Capítulo 31 - Prazer Selvagem
"Amo tudo que é selvagem. Selvagem e livre."
O grande e austero quarto havia sido invadido pela luz fria da manhã quando Pilar abriu os olhos, confusa. Aquele despertar era diferente do que tivera na tenda curda. Dormira sozinha essa noite. Com um suspiro, levantou-se e caminhou descalça pelas lajes frias, até a janela que dava para os campos. O céu estava pesado de nuvens escuras. Logo a neve estaria caindo por ali e ela deveria estar de volta a Istambul.
Depois do banho, enquanto escovava os cabelos, pensou no jantar da noite anterior. Graças ao monólogo contínuo do avô Osman, o jantar em família não fora assustador como ela temera. Zayn falara pouquíssimo, parecendo estar com o pensamento longe. Leona Fisher falara menos ainda e seus olhos voltavam-se constantemente para Pilar. Ela pusera o vestido de seda claro, seu preferido, e um par de pequenos brincos de ouro e brilhantes. Guardara os brincos de jade, triangulares, que a jovem curda lhe dera, no fundo da caixinha de jَoias, como preciosa lembrança de um acontecimento mágico, junto com a fotografia dela e Zayn em Eyüp. Como toque final, prendera os cabelos luminosos num coque, simples e elegante. Notara o olhar aprovador de Zayn, quando tinham ido juntos para a sala de jantar. Em seguida a expressão dos olhos dele tinha se tornado indecifrável.
Sacudiu a cabeça, diante do espelho do banheiro, para afastar os pensamentos. Pôs a calça de veludo e couro preto e o suéter de gola rolê vermelho que acentuava sua palidez hibernal.
As botas ecoaram na escada de pedra quando desceu para o primeiro andar, estranhamente vazio àquela hora. Achando a sala de almoço e o hall vazios, foi até a porta da biblioteca e abriu-a, hesitante. Um pequeno quadrado de luz, vindo da lâmpada de mesa da alcova, punha uma mancha luminosa no tapete. Antes que ela se movesse, uma cadeira foi empurrada para trás e logo depois o rosto atraente, mas muito sério, da Sra. Leona Fisher apareceu diante dela.
— Bom dia!... — Cumprimentou, seca. — Espero que tenha dormido bem. Todos já tomaram o café da manhá, mas você pode se servir, no aparador da sala de almoço.
Antes que Pilar pudesse falar, ela voltou a sentar-se e a mergulhar na leitura de um livro. A moça sentiu-se como perdida.
Onde estaria Zayn?
Tinha viajado tanto para ele sumir tão depressa?
Comeu sozinha na enorme sala de almoço, com móveis de nogueira. Era seu primeiro encontro com um desjejum turco: queijo de cabra, azeitonas, pão sem fermento ou com e geléias variadas. Estava tomando a segunda xيcara de excelente chá de jasmim quando a Sra. Leona Fisher entrou e sentou-se à mesa.
— Espero que não estranhe demais a comida. — Disse, com a sombra de um sorriso nos lábios.
— Não... — Respondeu Pilar, com um clarão de desafio nos olhos claros. — Só que prefiro algo mais substancial como o café da manhá dos curdos, com ayran.
Para surpresa de Pilar, a Sra. Leona riu.
— Esqueci que você viajou com nossos conterrâneos... e acho que a julguei apressadamente. — Anos atrás eu estive na mesma posição que você está agora!
— Talvez... — Respondeu Pilar, suave, olhando mais atentamente o pulôver tricotado, a saia longa, com cortes dos lados, e as botas pretas que a outra usava; parecia pronta para cavalgar. Indagou.
— Onde estão todos?
— Você quer dizer meu filho Zayn? — Disse a Sra. Leona, depressa. — Ele terminou os preparativos para levar Maktub para Istambul e agora deve estar cavando buracos para mourões, consertando cercas... — Serviu-se uma xícara de chá antes de continuar. — Como você deve ter notado, meu filho é um homem muito impulsivo. Quando tem problemas pessoais, refugia-se no trabalho pesado. Mesmo estando na primeira linha de sucessão, ele não abandonou a vida simples.
Pilar corou ao ouvir aquilo, mas sua voz soou firme.
— Qual é o problema dele, agora?
Leona Fisher, com um brilho zangado nos olhos, deixou de rodeios.
— Você está apaixonada por Zayn, não? Por favor, não tente negar. — Acrescentou, rápida, quando Pilar abriu a boca. — O que há entre vocês é claro como a luz do dia. Só um cego não perceberia.
Pilar mordeu os lábios, mas não desviou os olhos do penetrante olhar de Leona. Depois, disse, fria e controlada como só os alemães sabem ser e fazer.
— Não entendo o que vocês têm a ver com isso.
— Minha cara, todos nós temos a ver.
— Está agindo como sua enteada Latifa... -— Disse Pilar, frustrada. — Ela me olhava como se eu fosse uma serpente venenosa.
A Sra. Fisher sorriu, suave.
— A meia-irmã de Zayn às vezes deixa-se levar pelo gênio brusco, Latifa tem muito de sua mãe na verdade. Mas ela agiu assim pelo bem do irmão. Ela quer o bem para todos.
— Que bem o casamento de Zayn com Laetitia Casta ou Zarra Saad pode trazer para vocês? — Perguntou Pilar, impaciente.
A Sra. Fisher ergueu-se da mesa, demonstrando que a conversa tinha terminado.
— Infelizmente Zayn não pode mostrar Aysun a você, mas eu a acompanho com prazer para conhecer nosso refúgio. Vamos?
Pilar não tinha muita vontade de passar o dia com a mãe de Zayn, mas sabia que não podia recusar o convite: seria infantil caso fizesse isso. Além de ser considerado um ato desrespeitoso para a cultura deles.
— Vamos... — Disse, resignada. — Gostaria de ver tudo.
Cavalgavam para o nordeste, na direção de uma cadeia de montanhas com os picos ocultos pelas nuvens. Pilar tinha que admitir que Leona cavalgava tão bem quanto o filho. Percebeu um olhar dela e compreendeu, com orgulho, que a mãe de Zayn tinha que admitir isso, também, sobre ela.
Apesar do peso que tinha no peito, sentia-se emocionada diante da grandiosidade daquelas terras e entendia a dedicação de Zayn: era a herança magnífica de uma geração à outra.
Quando alcançaram um terreno menos acidentado, Leona falou, como se tivesse adivinhado os pensamentos de Pilar.
— Temos mil e quatrocentos acres de terra. Quando o pai de Zayn e eu nós unimos, uma parte dela se tornou minha, e a outra da dele. Hoje essas terras são todas de Zayn, uma maneira de dar mais segurança e autonomia para ele.
Pilar hesitou um instante, depois, lembrando que Leona gostava de franqueza, dizendo.
— Zayn me contou sobre o aspecto simbólico do casamento de vocês na época.
— Será que você sentiu pena por essa união? — Indagou a mulher, sorrindo. — Por favor, não desperdice sua generosidade comigo. Tanto eu quanto ele quisemos esse casamento, mas infelizmente os acontecimentos do passado nós separaram. — Havia força e orgulho na voz de Leona, que de novo lembrou muito o filho.
Não sabendo o que dizer, Pilar perguntou.
— Para onde estamos indo?
— Para a aldeia que me recebeu como filha anos trás, onde as colinas começam a se transformar em montanhas. Quando vim para cá, não foi fácil. Tive que me adaptar e lutar contra muita coisa para viver o amor que sentia. — Respondeu ela, esporeando o cavalo, que saiu a galope. Rashid e Osman estão nos aguardando.
Pilar seguiu-a, sentindo-se entusiasmada e, ao mesmo tempo, meio assustada com o encontro que teria com o pai e o avô de Zayn daqui a pouco.
O povoado de casas de tijolos surgia logo adiante, num vale. No centro havia uma praça enorme, quadrada, que era a feira onde as mulheres faziam suas compras. Entre os cumprimentos do pessoal, a Sra. Leona Fisher ia mostrando os edifícios principais a Pilar: uma pequena mesquita, o banho público, a escola rústica e o velho cemitério cravado numa antiga montanha a alguns quilometros do povoado.
Entraram por uma rua e cavalgaram para uma mansمo de pedra, isolado, com uma espécie de torre do lado direito da porta, que se abriu. Um homem alto, forte, com farto bigode grisalho, parou no umbral e ficou esperando que se aproximassem. Leona falou, com amor.
— Esse é o pai de Zayn, o sheik Rashid Maktoum Kasdashev Abadi. Ele era uns poucos anos mais velho que Leona.
Pouco depois as duas desmontavam e Pilar olhava o homem, fascinada, enquanto ele abraçava Leona com carinho e respeito. Apesar da idade ele ainda conservava a agilidade de um grande líder. Quando voltou-se e sorriu pra ela, ficou chocada: os olhos negros, enormes, tinham a mesma expressão que os de Zayn. Aquele homem era um reflexo mais velho do filho: forte, firme e orgulhoso. Os olhos claros de Pilar brilharam, sorridentes, em resposta, e o monarca turco sentiu a intensidade da inteligência e firmeza dela.
Voltou-se para Leona, que estava retirando livros, revistas e pacotes de pães das sacolas da sela. Olhou de novo para Pilar, depois perguntou algo a Leona, que fez não com a cabeça. O monarca disse mais alguma coisa e Leona respondeu um tanto irritada.
Pilar não reparou na troca de palavras: estava encantada com a mansão, pois ela parecia mais um castelo feito de pedra dentro do povoado.
Havia divãs junto das paredes, que não tinham outra decoração a nمo ser estantes rústicas, com livros. Zuleica saiu da sala e voltou com uma bandeja com pão, mel, queijo, iogurte e convidou as mulheres a sentarem, em almofadas, ao redor da mesa baixa no centro, onde ele colocou a bandeja.
Enquanto comia, Pilar sentia o agradável calor vindo da mesa de pedra. Leona percebeu que ela estava intrigada e riu, dizendo algo ao avô e pai de Zayn. Depois, para Pilar.
— Vejo que está curiosa com o sistema da casa... Veja, vou mostrar-lhe. — Levantou-se e deslocou o tampo de pedra da mesa.
Com espanto, Pilar viu que era oca e no seu interior havia brasas. Leona explicou.
— Chama-se tandir. Serve para manter a comida, o chá aquecidos durante o dia. E de noite, a família ajeita suas camas, em círculo, ao redor e todos se mantêm aquecidos. Lembro de muitas noites de inverno que passei junto do tandir. É algo mantido entre todos dessa região, faz parte da cultura local.
Pilar observou-a com interesse. Difícil imaginar aquela mulher fina, sofisticada, num ambiente tão primitivo.
A conversa girou por muitos assuntos, com Leona como intérprete.
Pilar ficou impressionada não apenas pela noção do atual monarca de tudo que acontecia pelo mundo, como também pela capacidade de análise e julgamento dele. O avô se mantinha em silêncio apenas observando toda a cena. Como se esperasse a oportunidade certa para entrar em ação.
Depois os dois homens saíram em direção a uma sala, uma espécie de escritório, onde se podia ouvir suas vozes alteradas.
Leona apenas sorriu e continuou a tomar seu chá como se nada houvesse acontecido, deixando Pilar desconfiada e com muita curiosidade.
A tarde ia a meio quando saíram do povoado. Quando os cavalos aproximavam-se do fim da rua, a passo, Pilar voltou-se para olhar o sheik e o avô de Zayn à porta da mansão, mais uma vez. Os dois estavam eretos, braços cruzados ao peito, olhando-as. Novamente ela se lembrou de Zayn.
Fizeram um caminho de volta diferente, que serpenteava entre colinas, até os campos imensos que iam dar a propriedade. De repente, Pilar percebeu uma construção estranha, cônica, ao longe. Dirigiam-se diretamente para lá. Depois de quinze minutos de dura cavalgada, chegaram à estranha construção, feita com blocos de pedra cor-de-rosa e cinzenta, alternados.
— O que é? — Indagou Pilar, enquanto desmontavam.
— Uma capela armênia, provavelmente construída há mais de oitocentos anos. Achei que você gostaria de ver ruínas arqueológicas que temos em Aysun. Zayn faz questão de manter tudo bem preservado. — Respondeu Leona, dirigindo-se para a entrada.
Pilar seguiu-a. O antigo templo/capela circular tinha uma graça e beleza que a encantaram.
— É adorável!... — Exclamou. — Quanto mais conheço Aysun, mais me surpreendo. É como um pedacinho da Idade Média: velhas capelas, um povoado com um castelo e tudo!
1962 Palavras
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