Capítulo 40 - Prazer Selvagem
"Amo tudo que é selvagem. Selvagem e livre."
Os agitadíssimos três dias da competição tinham ficado curiosamente gravados na mente de Pilar, parecendo figuras de um telescópio. Concentrara-se apenas nas corridas. Só vivia naqueles momentos, o mais sendo horas vazias e noites insones no Sheraton.
Tentara convencer-se de que a situaçمo entre ela e Zayn iria se resolver de alguma maneira, antes que se separassem para sempre. No entanto, estava se convencendo de que ele tivera razão: não havia a menor possibilidade para ambos, no futuro.
Desde o jantar no hotel não tinham conversado mais. Apenas se haviam cumprimentado de passagem ao se encontrarem na pista de corridas. A ironia tremenda era que justamente as confidências que poderiam uni-los mais os havia separado. Eram agora mais estranhos um ao outro do que naquela distante manhã de frio outono em Paris e nos EUA, quando se haviam encontrado.
Simplesmente, Pilar tinha vontade de abraçar Zayn e pedir-lhe que esquecesse tudo mais, porém reconhecia a infantilidade e impossibilidade de tal atitude. Zayn era um enfeitiçado por sua terra; ela não podia fazer nada para ajudar e respeitava-o ainda mais por sua atitude digna. Era outra ironia que magoava: quanto mais o amava por seu respeito e devoção a Aysun e sua nação, maior era o sofrimento em aceitar que o perdera.
Pilar participara das duas primeiras partes da competição: distância e obstáculos baixos, como um autômato. O corpo ágil e bem treinado agia por si, enquanto os pensamentos voavam longe. Incrivelmente, tivera os melhores resultados de sua vida, apesar de esperar o contrário. O fato de estar com o pensamento fixo em outra coisa servira para que se relaxasse completa e inconscientemente, mãos e pernas, de modo que o excelente treino de cavaleira e montaria tinha dado excelente resultado.
Ficara surpreendida ao ver os resultados dos dois primeiros dias de competição: Pilar França, a filha do então congressista Marcelo França estava estampada em todas as revistas e jornais agora, e sua pontuação na competição em primeiro lugar era um mero detalhe, com o capitão e herdeiro Zayn Kardashev Abadi em segundo. Um mês atrás ela achava que isso seria o máximo de realização.
Agora, nem estava ligando. Na realidade, sabia que não podia suplantar o soberbo cavaleiro das estepes, o príncipe do deserto que tanto aprendeu a amar. Pilar desconfiava que os pensamentos dele, como os dela, estavam presos à última e amarga conversa dos dois, fazendo-o desinteressar-se das emoções e desafios das corridas. O futuro não o interessava.
O último dia de competiçمo estava brilhante, frio e claro. Era véspera de Natal, mas os costumeiros cumprimentos tinham sido esquecidos na tensão da terceira prova: a duríssima "hipisco-cross", através dos campos.
A situação tinha se invertido completamente: Pilar mantinha-se numa calma imperturbável, enquanto Gaspar estava tenso como as cordas de um violino. Mas não estava nervoso por sua pupila, mas sim pela pequena russa que conseguira uma posição razoável nas duas primeiras fases da competição. Se Saria conseguisse se manter no sexto lugar, até o final, provavelmente seria enviada para participar das provas de primavera na Grã-Bretanha.
Gaspar havia informado Pilar disso num calmo otimismo, certo de que aquela era possibilidade. Pelo bem de Saria, Pilar desejara que Gaspar tivesse razão. A outra possibilidade, caso a russa voltasse para Moscou derrotada, era nunca mais se encontrarem.
O jovem médico Cam Guzman, também agora fazia parte da torcida em prol de Saria e ambos estavam mais íntimos apesar dos acontecimentos.
Estava tão compenetrada pensando em Cam e Saria que não reparou no garanhão que dirigia-se diretamente para ela, ultrapassando as estrebarias e entrando na pista de corrida. Quando viu, parou. O bem treinado Maktub, que caminhava com ele a longa rédea, também parou de imediato.
Roger Fishermann, o homem da maior confiança de seu pai, estava ao volante do carro que parou junto dela. No momento seguinte, Marcelo França e Humberto Couto saltavam sob o fraco sol de dezembro.
— Boa sorte para hoje, querida. — Disse o congressista à filha, beijando-lhe o rosto. — Acabei ficando seu fã, depois das duas primeiras corridas. Estou impressionado. Você é mesmo uma profissional. E sua mãe já está contando vantagem por ter uma filha tão talentosa.
— Obrigada, papai... Pelo jeito a mamãe se adaptou muito bem a sociedade desse país. — Sorriu Pilar. — Se você tivesse me visto num cavalo nestes últimos seis anos não se espantaria tanto com minha habilidade.
Antes que o sr. Marcelo pudesse dizer alguma coisa, Pilar cumprimentou o bem-apessoado industrial.
— Está cavalgando como um sonho, miss França... quero dizer, Pilar. Na certa irá conseguir o máximo hoje. — Disse Couto, com seu jeito atencioso.
— Obrigada, Humberto. — Pilar sorriu calorosamente, satisfeita não só com o cumprimento como por ouvi-lo empregar seu nome.
Voltou de novo a atenção para o pai, enquanto ele passava a mمo enluvada pelo pescoço do garanhão.
— Você e está maravilha da natureza são magníficos juntos, Pilar. Por que não me deixa compra-lo para você como presente de Natal? — Os olhos cinzentos do congressista tinham uma expressão especulativa.
Pilar estava intrigada com a repentina mudança de atitude do pai. Poucos dias antes ele a chamara de fracassada e insistira em que voltasse imediatamente para os EUA. Agora a reconhecia como uma vencedora e queria apoiá-la. O que era no minimo muito estranho.
Sentia-se lisonjeada e, ao mesmo tempo, precavida. Sabia que a oferta generosa do pai podia prender-se a outra tentativa de controlar-lhe a vida e não queria isso. Respirou fundo antes de responder.
— Agradeço muito, papai, mas tenho que recusar esse presente. Maktub é de Zayn e pertence à Turquia. Além disso, Tempestade está bem melhor e vai ficar boa em algumas semanas.
— É o seu orgulho e não a razão que está falando como sempre. Pelo jeito você e o príncipe do deserto são idênticos, tenho dó dessa nação caso os dois resolva entrar em guerra um contra o outro futuramente. — Constatou Marcelo, aborrecido com a recusa da filha.
— Que história é essa afinal?
— Nada, ora essa. Um pai não pode sonhar em tornar a sua filha feliz e ainda por cima soberana de uma nação.
Olharam-se num silêncio teimoso e iriam discutir se um barulho de cascos não os distraísse. Os olhos de Pilar arregalaram-se ao ver Zayn aproximando-se, a pele bronzeada pelo sol do deserto e os olhos negros realçados pelo uniforme da competição, de um negro aveludado com detalhes dourados. Desmontou.
— Bom dia, Pilar. — Não havia a menor emoção na voz dele. Depois, voltou-se para o empresário e estendeu a mão. — Couto... — Cumprimentou, com educação. — Acho que já nos encontramos antes. — Os olhos de Zayn tinham um brilho de divertimento e desafio.
O industrial hesitou uma fração de segundo em aceitar a mão estendida.
Ao ver aquilo, Pilar lembrou do encontro dos dois no restaurante da Torre Gaiata e não pôde deixar de sorrir. Era claro que Zayn não ligava a mínima à posição social, ao poder. Tocou de leve num braço de Zayn.
— Acho que não conhece meu pai. Zayn Kardashev Abadi, este é o congressista Marcelo França.
Teve que segurar o riso ao ver a expressão do pai. Apesar de Marcelo França ser alto, tinha que erguer a cabeça para encarar Zayn. Em geral, era ao contrário e uma das principais táticas de intimidação do congresssita americano era olhar os outros de cima. Como se quisesse anular a desvantagem, França dirigiu-se ao turco com voz arrogante e fria.
— Quero comprar seu garanhão, alteza.
Zayn deu uma risadinha.
— Isso é um cumprimento para meu cavalo e para a amazona que a cavalga tão bem. Mas Makub não está à venda.
— Vamos, alteza! — Insistiu França, impaciente falando de igual para igual com Zayn. — Sei que está precisando de dinheiro e estou disposto a pagar muito bem por está montaria... — E disse uma soma que fez os olhos de Pilar se arregalarem.
Os músculos dos maxilares de Zayn começaram a pulsar ao ouvir a referência do parlamentar à sua necessidade de dinheiro. Com tremendo esforço de vontade, dominou-se e disse, por fim.
— Mais uma vez, Sr. França, tenho que recusar.
Houve um silêncio tenso e, com ar casual, o americano disse o dobro da soma que tinha oferecido. Zayn sacudiu a cabeça numa atitude de desdenhosa recusa que fez a pressão de França subir perigosamente.
— Caro principe do deserto, é assim que o chamam por aqui, não é mesmo... — Começou, e sua voz tinha a dureza de um diamante. — Todo homem tem seu preço. Quanto quer?
Zayn cruzou os braços ao peito, de maneira acintosa, e encarou friamente o político.
— Vejo que o senhor e sua filha são muito parecidos. — Observou, num tom que era cortante como uma navalha. — Sua riqueza pode comprar muita coisa, Sr. França, mas não pode substituir os valores básicos do orgulho e da honra de um turco. Quanto mais cedo o senhor compreender isso, mais cedo vai me entender. Passe bem, senhor. — Voltou as costas e encaminhou-se para as estrebarias.
Pilar ficou olhando para ele, os olhos claros como que lhe acariciando os ombros fortes. Sentiu uma fome enorme daquele corpo. Tinha lágrimas nos olhos quando montou makub.
— Maldito Zayn Kardashev Abadi! — Disse a si mesma. — Como pode deixar o orgulho ser mais forte do que o amor?
Depois de dizer um rápido até-logo ao pai e ao amigo dele, esporeou os flancos de Maktub e o garanhão galopou na direção oposta à das estrebarias. Pilar estava contente com uma coisa: Zayn não se submetera a seu pai, vendendo-lhe o cavalo. Nenhum dos dois ia ser mais um brinquedinho de Marcelo França!
Nisso seu pai sorriu satisfeito constatando que Zayn, o intitulado príncipe do deserto seria o homem perfeito para comandar seus negócios e garantir segurança e uma próspera felicidade a sua filha Pilar. Ambos apesar de teimosos como ninguém estavam passando em cada teste que a vida, ele e a família real estava realizando.
Pilar entrou no banheiro de senhoras e foi para a fileira de pias de porcelana. Sorriu tristemente ao seu reflexo no espelho. Os cinco quilômetros de galope em terreno agreste tinham sido uma difícil e dura tarefa, como ela esperava e como seu aspecto cansado, sujo, demonstrava.
Vários cavaleiros tinham sido jogados fora da montaria durante essa dura prova final e Pilar mesma levara uns sustos muito sérios quando Maktub, mais de uma vez, enterrara-se na lama até quase as coxas. Mas o valente garanhão saíra-se bem todas as vezes.
Já não havia dúvida de quem vencera as corridas. Impulsionado por sombria mistura de orgulho e fúria sufocada, Zayn manejara Tornado como se estivesse numa guerra. O valoroso Maktub tinha seguido o corcel negro de perto, mas jamais fora ameaça séria para ele.
Agora, ao contrário do que acontecera nas outras competições, Pilar estava feliz por Zayn ter vencido. Se bem que ela mantivesse o primeiro lugar, por causa da vitória nas duas etapas anteriores, era o cavaleiro turco o responsável pela excitação e grandeza da última corrida, com a audaciosa performance no traiçoeiro e perigoso percurso. Na verdade, o triunfo era dele.
O sorriso de Pilar dissolveu-se em tristeza enquanto ela molhava uma toalha de papel e limpava a poeira do rosto. Estava terminado. Zayn iria para Aysun com a noiva, enquanto Pilar ficava com a fita de vencedora. Parecia mentira que achara tão importante vencer e, agora, sentia-se desanimada e vazia.
De repente, ouviu soluços aflitos e ergueu a cabeça. Relanceou os olhos pela fileira de cabines com chuveiros e um par de botas negras sobressaindo de um deles. Os soluços ficavam mais fortes.
Aproximou-se, abriu a cortina e viu Saria sentada no chão, o rosto escondido entre os braços, os ombros frágeis sacudidos pelo pranto.
— O que foi, Saria? — Murmurou Pilar, penalizada, erguendo a russa do chão e abraçando-a com carinho.
Por longos minutos, ficaram abraçadas, a mulher pequenina, e cacheada, chorando e Pilar alisando-lhe os cabelos.
Quando, enfim, Saria conseguiu dominar o choro e afastar-se, Pilar ficou chocada: o rostinho da russa estava empastado de poeira e lágrimas, uma das faces tinha um grande arranhão, com sangue já seco. Pilar segurou-a pelas mمos e levou-a a uma das pias. Molhou uma toalha de papel e limpou o rosto de Saria.
— Não quer falar a respeito? — Perguntou, suave, reparando nas roupas desalinhadas e rasgadas.
Saria sacudiu a cabeça.
— Desculpe a minha atitude infantil, Pilar.
Pilar pegou a moça pelos ombros.
— Você pede desculpa por ter uma reação humana? — Brincou, de leve.
— Você já aprendeu a rir, Saria querida. Agora, sabe também chorar. e olha que a vejo chorar pela segunda vez.
Saria sorriu, triste.
— É verdade, Pilar. Eu aprendi, sim, só que tarde demais... — Os olhos escuros espelhavam profunda tristeza. — Acho que você desconfia o que aconteceu. Eu caí da minha montaria e... perdi toda esperança de vencer. Estou acabada.
— Sim... E está preocupada com o que vai lhe acontecer.
— Isso eu sei. — Saria fez um gesto para a alta janela. — Eles estão me esperando para me levar ao aeroporto.
Pilar subiu num banquinho e espiou para fora. Um carro grande, preto, estava parado no pátio. Havia um motorista ao volante e na parte de trás estava os agentes que faziam a segurança particular de Saria, o oficial do Consulado que fora buscar Saria no apartamento de hotel de Pilar. Viu o guarda-costas dela, que já era familiar, aproximar-se do carro. Falou com os outros dois pela janelinha, antes de se voltar para a pista, do outro lado. Era claro que estavam esperando por Saria para levá-la embora. Desceu e parou diante da pequena tenente.
— A escolha é sua, Saria... — Começou a falar, devagar. — O que você quer de verdade?
Os olhos ansiosos de Saria mergulharam nos de Pilar.
— Ficar com Cam aqui na Truquia. — Respondeu com simplicidade.
— Tem certeza disso? — Perguntou Pilar.
Saria fez que sim com a cabeça.
— Então... quer... quer se refugiar?
— Sim... — Saria acenou com a cabeça, reforçando.
O coração de Pilar começou a bater com tanta força que ela teve impressمo que os homens lá fora iam ouvir. Com esforço, dominou o medo.
— Espere aqui, Saria. Não ponha o nariz para fora antes de eu voltar!
As duas se abraçaram, depois Pilar saiu para o corredor deserto.
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