conversando amigavelmente sobre várias coisas. Falaram de suas famílias, lembraram episódios engraçados e riram juntos. No fim do dia a chuva tinha parado, o céu estava límpido, e eles foram até a margem do rio, onde ancoravam os barcos, para ver o pôr-do-sol.
Nick falou-lhe sobre seus planos de voltar à civilização, mas não mencionou o que o fizera mudar de ideia. Entre tantas conversas aleatórias Catherine descobriu que eles haviam estudado na mesma universidade. Nick estava terminando a universidade e ela havia entrado, Catherine estudava à noite.
— Vou poder trabalhar num setor de pesquisa de medicina tropical. É uma unidade especial, que estuda as doenças das várias tribos amazonenses quando entram em contato com a civilização. Já havia pensado em ir para lá há alguns anos, mas desisti. Agora, porém...
— Você já tem seu lugar lá assegurado?
— Acho que sim. Fui eu que criei essa unidade juntamente com alguns conhecidos da minha família.
Contemplando os últimos raios de sol, que deixavam o rio vermelho e dourado, os dois partilharam um silêncio relaxante.
— E por que você decidiu voltar à civilização? — A expressão de Nick se anuviou de imediato.
— Ficando aqui terei muito pouco a oferecer aa aldeias indígenas A resposta para os problemas deles talvez surja das pesquisas. Remédios, vacinas, mais conhecimento sobre seu sistema imunológico... só essas coisas poderão ajudá-los agora. A reserva vai continuar lutando para proteger a diversas tribos existentes nesse país, mesmo que o governo deseje nós expulsar daqui.
Catherine esperou um pouco para ver se ele falava alguma coisa mais reveladora e depois comentou.
— Vai ser uma mudança e tanto para você!
— Nem tanto. Quando comecei a estudar medicina, meu objetivo era ficar na área de pesquisa. Mas não estava preparado paras as mudanças que o destino me imporia. Talvez você não saiba que há um problema sério no Amazonas. As tribos primitivas, puras, estão sendo exterminadas, na verdade muitas já desapareceram. Os caboclos, que são mestiços, estão todos com malária, e vivem tomando remédios. Os índígenas morrem porque não têm imunidade contra males comuns a nós, como gripe, resfriado, sarampo e coisas assim. Essas doenças da civilização matam mais do que as guerras contra meus ancestrais.
— Seus ancestrais?..
— É, eles eram barões da borracha, você não sabia? Ficaram ricos à custa das vidas de muitos índígenas e caboclos. Os seringueiros, trabalhadores que iam extrair a seiva das árvores, levantavam-se duas horas antes do amanhecer, andavam quilômetros pela selva todos os dias, primeiro fazendo talhos nos troncos das árvores e depois colhendo a seiva, e, em seguida, defumavam a borracha até formarem bolas grandes, próprias para o transporte. Os homens que levavam essa vida tinham morte prematura. Alguns ainda fazem esse trabalho hoje em dia, mas pelo menos fazem por vontade própria, o que não acontecia antigamente.
— Mas como...
— Na força bruta. Os índígenas não queriam extrair a borracha. E por que haviam de querer? Não eram eles que enriqueciam, e para eles nem o dinheiro nem a borracha tinha a menor serventia ou interesse.
Será que era por isso que Nick tinha se enterrado na floresta? Para pagar o pecado de seus ancestrais? Para se penitenciar do sentimento de culpa?
— E onde é que você vai morar quando for embora daqui?
— No primeiro momento em Manaus. É lá que fica a unidade de pesquisa. Depois poderei voltar aos Estados Unidos.
Catherine só fez mais um comentário:
— Então acho que nos veremos de novo no mês que vem, quando estivermos filmando em Manaus.
— Não. No mês que vem estarei ocupadíssimo. — Disse ele, em tom desencorajador.
Voltaram para seus alojamentos e, antes de se separarem, Catherine olhou para ele, hesitante, com a sensação de que queria dizer alguma coisa ou de que queria que ele dissesse. Só não conseguia saber o que era. Nick ficou impassível e não parecia estar sentindo a mesma coisa.
— Boa noite. — Disse ele, afinal.
— Boa noite.
Só no dia seguinte de manhã, depois que os outros voltaram da expedição pelo rio, é que ela soube o que queria dizer e ouvi-lo dizer. Ao ver Nick ajudando a amarrar o barco no cais ela entendeu num repente o que havia acontecido naqueles poucos dias. Era algo importante e muito bonito. Tinha se apaixonado perdidamente por ele.
Estava amando-o como nunca. Amava cada detalhe: o formato das orelhas; o trejeito de sua boca quando falava ou quando ficava mal humorado; os olhos escuros; as mãos firmes e hábeis; o jeito dele andar, de dar ordens à todos a sua volta; o calor da pele castigada pelo sol forte, o cheiro dele, que tanto a excitava... Amava aquele homem por inteiro, de corpo e alma.
Paulo e Henry chegaram alquebrados da viagem, mãos esfoladas e cheias de bolhas, egos feridos, e de mau humor.
— Ah, que vontade de torcer o pescoço desse Nick Curran! — Disse Henry, entre dentes.
— Com essas mãos você não vai conseguir. — Caçoou Paulo, olhando para os curativos dele. — Ele fez de propósito, para nos afastar daqui!
— Acho que ele não imaginou que a volta fosse demorar tanto. — Comentou Catherine, tentando acalmar os ânimos exaltados. — Ele me disse que geralmente leva um dia de viagem.
— Ah, se eu soubesse no que estávamos nos metendo... — Disse Paulo.
— Talvez por isso Nick não tenha querido contar o que vocês iriam enfrentar. — Catherine sorriu. — Vocês não teriam ido, e tenho certeza de que quando virem o filme que conseguiram vão achar que valeu a pena.
— E, mas isso só daqui a um mês. — Resmungou Paulo.
Paulo e Henry correram para suas redes e ficaram lá descansando, o resto da manhã. De certa forma Catherine sentiu-se aliviada de não ter que ficar com os dois, agora que tinha descoberto seu amor por Nick.
Gastão, bem-disposto, não parecia ter sido tão afetado quanto os americanos, e logo a seguir pôs-se a trabalhar na construção da cabana.
— Seu genro e sua filha vão ficar na minha cabana? — Catherine ouviu Nick dizer a ele. — Até amanhã isso precisa estar pronto. Hoje, porém, a americana ainda pode dormir lá mesmo, onde está.
A americana! Que modo mais frio e impessoal de falar! Depois do que acontecera entre eles, como é que Nick conseguia ser tão displicente e desligado? Nem parecia o mesmo homem que a beijara com tanto ardor, que a acariciara com tanta intimidade, e cujos olhos brilharam de paixão ao contemplá-la nua.
— Ei Dr., você não deveria mentir para si mesmo e nem para ela. Disse Gastão a olhando se afastar rapidamente.
— Gastão por favor, eu...
— Por que não diz a verdade a ela afinal?
— O que aconteceu ficou no passado Gastão. Explicou Nick.
— O destino está dando a ambos uma terceira chance. Deveria aproveitar e revelar a ela que se apaixonou por ela na faculdade. E que veio para cá para esquecer a mulher casada que o deixou de coração partido sem mesmo saber disso.
— Gastão pare com isso. E esqueça o que eu lhe disse, eu estava bêbado e...
— Tem certeza que vai permitir que outro homem conquiste o amor dela. Olhe que o destino pode se cansar de tentar lhe ajudar.
— Gastão, olha...
— Essa é a minha opinião e pronto.
Sentindo um nó na garganta, Catherine se afastou para não ouvir mais nada. Deu alguns passos, olhou para trás, e seu olhar cruzou com o de Nick por um breve instante. Ele, entretanto, tomado de surpresa, não teve tempo de disfarçar e ocultar o brilho de paixão.
Então ele ainda a queria! Catherine passou o resto da manhã, a última antes de Nick partir, tentando ordenar seus pensamentos e sentimentos, e chegou, afinal, à conclusão de que não poderia deixar o amor sair assim de sua vida. Precisava fazer alguma coisa, mesmo que com isso fosse se expor a se arriscasse a se magoar.
Porém, na hora do almoço, suas esperanças de um encontro romântico com Nick foram por água abaixo. Durante a refeição ele anunciou que iria pernoitar na aldeia, pois o cacique Eranê o havia convocado, e logo após iria para Manaus e que só iria voltar na terça-feira de manhã, antes da chegada do avião anfíbio trazendo mais provisões.
— Gastão ficará aqui para cuidar de todos vocês. — Disse ele.
Paulo e Henry continuavam exaustos pelo esforço de terem remado o barco rio acima, através das corredeiras, e Nick ignorava as indiretas e os olhares dos dois.
— Vou sair no fim da tarde. — Disse Nick, erguendo-se da mesa. — Quero que vocês dois estejam no posto médico daqui a uma hora, para eu dar mais uma olhada nesses machucados.
— Eu bem que podia ir com Nick! — Disse Catherine, assim que ele se afastou.
— Ah, agora é assim, com essa intimidade? — Comentaram Paulo e Henry, depois de terem trocado um olhar significativo.
— E que diabo você iria fazer na aldeia, Catherine? — Estranhou Henry. — Sozinha não vai poder filmar nada.
— Hum... será que é isso mesmo o que ela quer? — Disse Paulo.
— Eu só queria melhorar o relacionamento com os indígenas... levar uns presentinhos, conversar com algumas mulheres para reunir material complementar. Joana poderá ser minha intérprete. Isso poderia ser muito útil, Paulo. Da próxima vez que formos lá os três, estaremos dependendo desse outro médico, filho de Gastão. E quem garante que ele tem um bom relacionamento com os indígenas? Afinal ele está morando no Rio de Janeiro há muitos anos. Duvido que ele seja tão estimado quanto Nick.
— Está com segundas intenções, Catherine? — Disse Henry, cínico.
Catherine sabia que era besteira tentar ficar se defendendo, negando.
— E se estiver? Vocês não são meus guardiões! Eu faço o que quiser, quando quiser e com quem quiser. Não tenho que lhes dar satisfações e pouco me importo que gostem ou não.
— Hum! Que mudança, hein? — Disse Paulo. — O que será que aconteceu na nossa ausência? Será que o Dr. Nick Curran dormiu no posto médico ou...?
— Pensem o que quiserem de mim, mas não envolvam Nick nas besteiras que dizem! Não o acusem injustamente. Acho melhor vocês dois fazerem um exame de consciência e lembrarem o que fizeram quando estávamos no Rio de Janeiro. Aposto como um não sabe do outro, mas eu sei que vocês dois tentaram me agarrar e que me deram muito trabalho!
Os dois se entreolharam de novo.
— Já disse que Nick não tentou nada! E mesmo que ele quisesse... alguma coisa agora, como poderia acontecer algo lá na aldeia? Depois de uma caminhada daquelas pela selva, ainda mais com aquelas minhas botas apertadas, quem é que vai estar disposto para fazer amor? Vocês estão malucos!
— Pois eu acho que você devia ir até Manaus comprar outras botas, então... — Disse Paulo, insinuante.
— Muito engraçadinho, você. Acha que vou abandonar meu trabalho aqui pela metade?
— Ora, você não é indispensável. Além do mais estou precisando de mais filmes, os que eu trouxe estão quase todos molhados.
— Essa não! Você não levou todos eles na viagem de barco, e os que levou estavam bem fechados em sacolas impermeáveis.
— É, mas entrou chuva pelo telhado do posto e molhou tudo. Não tem jeito.
Catherine sabia que eles estavam mentindo e inventando desculpas, quis ficar brava, mas de repente percebeu que queria mesmo ir para Manaus. Não podia deixar que Nick saísse de sua vida sem tentar alguma coisa, e estava pouco se importando com o que Paulo e Henry pudessem pensar.
— Eu teria que ficar lá uma semana. — Disse ela baixando as pálpebras, — Porque o avião só vem para cá às terças-feiras.
Paulo sorriu com indulgência.
— Pois é... nós sabemos.
Uma certa decepção e muitas dúvidas assaltaram Catherine durante o vôo até Manaus. Será que tinha se enganado a respeito de Nick? Ele parecia não ter gostado nada da ideia, mas como só ficou sabendo pouco antes de embarcarem, não pôde fazer nada para impedi-la de ir.
Catherine levou poucas coisas, pois deixara guardada no hotel de Manaus uma mala com roupas de cidade.
O avião passou pela reserva, deixou um casal dentistas, os suprimentos, e seguiu viagem para cumprir sua missão semanal, ficando de passar mais tarde, na volta do trajeto, para pegar Nick e Catherine.
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