Capítulo 6 - Prazer Selvagem
"Amo tudo que é selvagem. Selvagem e livre."
Levou a égua para o boxe dela, pensando na longa viagem de trem que iriam fazer. A Sociedade Internacional de Equitação, que organizava as corridas, arranjara um trem especial para levar os competidores até Istambul pelo trajeto que era feito pelo famoso Orient Express. Afligia-se por saber que passaria dois dias e meio no mesmo trem que Zayn. Sabia que ele ia agitar a vitória diante do nariz dela sempre que tivesse chance.
Como refletindo a agitação dela, escovou a égua com mais força. Tempestade voltou a cabeça e olhou-a, como que surpresa.
— Desculpe, garota! — Murmurou Pilar, contrita, continuando a escovar com mais atenção e delicadeza.
Afinal, passou as bandagens nos tornozelos do animal e disse um pouco mais calma.
— No fim, vamos ganhar dele, Tempestade. De um jeito ou de outro! Eu prometo. Nosso orgulho feminino exige isso.
Havia uma enorme confusão na Estação do Leste, ponto de embarque e desembarque das ferrovias que cortavam o continente europeu. O barulho rítmico das locomotivas escoava ao longo das plataformas, trens chegavam e partiam, faíscas douradas saltavam dos pontos em que os metais se chocavam. No fundo da estação Pilar viu o letreiro Transport Chevaux de France Continental nos vagões de trás do trem, onde os cavalos estavam acomodados para viajar até Istambul.
A viagem poderia ser feita também de Bucareste a Istambul em trem noturno direto Bosphorus Express. A conexão ferroviária Paris (França) - Istambul (Turquia) passa pela Itália, de balsa para a Grécia e depois para a Turquia. Também é possível viajar via Zurique (Suíça), Budapeste (Hungria), Bucareste (Romênia) para Istambul (Turquia). Há 13 rotas para ir de França para Istambul de avião, trem, ônibus, trem noturno ou carro...
Olhou a multidão, tentando ver a cabeça grisalha de Gaspar. Desistiu e subiu os degraus de aço do vagão cujo número figurava em sua passagem.
Estava ajeitando sua frasqueira no bagageiro do estreito compartimento quando bateram à porta. Abriu. Era uma mulher de olhos negros.
— Desculpe... — Disse ela num inglês em que se percebia forte sotaque estrangeiro. — O chefe do trem me indicou este compartimento...
Pilar reconheceu a Amazona italiana que pegara o terceiro lugar.
— Entre! Eu achei que era uma extravagância darem um compartimento para cada passageiro. — Sorriu, procurando pôr a mulher à vontade. — Você é a capitã da reserva Saria... Saria...
— Taylor, sou na verdade ex-tenente da cavalaria britânica. Mas foi contratada para correr por outro competidor, o seu jóquei principal se machucou dois dias antes da corrida. — Ajudou a outra explicando o máximo que poderia, antes que Pilar lhe perguntasse mais alguma coisa. — E você deve ser Pilar França. Correu muito bem!
— Obrigada. Você também!... — Retrucou Pilar, com um sorriso.
— Não tão bem quanto eu queria...
Aquelas palavras pareceram a Pilar um eco de seus próprios sentimentos quando soubera que Zayn a derrotara por um nariz. Cada competidor tinha seu motivo para vencer.
— Sinto incomodar-lhe... — Disse ex-militar britânica. — Sei que os americanos estão acostumados com conforto. Teria pedido para ficar com uma compatriota, se houvesse alguma aqui. Eu não ia de trem para a próxima competição, mas meu treinador foi chamado as pressas de volta para Moscou e tive que vir para cuidar de Bóris...
Pilar deixou passar a insinuação sobre o luxo dos americanos. Sentou-se e observou a competidora. Não era jovem como imaginara. Era de pequena estatura e o corpo enxuto que davam impressão de juventude. Ela devia ter mais de trinta anos.
— Ia de avião particular? — Perguntou, só para conversar.
— Sim. Não tem sentido perder mais de dois dias viajando quando poderia estar trabalhando. Detesto perder tempo com bobagens, como isso.
Uma luz divertida brilhou nos olhos expressivos de Pilar.
— Queria chegar na frente de todos nós, então, hein?
A britânica naturalizada russa agora enrijeceu-se e Pilar percebeu um brilho de raiva nos olhos dela.
— Eu gostaria de fazer tudo o mais depressa possível. Não tenho culpa se a maioria dos competidores preferiu viajar de trem.
— Eu só estava brincando... — Disse Pilar, sentindo que também começava a esquentar.
Seguiu-se um silêncio pesado, até que o trem se movimentou. Pilar ergueu-se e foi olhar pela janelinha.
— Lá vamos nós! — Informou, observando as luzes dos prédios que se tornaram manchas brilhantes, alongadas, quando o trem aumentou a velocidade.
Saiu da janela e acendeu a luz em cima do espelho da pia. Sentiu que Saria olhava enquanto passava sombra nas pálpebras, depois aplicava rímel nos longos cílios. Terminou com leve colorido nas faces e um toque de batom vermelho-cereja nos lábios. Voltando-se para a severa capitã ofereceu o estojo de maquilagem.
— Quer usar alguma coisa?
Ela recuou como se Pilar tivesse oferecido veneno.
— Não, obrigada. Não tenho tempo para essas... — Procurou a palavra adequada —, para essas futilidades. Estou aqui para competir e não para caçar pretendentes.
Antes que se seguisse outro silêncio pesado, Pilar lhe disse.
— Vou procurar meu treinador, para jantarmos. Quer ir?
Convidara por educação, achando que a outra ia recusar e surpreendeu-se ao vê-la aceitar, depressa. Talvez a companheira inesperada, por trás da atitude fria e dura, se sentisse muito só.
Encontraram o vagão-restaurante depois da indicação do amável chefe do trem. Pilar logo viu Gaspar numa mesa de seis lugares.
— Gaspar Cortez, juro que você vai morrer pelo estômago! — Disse, com severidade brincalhona.
— Só tenho que concordar! — Riu ele, largando a colher no prato de sopa.
Depois das apresentações, Gaspar exclamou.
— O seu cavalo é valente e de confiança, senhorita! Sempre admirei os cavalos Oryol e dos cavalos Rostopchin! A fusão dessas duas raças são incriveis.
— Obrigada. — Os olhos dela suavizaram-se diante do elogio para seu cavalo. — Bóris é um excelente animal.
Quando estava lendo o menu, Pilar percebeu que Saria olhava para a extremidade do vagão. Diante do olhar intrigado de Pilar, Saria disse, com um sorriso que mais parecia uma careta.
— Está imaginando por que estou olhando para aquele homem... — Acenou com a cabeça na direção dele. — É o que vocês chamam de guarda-costas. Ele me acompanha por todo canto.
— Ah! É encarregado de proteger você? — Indagou Pilar, observando o homem que lia um jornal enquanto comia.
— Na verdade, está encarregado de me impedir de fazer alguma loucura... — Indicou a extremidade oposta do vagão. — Aliás, ali está outro. Outro "guarda-costas", Srta. França.
— Por favor, me chame só de Pilar. — Pediu ela.
— E você, me chame de Saria apenas...
— Que nome lindo! — Exclamou Pilar, contente por mudar de assunto.
— Obrigada. Foi meu pai que escolheu. Era um pesquisador da história mundial e
admirava muito as diversas culturas, por isso acabou escolhendo um nome assim.
— Seus pais moram em Moscou também? — Perguntou Pilar, interessada.
— Não. Eles morreram a muitos anos atrás. — Respondeu Saria, com voz apagada.
Pilar estava desistindo de manter a conversa quando percebeu que duas pessoas tinham se aproximado da mesa. Seus olhos viram, primeiro, um par de coxas musculosas cobertas por calças escuras; depois ergueram-se para uma camisa preta de seda nobre, aberta no peito, deixando ver pêlos negros.
Continuou erguendo irresistivelmente a cabeça até encontrar os brilhantes olhos claros indagadores. Mas recusou-se a sustentar aquele olhar e fitou a companheira de Zayn, com um revelador vestido de noite, a mão possessiva apoiada ao braço dele. Era a famosa Laetitia Casta, a jovem herdeira que tentou monopolizara a atenção de Zayn no baile da embaixada horas atrás. Pelo jeito a jovem milionária já havia conseguido chamar a atenção do princípe do deserto.
— Fez uma linda corrida, Srta. Taylor. — Dizia Zayn para Saria que o observava.
— Obrigada, monsieur... — Respondeu Saria, com formalidade. — Parabéns pela vitória espetacular.
— Podemos jantar com você? — Perguntou ele.
Pilar não respondeu, mas seu silêncio foi encoberto pela boa acolhida de Gaspar e Saria aos recém-chegados.
Sem dar a mínima atenção às três mulheres, Zayn voltou-se para Gaspar, conversando com ele sobre prós e contras de certa alimentação para cavalos.
Os olhos cor de âmbar de Laetitia Casta percorreram Pilar e Saria, por cima da mesa.
— Devo me sentir privilegiada por estar na mesa dos vencedores! — Disse, com voz indiferente. — Deu muito que falar hoje, depois da corrida, Srta. França. Surpreendeu a todos pela impressionante forma, apesar de sua... excessiva beleza feminina pelo que todos estavam comentando.
Antes de replicar, Pilar observou o busto volumoso que sobressaía do amplo decote que não deixava muito campo para a imaginação e as longas unhas esmaltadas em tom dourado, que revelava ignorância completa dos cuidados diários para com um cavalo.
— É claro que corre apenas por divertimento, uma vez que não liga para terminar ou não a corrida, deixando o lugar para os outros.
Laetitia Casta calou-se por momentos diante da velada insinuação de que seu cavalo, Ônix, fora um dos primeiros a caírem. Olhou ao redor, depois falou como se Pilar não tivesse dito nada a ela.
— Já que a confederação resolveu fretar um trem para nós, devia ter fretado o velho Trem Azul, do Orient Express. Estaríamos viajando em suntuosos ambientes de cetim adamascado e veludo, em vez de estar neste trem sem atrativos...
— Se acha assim tão ruim, por que não pegou um avião, em vez de se submeter à tortura de tão longa viagem?
Essas palavras, aparentemente inocentes, tinham um significado diferente diante do olhar de Pilar para a mão delicada e bem feita que se mantinha no braço de Zayn. A herdeira riu com desdenho.
— Encaro isto como uma aventura, vous comprennez? Há tão pouco disso na minha vida. Aliás, não me agrada muito ir para terras desertas. As cidades são barulhenta e muito sujas. Me faz lembrar de muitas cidades da Europa também. A França por outro lado é bem diferente!...— O rosto de boneca de Laetitia contraiu-se numa careta de nojo.
— A diversas cidades espalhadas pelo mundo todo que são o centro de várias civilizações a mais de cem anos! — Disse Pilar. — Enquanto nossos antepassados eram apenas barões medievais lutando entre si, os otomanos forjavam grandes impérios, produziam grandes matemáticos e sábios... A cultura de cada país é diferente e possui ao seu valor!
Falava com uma convicção que impressionava, como se fosse uma cidadã sem fronteiras. Os fatos a que se referia eram desconhecidos para ela até horas atrás. Tio Emir, durante o almoço no dia anterior, é que lhe dera uma ideia de algumas cidades para onde eles deveriam passar e ela prestara atenção, pois gostava de saber a respeito dos lugares onde ia. Não imaginava que iria usar aquilo para contradizer a detestável Laetitia Casta.
— Acho... — Continuou Pilar, com ar pensativo. — Que é fácil a gente imaginar como era aquela cidade nesses áureos tempos.
Laetitia fez um muxoxo, mas antes que continuassem a ácida conversa, o garçom começou a servir o jantar.
Pilar começou a comer, percebendo os olhos de Zayn fixos nela. Poderia jurar que havia uma sombra de sorriso no rosto arrogante. Encarou-o, mas ele já estava olhando para as outras mulheres da mesa e Pilar teve impressão de um sultão fitando com altivez as peças de seu harém. O sangue dela ferveu ao pensar nisso. Será que ele tinha ouvido a troca de palavras entre ela e Lartitia?
Saria estava conversando com Zayn quando ela terminou de comer e falou com seu treinador.
— Gaspar, se quiser, pode ficar aqui e tomar um conhaque com o capitão Kardasher. Eu vou ver se está tudo certo com a Tempestade.
— Obrigado, Pilar. Você é uma grande garota!
Ela sorriu, levantou-se, cumprimentou os companheiros de mesa e saiu do vagão-restaurante. Ao passar pela mesa da extremidade, lembrou do que Saria dissera sobre os guarda-costas. Olhou o homem, curiosa, mas ele não ergueu a cabeça. Pilar sentiu pena dela que, pelo jeito, não era dona da própria vida. Pois qualquer um que aceitasse trabalhar para os russos tinha que se submeter a rigídas regras contratuais, muitos acabavam perdendo quase que sua liberdade.
Estremeceu em pensar em alguém vigiando todos os seus movimentos, fazendo relatórios para as autoridades, pronto para impedir que ela cometesse qualquer "loucura". O que Saria quisera dizer com aquilo?
2013 Palavras
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