Capítulo 30 - Prazer Selvagem
"Amo tudo que é selvagem. Selvagem e livre."
Os tetos cinzentos e os minaretes de Kars eram bem visíveis numa das margens do rio. Do lado oeste, o distante platô era uma vasta extensمo ondulada, cinza e ocre. Apesar do ar cheirar a inverno, limpo e cortante, Pilar percebeu a leve nuance de odores de capins cheirosos e do gramado que viriam com a primavera.
Zayn observava Pilar, encostado no jipe. Disse pensativo.
— Nos dias luminosos da primavera, depois que a chuva limpa a atmosfera, pode-se ver a fronteira russa, cinquenta quilômetros a leste... — Apontou para além de um bosque, cujos galhos nus das árvores formavam uma sugestiva filigrana. — Dá para perceber toda casa e as estrebarias, depois das árvores.
Pilar observou a paisagem lindíssima e tentou dominar a caibra que ameaçava tomar conta de seu estômago. Quando o encarou, sorria.
— Aysun é maravilhoso! — Afirmou. — É como eu imaginei!
O coração dela apertou-se ao ver a expressão de felicidade quase infantil de Zayn, que brincou.
— Eu sabia que você ia gostar. Acho que, no fundo, você é uma verdadeira mulher das estepes... Volte para o jipe. Vai ver a melhor parte de Aysun: os cavalos selvagens e os meus cavalos também.
Quando chegaram do outro lado da colina, Pilar percebeu que a enorme propriedade de pedras cinzentas estava muito bem localizada. No verão, o bosque de choupos a protegeria dos ventos quentes da Ásia.
Poucos minutos depois passavam por uma porteira e seguiam pelo caminho de pedra que levava até diante da entrada principal da casa. Por trás da fileira de estrebarias, à direita, estendia-se o pasto, agora marrom, com fardos de feno espalhados até a margem do rio. Dois meninos que estavam sentados na cerca do pátio das estrebarias correram para Zayn, assim que ele saltou do jipe.
— Prens geri dِndü (O príncipe voltou!)... Prens geri dِndü (O princípe voltou!)... — Gritaram, alegres, antes de despejar uma enxurrada de palavras em turco.
Ele arrepiou afetuosamente os cabelos do mais velho, enquanto pegava o mais novo, que parecia ter uns quatro anos, e o jogava para o ar.
— Estes garotos lindos são filhos do nosso administrador, Ahmet Mehmet. — Explicou, antes de os garotos desandarem a falar de novo.
Quando Zayn agachou-se junto dos meninos, dando-lhes toda atenção, rindo de vez em quando, Pilar compreendeu que era um homem que deveria ter muitos filhos. Sabia lidar com crianças, respeitava a opinião delas como se fossem de adultos e ouvia o que diziam com seriedade. Ela não pôde deixar de sorrir: Zayn tinha o dom de lidar com crianças, como com cavalos... e mulheres.
Ele levantou-se e foi para junto dela, os olhos brilhando, alegres.
— É bom saber que não houve grandes mudanças enquanto estive fora daqui. Uma das éguas perdeu-se e encontraram-na a vários quilômetros daqui. Um cavalariço foi tomar uns goles na cidade e ao voltar caiu numa fenda, o gelo estava fino. Por sorte, conseguiu safar- se sozinho. Os meninos disseram que desde então ele deixou de beber completamente. Antes, vivia bêbado.
— Acho que a natureza humana é igual em todos os países... — Comentou Pilar, não podendo deixar de rir com ele.
— Ah, Pilar, desculpe! Na pressa de saber o que você está achando da propriedade, esqueci das apresentações. Este é Süleyman e o irmãozinho dele é Murat.
Pilar apertou a mão do garoto maior, depois voltou-se para Murat.
— Merhaba! (Oi, bom dia!) — Disse, num turco engraçado. Depois ariscou falar em inglês quando percebeu que Pilar não havia entendido. — Olá!
— Olá!...
O garotinho retribuiu, com uma risada, depois passou a mão nos cabelos dela e disse alguma coisa a Zayn.
— O que ele disse? — Perguntou Pilar, curiosa.
— Que seu cabelo é como o sol e perguntou se não pode ficar com um pouco para aquecê-lo à noite. — Traduziu Zayn, rindo.
— Diga a ele que agradeço o elogio, mas preciso de todos os meus cabelos para me manter quentinha!
Enquanto entravam na casa, Zayn disse, em voz baixa.
— Murat é inteligente. Seu cabelo é como o sol, principalmente quando se espalha no travesseiro, de manhã. É capaz de aquecer o coração mais duro e gelado do mundo.
As íntimas e brincalhonas palavras fizeram Pilar ficar mais do que consciente do aperto e do calor da mão dele na dela, enquanto a guiava pelo enorme pátio. Era a primeira referência de Zayn à noite que tinham passado na tenda dos nômades. Como palavras tão simples e um contato inocente podiam altera-la daquele modo? Principalmente porque a parte racional de seu ser insistia em lembra-la que não tinha direito de querer, de amar aquele homem tão profundamente. Ele dissera que estavam destinados a magoar um ao outro.
Agora, com ele ali em Aysun, a única coisa que sabia é que estava feliz. Não queria pensar em voltar para Istambul, em ser uma França!
Os pensamentos angustiantes foram afastados por um enorme cachorro que surgiu de um canto da casa e correu para Zayn.
— Este é Umet... — Disse, acariciando a cabeça do animal. — É um cão anatoliano e seu nome significa "Esperança". Como os cães dos curdos, Umet tinha uma coleira com pontas.
— Aqui também há lobos? — Perguntou Pilar.
— Sempre há, nas regiões montanhosas. Lobos, ursos, lebres das montanhas, alces. É um lugar selvagem, mas muito bonito. Acho que gostamos de Aysun por causa de sua aspereza e perigos...
No hall foram recebidos por uma mulher de rosto simpático e enormes olhos cinzentos. Era Azra, esposa de Eren, governanta da casa. Pilar surpreendeu-se: não podia ligar os meninos lindos, vivos, risonhos com aquela mulher de meia-idade, que devia ser mãe deles.
Quando a governanta murmurou "Como vai a senhora?", em inglês, Pilar respondeu, com dificuldade, em turco.
— "Pekala, te؛ekkür ederim.".
Ao ouvir o "Bem, obrigada" em turco os olhos da mulher arregalaram-se e Zayn riu.
— Muito bem, Pilar! As aulas valeram!
Pilar riu também, sentindo-se corar ridiculamente de prazer. Zayn levou-a do hall para um corredor e abriu uma porta. Parecia uma biblioteca, com um enorme e pesado divã, junto das janelas, com uma porção de almofadas. Duas paredes eram cobertas por estantes cheias de livros encadernados em couro.
Havia uma mesa grande, com livros e revistas. Cadeiras e poltronas alinhavam-se junto das outras paredes, que exibiam tapeçarias persas e vários quadros que pareciam ser muito valiosos. A sala tinha muita vida e Pilar deduziu que a família vivia ali, quando não estava em visitas por toda a Turquia ou trabalhando em Istambul.
Quando atravessaram a sala, ela reparou que havia uma alcova à direita de uma das estantes. Atrás da escrivaninha que quase ocupava todo o espaço, estava sentada uma mulher, a cabeça inclinada para o que parecia ser um livro.
Ao ouvir os passos de Zayn, ela ergueu a cabeça, tirando os óculos..
— Mãe, eu trouxe uma hóspede, — Disse ele. — É Pilar França, americana, colega de equitação. Pilar, minha mãe, Leona Fischer.
A mulher levantou-se e foi beijar o filho. Vestia um vestido de seda escuro com lírios brancos. Depois, voltou-se para Pilar, estendeu a mão.
— Bem-vinda a Aysun, Fraulein França. Espero que se sinta em sua casa. — Disse, numa mistura de idiomas, mas bem falado.
Seus olhos eram castanho-claros, com reflexos em âmbar, que lembraram a Pilar lascas de fogo numa floresta, no verão intenso. Percorreram a esguia figura de Pilar rapidamente, depois a Sra. Fischer voltou-se para o filho.
— Ela é...?
— Está aqui a negócios. Um cavalo... — Explicou Arif, rápido.
— Um cavalo? — Surpreendeu-se a mãe desconfiada. — Lüg mich nicht an, Kind... (Não minta pra mim garoto...). — Seine Augen und Gesten sagen etwas anderes. (Seus olhos e gestos dizem outra coisa.)
Zayn explicou o que acontecera com a égua de Pilar, o adiamento das corridas e a tentativa que pretendia fazer com Maktub. Na rápida conversa entre mãe e filho, Pilar sentiu um entrechoque de vontades. Os Abadi pareciam-se muito: fortes, teimosos, respeitando-se mutuamente, mas recusando-se a recuar. Sentiu, intuitivamente, que não aprovavam sua presença em Aysun.
Preparou-se para ver nos olhos da Sra. Fisher a animosidade que vira nos de Latifa, mas a mãe biólogica de Zayn era mais controlada do que a sua enteada, a meia-irmã de Zayn era difícil de agradar. Tudo que pôde perceber foi uma certa reserva e desconfiança velada, quando ela disse.
— Sente-se, Fraulein França. Sarai deve trazer o chá daqui a pouco. Deve estar cansada da viagem. — Passou os olhos pelas roupas empoeiradas de Pilar que teve que se conter para não se limpar.
— Obrigada. — Disse, com o máximo de dignidade que conseguiu.
Tinha acabado de se acomodar numa das confortáveis poltronas quando a porta abriu-se e Sarai entrou com uma mesinha de chá, contendo um serviço completo em prata georgiana inglesa. A Sra. Leona servia o chá ao modo inglês quando a porta abriu-se de novo. Um senhor alto, moreno, forte, cabelos grisalhos, parou no umbral, apoiado a uma bengala.
A Sra. Leona ergueu-se depressa e foi para junto dele.
— Osman Kardashev Abadi, seu neto chegou e trouxe uma convidada. Vamos começar a tomar chá.
— Americana, hein? — Observou o homem, quando Pilar lhe foi apresentada. — Sempre gostei de americanos, principalmente do presidente Franklin Roosevelt. Ele soube lidar com Stalin na Conferência de Yalta, depois da guerra. Os russos, bah! Precisa saber, miss França, o que sentimos por nossos vizinhos do leste, invadidos por eles quatro vezes em outras tantas gerações. Como cuidarmos do desenvolvimento da nossa nação com um gigante sempre a nos ameaçar? Hoje infelizmente não temos tanto apoio e nem comunicação com o seu presidente. Mas esperamos que isso acabe mudando.
Pilar recostou-se na poltrona, descontraindo-se aos poucos. Ouvia fascinada o monólogo sobre a política turca. Percebia que o antigo monarca aposentado simpatizava com ela e retribuía o sentimento. Desconfiava que a demora dele em chegar fora proposital, para que a mãe de Zayn tivesse tempo de examinar a recém-chegada.
A certo momento, olhou para Zayn e percebeu um olhar de entendimento entre ele e a mãe. Em seguida, ele se levantou, aproximou-se do avô e bateu-lhe carinhosamente num ombro.
— É bom estarmos juntos de novo, Avô Osman, mas tem que nos dar licença. Eu prometi mostrar os cavalos a Pilar assim que chegássemos e nمo quero desaponta-la.
— Claro que não! — Concordou Osman Abadi sorrindo. — Leve ela, Zayn. Você sabe como sou quando começo a falar de política! Seu pai se estivesse aqui ainda seria bem pior, já posso ver o escândalo que ele irá fazer. Vou me divertir muito!
— Conversamos ao jantar, então... — Disse Zayn, pegando o bule e servindo mais chá para o avô. — Enquanto isso, descanse. Sabe o que os médicos disseram do seu coração. — Concluiu, quase brusco.
— Ele é um exagerado! — Resmungou o velho político.
— Assim mesmo, você tem que se cuidar. — Exigiu Zayn.
Pilar teve a impressão que os papeis de avô e neto tinham sido invertidos e que Zayn lidava com uma criança teimosa e travessa. O que a fez sorrir os vendo discutir por algumas coisas simples do dia a dia.
Pouco depois saíam da casa e Pilar quase tinha de correr para acompanhar os passos longos e impacientes de Zayn.
— Seu Avô é um homem encantador. — Disse, quase ofegante.
— Encantador, mas teimoso. Precisa conhecer o meu pai, meu avô é mais fácil de se lidar, mas tem os seus momentos também. — Replicou ele, seco, sem olhar para ela. — Está com noventa e um anos, mas acha que ainda é um homem vigoroso como aos cinquenta. Ele não é realista!
Andaram em silêncio por minutos, depois Pilar aventurou-se.
— Acho que você se parece mais com sua mãe em algumas coisas...
— Pôde perceber isso em tão pouco tempo? — Disse, irônico, mas um instante depois admitiu. — Sim. Somos iguais. Nada nos desvia do que queremos.
— Ela ficou preocupada por você me trazer, não? — Perguntou Pilar, baixinho. — Esperava ser apresentada a uma próspera noiva, com contatos concretos para o seu povo e país.
— As vezes você é esperta demais, Pilar. — Retrucou, irritado. — Vê demais, também. Minha mمe e eu nos entendemos, mas ela nمo dirige a minha vida. Ela é a única que conhece o meu coração. Já o meu avô está sempre do meu lado quando eu preciso. Sua sabedoria já me ajudou demais!
— Dá pra notar o quanto ela uma mulher muito forte.
Zayn riu, enquanto abria a porta da estrebaria.
— Você também é, Pilar França. Acredito que ambas reconheceram essa característica única uma na outra!— Afirmou.
Ao entrar foram envolvidos pelo barulho de cascos e o odor de capim seco e feno. Zayn fez uma rápida apresentação de cada animal e, por fim, pararam diante de uma baia vazia.
— Venha, quero que você a veja agora. Está treinando...
Saíram pela porta de trás que dava para um amplo pátio. Um lindo potro negro corria junto de um vibrante garanhão, muito bem proporcionada. Pilar compreendeu que era Maktub.
Zayn assobiou e os dois animais aproximaram-se dele. Pilar observou-o alisar os flancos dos animais, examinar-lhes as pernas e os cascos. Delicadeza, frio conhecimento e muita afeição pareciam emanar dele. Os animais correspondiam ao profundo afeto do dono.
A porta da estrebaria abriu-se e um homem baixo, forte, de olhar amigável caminhou para eles. Pilar achou que era o administrador, Ahmet Mehmet. Sua impressão confirmou-se quando Zayn deu ordens em turco e Ahmet tornou a entrar na estrebaria, voltando logo depois com arreios e sela para o cavalo dourado. Enquanto Maktub era selado, Zayn perguntou, com indisfarçado orgulho.
— Então, Pilar? O que achou de meus cavalos?
— Magníficos, como tudo em Aysun... — Respondeu ela. — O potro é lindo, muito forte! Como é o nome dele?
— Maximus, mas pode chamá-lo de "Max". Ele vai ser um campeão como o pai, Tornado.
Ahmet trouxe o garanhão pronto. Pilar montou de imediato e o fez trotar ao redor do pátio. Querendo ver até que ponto estava ensinado, Pilar experimentou comandar com pancadinhas das mمos e aperto de pernas. Maktub respondeu com imediata e certeira obediência.
Cinco minutos depois, Pilar chegava ao lado de Zayn, que tinha montado um outro maciço garanhão negro: Tengri.
— Ele é um sonho! — Exclamou Pilar, animada. — Reconheço que você é um encantador de cavalos. Maktub está muito bem ensinado!
— Você não esperava por isso? — Caçoou ele. — Vamos dar uma volta por Aysun, antes que escureça.
Depois de ultrapassarem os campos cultivados e os pastos, Pilar teve impressão de estar no teto do mundo. Um vento frio soprava constantemente, agitando-lhe os cabelos e fazendo-os esvoaçar para trás, como uma brilhante flâmula de ouro. Galoparam alguns quilômetros. Quando, enfim, puseram os cavalos a passo, ela perguntou.
— Max e Tornado são descendentes daquela égua magnífica que está numa fotografia do livro que você me emprestou no trem?
Zayn olhou-a rapidamente.
— Então, você teve tempo de olhar o livro e ver o dinheiro...
Pilar sentiu o rosto queimar, apesar do vento gelado, e rezou para Zayn não notar que estava vermelha. Falou friamente.
— Suas intenções eram muito mais condenáveis do que a minha.
— Errou feio! — Disse ele, com um sorriso. — Eu não a trouxe até aqui para brigar com você, Pilar. Não se esquente tanto.
— Para que, então, você me trouxe a Aysun? — Indagou ela.
— Porque sou um egoísta... — Respondeu Zayn, sacudindo os ombros. — Queria ter você mais tempo comigo.
— Por quê? — Insistiu Pilar, com um começo de raiva. — Para me proteger dos possíveis pretendentes que poderiam surgir na minha vida?
— Pilar, você não é boba. Eu sei disso. Idiotas como aquele não foram feitos para mulheres como você. Sua vez vai chegar. A cigana não disse que vai se casar com o homem que o seu coração escolher?
— Devia ter deixado que ela lesse sua sorte, Zayn. — Explodiu Pilar. — Quem sabe ela ia dizer que você vai se casar com uma mulher que conseguir chegar no seu coração de pedra!
— Não seria você, então, diabos! — Ele esporeou o cavalo, que disparou na direção do rancho.
Pilar ficou olhando cavalo e cavaleiro afastarem-se, depois deu uma palmadinha no pescoço do garanhão dourado. Por que, perguntou a si mesma, eu tinha que amar um homem impossível como esse?
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