Capítulo 8 - Prazer Selvagem
"Amo tudo que é selvagem. Selvagem e livre."
Pilar olhou pela janelinha do compartimento. Estavam atravessando os campos de Lavanda austríacos, uma plantação de 10 acres e via ao longe as montanhas que faziam a paisagem dali famosa. O céu estava cinzento, pesado.
Tinha dormido pouco. Acordara antes do sol nascer, saíra do compartimento em silêncio e fora para o vagão-restaurante, onde tomara uma xícara de chá verde bem quente com torradas, vendo a noite se transformar numa pálida manhã sobre os jardins brancos de Alpen em Kitzbüheler Horn.
Depois percorrera o trem inteiro, para fazer exercício. Em seguida, fora ver tempestade. Ao voltar para o compartimento não encontrara Saria, que devia ter ido tomar café também.
Pegou as revistas e jornais internacionais que comprara para passar o tempo na longa viagem. Mas não se concentrava no que lia e constantemente olhava a paisagem monótona lá fora.
Tentava não pensar em Zayn Kardasher e na humilhação que passara nos braços dele, recusando-se a admitir que perdera o sono por causa das violentas e apaixonadas emoções que ele despertara nela. Fechou os olhos, tentando afastar o pensamento, mas aquilo tornou a sensação ainda mais vívida. Sentiu a pressão e o calor dos lábios dele nos seus, sentiu o arrepio de sua barba que crescia e provocara-lhe arrepios ao tocar-lhe a pele.
A doce-amarga tortura terminou quando soaram umas pancadinhas na porta e Saria Taylor entrou, corada e bem disposta.
— O que andou fazendo? Saiu e correu ao lado do trem? — Indagou Pilar, tentando falar de modo alegre.
— Não e por que eu faria isso afinal. — Respondeu Saria, séria, pois não achou graça alguma na brincadeira dela. — Depois do café andei durante meia hora, depois abri uma das janelas do corredor e pus a cabeça para fora, estava precisando respirar o ar gelado das montanhas e... — Disse, cheirando o ar do compartimento fechado com ar desaprovador. — Você está muito vermelha! Está doente por acaso? Pode ser febre!...
Pilar passou a mão pelo rosto e não disse nada.
— Já tomou café? — Indagou Saria, pouco depois.
— Tomei um chá quente com torradas, antes de todo mundo acordar.
— Isso não é comida para uma atleta! — Exclamou Saria, com ar mais desaprovador ainda. — Vai ficar doente sem proteínas!
Pilar admirou a energia da competidora, que parecia inesgotável. Saria mais parecia uma perfeita máquina do que uma mulher. Saiu de perto da janela, pegou uns travesseiros e sentou-se em cima das pernas, no beliche, encostando-se nos travesseiros.
— Depois dessas competições continuará seguindo carreira militar? — Perguntou, tentando conversar, depois preocupou-se: Saria podia achar que sua pergunta poderia soar como uma invasão de privacidade.
Ficou surpresa quando a outra acomodou-se no beliche, ao lado dela. Era seu primeiro gesto de intimidade, de amizade.
— Com certeza a minha resposta sempre será sim. — Respondeu. — Estou nessa carreira não por amor ao Exército do meu país, mas por amor aos cavalos... — Sacudiu a cabeça. — Meus pais nunca entenderam. Queriam que a filha fosse intelectual, como eles. Veja o que lhes aconteceu...
O monólogo foi interrompido por batidas à porta e Pilar sobressaltou-se, temendo que pudesse ser Zayn, querendo se desculpar por ter brincado com ela na noite anterior. Era apenas o camareiro, oferecendo chá. Pegou a bandeja e colocou-a na mesinha junto da janela. Suas mãos tremiam. Era besteira esperar qualquer pedido de desculpa daquele arrogante príncipe árabe que devia achar o domínio sexual sobre as mulheres um jogo onde era o vencedor e o prêmio, o domínio das vencidas na cama. Perturbada, pôs uma xícara sobre o pires com força desnecessária.
— Algum problema? — Perguntou Saria, curiosa. — Quando abriram a porta, dava impressão que você esperava ver o diabo em pessoa!
Pilar forçou-se a sorrir, enquanto dava a xícara de chá à ela.
— Não. Tudo bem... É besteira minha.
— A única coisa de que sinto falta, quando viajo, é do samovar... Você sabe, aquele chá tipicamente russo. Gosto também dos chás orientais, o chá verde faz muito bem a saúde.
O comentário lembrou Pilar do que Saria dizia pouco antes.
— Você disse que seus pais não a entendiam? — Perguntou, sentando-se, com a xícara nas mãos. — Não tentaram te impedir?
— Tentaram, mas logo viram que não adiantava. Eu ia mal nos estudos e tiveram que aceitar quando decidi entrar no exército. Os oficiais perceberam meu talento para equitação e me escalaram para defender nossa pátria em quatro Olimpíadas seguidas. — Disse, com orgulho. — Agora, faço estas corridas porque passei da idade, mas continuo defendendo a nossa bandeira... — A calma da voz dela era desmentida pelas juntas brancas dos dedos que apertavam a xícara vazia.
— Mas devem achar você importante, já que puseram dois guarda-costas para protegê-la. — Comentou Pilar.
— Entendeu mal... Ele disse que havia dois guardas no trem, mas acho que apenas um está encarregado de me cuidar. Pensei que o outro era para algum colega, mas só eu estou competindo... — Sacudiu os ombros. — Não sei para que dois. Toda essa situação foge do habitual e eu achei estranho, mas não tenho como descobrir o que está acontecendo para a mudança de protocolo.
— Mas por que tem que ser vigiada? — Perguntou Pilar com curiosidade.
— Por dois motivos... — Suspirou Saria. — Primeiro, para prevenir qualquer "embaraço" manche mais ainda o nosso país perante aos demais país que competem. Têm havido muitas fugas ultimamente... um piloto de jato, jogadores de xadrez, bailarinas, patinadores... Enfim, atletas em geral estão cansados do modo autoritário que o governo controlam suas vidas e nosso país. Não querem que o mundo ocidental tenha mais foragidos da nossa perfeita utopia... Mas a você eu posso lhe garantir que tudo é falso quando afirmo sobre essa utopia. — A voz dela era irônica. — Segundo, eles devem ter medo que eu tenha sido corrompida por algum estrangeiro... por meus pais.
— Por seus pais? — Perguntou Pilar, perplexa e mais desconfiada assim.
— Sim. Meu pai e minha mãe faziam parte do Movimento pelos Direitos Humanos, que pedia mais liberdade para os intelectuais, artistas e atletas, para que escrevessem e falassem sem censura. Foram exilados na Sibéria.
— E morreram lá?
— Sim. Não houve tortura mas, minha mãe, que era física e trabalhava na Universidade, ficou inútil ao ser privada do trabalho. E a saúde dela nunca tinha sido boa. Morreu antes dos cinco anos de exílio expirarem. Meu pai morreu um ano mais tarde, como um homem quebrado, infeliz. O amor deles era único, acredito que um jamais sobreviveria sem o outro. Sabe isso acontece quando são almas gêmeas.
— Sinto muito... — Murmurou Pilar.
— Isso passou, faz muito tempo. Eu era apenas uma jovem adulta quando tudo aconteceu. Os líderes de nosso pais não confiam em mim completamente, pois muitos deles acreditam que carrego o sangue de pessoas que um ameaçaram o sistema de governo. — Disse Saria, respirando fundo. — Agora que sabe minha vida, me conte a sua.
— Não tenho muito que contar, eu acho. — Falou Pilar, sacudindo os ombros. — Mas ajeite-se melhor... Que vou lhe falar um pouco sobre mim.
Deu um travesseiro a Saria e suspirou, antes de começar.
— Também me tornei uma corredora contra a vontade de meus pais. Esperei fazer vinte e um anos para me rebelar completamente. Até o verão passado, levei vida dupla. Ia à faculdade, morava com meus pais, mas nas férias ia participar de corridas. Cavalgar tornou-se a coisa mais importante para mim, principalmente depois que minha tia me "adotou", vamos dizer assim, ela também ama cavalos e tem a sua própria criação. Resolvi mesmo sair de casa quando meus pais me arranjaram um casamento.
— Eles não tentaram impedir você de sair? — Era a vez de Saria demonstrar curiosidade com a história que lhe era revelada. — Sempre pensei que os ricos eram muito poderosos, na América, que podiam conseguir qualquer coisa.
— Ricos? Por que acha isso? O único dinheiro que tenho são os quinhentos francos da bolsa que ganhei em algumas competições. Quando enfrentei meus pais eles praticamente cortaram todo o dinheiro, sabe, a maneira mais clássica deles tentarem me fazer voltar pra casa. — Respondeu Pilar em tom magoado, mas com certo orgulho de seu modo de agir e viver.
— Desculpe, acabei tirando conclusões precipitadas sobre algo. — Disse Saria. — Acho que me enganei por causa do seu jeito à vontade com porteiros e garçons, seu caminhar altivo, seu jeito de quem tem o mundo aos pés... Seu jeito e estilo lembra muito a personalidade do Príncipe do Deserto, sabe, Zayn é implacável em muitos momentos, mas sei que é tudo fachada. Ele possui um lado que poucos conhecem!
— Eu sou assim? — Surpreendeu-se Pilar. — Tem certeza que pareço com aquele sujeito e...
— É, vocês dois tem personalidades fortes e altivez de sobra. — Confirmou Saria com seriedade. — E não foi só seu jeito que me fez pensar que era rica. Coisas como a finura de suas botas, do seu relógio, os arreios diferentes da égua... Os dois preferem usarem produtos personalizados ou mesmo exclusivos.
Pilar remexeu-se, pouco à vontade com as observações da competidora e militar.
A conversa esfriou e Saria olhou seu relógio, simples, mas de qualidade.
— A manhã passou depressa! Está na hora do almoço. Vamos?
Pilar esticou as pernas esguias e saiu do beliche.
— Acho que não vou. Quer pedir para me trazerem um sanduíche e um copo de leite?
Saria olhou-a em silêncio, enquanto ela ia até a pia.
— Parece que está querendo evitar encontrar alguém!... — Afirmou sem retirar os olhos da companheira de viagem.
— Não seja boba! Estou apenas cansada de tantas competições e sem um pingo de paciência para conversas triviais. — Retrucou Pilar começando a escovar os cabelos.
— Tem outra característica que os aproxima demais, ambos são péssimos mentirosos!
Depois que Saria saiu, Pilar suspirou. Os olhos brilharam refletiam-se no espelho, irritados. Estava desconfiada que não ia poder guardar muitos segredos da inteligente e atenta de sua colega.
O curto e cinzento dia de inverno estava terminando quando o expresso chegou aos arredores da próxima parada programada, Viena. Se bem que ainda fosse a importante capital do império austro-húngaro, já não tinha o brilho daquele tempo onde os ricos e nobres frequentavam com mais avidez os locais turísticos. Na fronteira iugoslava houve uma breve parada para controle dos vistos nos passaportes dos estrangeiros que viajavam para as competições e mais alguns vagões serem engatados com os novos competidores. Depois o trem saiu à toda, atravessando mais algumas cidades e chegando à fronteira da Bulgária. Pensar no que estava perdendo de beleza e cultura, por estar confinada num trem com mais de vinte vagões, deixava Pilar doente. Ouviu rumores que o governo estava intensificando o controle por causa de possíveis espiões de outros país. A intensa corrida tanto era por produtos como por tecnologia, nem o comércio antes destinado ao consumo comum estava escapando ultimamente.
Acendeu a luz sobre o espelho e examinou-se, com olhos críticos: achou-se pálida e cansada. Precisa urgentemente tomar um sol, como seria bom passar pelo menos alguns dias a beira de uma praia ou mesmo alguma piscina descansando. Realmente, ela estava precisando de alguns bons dias de férias. Estava começando a se maquilar quando Saria voltou do jantar e acomodou-se no beliche de cima com um livro nas mãos. Sentiu, de novo, os olhos penetrantes da companheira observando-a.
— Viu meu treinador por aí? — Perguntou, enfim.
— Estava no extremo oposto do vagão-restaurante, longe de mim, conversando animado com um treinador japonês que embarcou a pouco.
— Gaspar sempre se anima falando de cavalos. Vive querendo saber as últimas novidades e técnicas. Mas também retribui: não se nega a transmitir tudo que sabe, toda sua experiência, aos outros.
— Notei isso mesmo. — Concordou Saria. — Ele me deu excelentes conselhos sobre meu cavalo. Respeito muito seu treinador. Sorte sua que conseguiu alguém assim. Ele parece muitas vezes um pai ou mesmo um irmão mais velho.
Ao sair do compartimento, Pilar avisou, por cima do ombro.
— Deixo meu estojo de maquilagem aí, à mão, para o caso de você resolver se divertir com batons, sombras e rímel...
Ao fechar a porta, percebeu que Saria pulava do beliche animada com a possibilidade de se maquiar. Saiu à procura do compartimento de Gaspar, que não sabia bem onde era. Estava tentando ver o número que o treinador escrevera nas costas de um recibo do hotel quando a porta de um compartimento abriu-se, pondo uma réstea de luz no corredor.
Aproximou-se da luz.
— Desculpe incomodar... — Começou —, Mas será que sabe qual é o compartimento do treinador americano Gaspar Cortez?
Uma cabeça de cabelos negros surgiu na porta e ela deu com os olhos escuros de Zayn Kardashev Abadi, que tinham um brilho de riso, curiosidade e um pouco de malícia.
— Pilar França! Sentimos sua falta, hoje, no carro-restaurante. Eu queria ver você e minha acompanhante tirando as garras uma para a outra, como duas felinas selvagens das montanhas.
Pilar recuou, como se estivesse diante de um alfa selvagem e solto. Depois, achando que aquilo era covardia, tentou disfarçar, indagando.
— Você é sempre assim arrogante e falsamente amável?
— Hum... Depois de ontem à noite eu posso ser qualquer coisa que você desejar! — Afirmou ele, devagar, marcando bem as palavras. — Pensei que fosse chegar esfregando-se na minha perna, pedindo um carinho, como a minha tigresa.
Pilar sentiu o impulso de correr, afastando-se da temida presença, mas antes que pudesse fazer um movimento, ele falou de modo tão impessoal que a paralisou.
— Já que vai falar com Gaspar Cortez, quer fazer o favor de entregar uns artigos que prometi a ele? Ainda não tive chance de encontrá-lo... — Fitou-a por momentos. — Espere aí no corredor, se prefere, enquanto pego-os.
De novo não querendo admitir medo, Pilar entrou no compartimento atrás dele, que se manteve de costas para ela, inclinado, remexendo uns em diversos papéis espalhados.
Ficou surpresa ao ver que o simples compartimento tinha se transformado de acordo com a personalidade do cavaleiro árabe, como se inconscientemente ele tivesse querido recriar seu mundo ali. Um capote da guarda real de seu país estava pendurado num cabide da parede; sob ele brilhava um par de botas de canos altos, usados pela montaria real; uma pequena estante estava cheia de livros sobre assuntos equinos e estratégias de guerra, o tão famoso e polêmico livro a Arte da Guerra, era o destaque de sua coleção. Até o ar parecia impregnado com a personalidade dele. Havia um leve odor de almiscar por todo o aposento. Na pia, estava um aparelho de barbear, loções, tubos de creme para barbear e creme dental.
Um lenço de seda vermelho-escuro fora colocado no foco de luz da cabeceira para suavizar a claridade. Inclinou-se, curiosa, para ver o colar de contas de jade que parecia ter sido casualmente largado na mesa de cabeceira. Viu o pequeno porta-retratos, provavelmente com seus pais.
— Droga, aonde eu os coloquei? Aqui estão, afinal! — Disse Zayn, ainda com voz fria. — Diga a ele para ler o relatório de rações. Se interessar, posso dar uma cópia a ele, quando chegarmos ao nosso destino, Istambul.
2523 Palavras
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