Capítulo 11 - Prazer Selvagem
"Amo tudo que é selvagem. Selvagem e livre."
O trem atravessava o sul da Bulgária. Passara pela capital, Sofia, horas antes, como já se era esperado, a localidade com seus muitos domos de igrejas ortodoxas e bandeiras vermelhas tremulando ao sabor do vento gélido, em alguma comemoração assim imaginou os viajantes ao observar as belas paisagens pelas janelas de vidro. Depois a paisagem voltara a ser a de campos desolados, onde se via ao norte os picos brancos dos Balcãs. Lindas montanhas que davam um sabor a mais a viagem.
Desde a ácida conversa durante a parada do trem, Pilar não falara mais com Zayn. O jogo terminara com uma comemoração, da qual participaram tanto os vencedores quanto os vencidos, no vagão-restaurante, com cerveja alemã e raki.
Pilar apreciara a festa sentada numa mesa no fim do vagão, tomando uma xícara de chocolate quente, procurando prestar mais atenção à paisagem gelada que desfilava lá fora do que ao grupo ruidoso. Pouco depois Gaspar e Saria se haviam juntado a ela e os três iniciaram animada conversa sobre a disputa equestre que aconteceria daqui a alguns dias em Istambul. Pilar continuava sentindo a raiva de Zayn fervendo em seu íntimo. O desejo invéz de diminuir estranhamente queimava e aumentava entre os dois. Os olhares entre ambos eram como uma tempestade de areia e raios.
A manhã ia avançando e estavam a cerca de uma hora da fronteira turca, com Istambul a mais ou menos seis horas de viagem agora. Pilar estava no seu compartimento e sentia-se como se estivesse naquele trem há séculos. Sabia que estivera certa ao sentir Zayn como um perigo, como uma ameaça às suas vulneráveis emoções. Tinha até que se sentir grata à insuportável Laetitia. Sua chegada a libertara das garras do encanto sedutor de Zayn e fora graças à resposta que ele dera à ela que Pilar encarara a verdade sobre o presunçoso príncipe do deserto: era um homem acostumado a conseguir o que queria sem dar nada em troca. Seus amargos pensamentos foram interrompidos por pancadinhas à porta e ela afastou-se da janela para abri-la. Um camareiro em uniforme azul-marinho e quepe cumprimentou-a cordialmente.
— Bom dia, senhorita. Só quero lembrar que estamos por parar na fronteira turca e que todos os passageiros terão que descer com suas bagagens para a verificação de praxe.
— Sim, obrigada. — Respondeu Pilar.
Assim que o rapaz foi embora, pôs as malas em cima do beliche e começou a arrumá-las com método. Ao contrário de Saria — cujas malas já estavam arrumadas e empilhadas no corredor. —Pilar deixara a arrumação para o último momento. Riu, triste, ao comparar-se com a eficiente e organizada companheira de viagem.
Ao dobrar umas roupas, algo cor de laranja chamou-lhe a atenção. Puxou-o e a fita do segundo lugar na corrida balançou em sua mão. De imediato lembrou-se da competição anterior e da esperança que tivera de vencer. Expulsou da memória a imagem de Zayn, poderoso, grande, formando um monumento com Tornado, no momento da vitória.
Ao acabar de fazer as malas, deu uma olhada na cabine para ver se não tinha esquecido nada. Viu uma outra fita, de um vermelho vivo. Pegou-a. Era a fita do terceiro lugar de Saria. Teria esquecido ou jogara a fita fora? A pequenina competidora queria tudo ou nada.
De novo pancadinhas à porta interromperam-lhe os pensamentos. Foi abrir, distraída, esperando ver o camareiro. No entanto, deu com um traje típido árabe envolvendo um homem alto, de ombros muito largos.
Relutante, Pilar ergueu os olhos para o rosto dele. Os traços bonitos estavam sérios, os lábios sensuais sob a barba por fazer não sorria. Os olhos escuros demonstravam cansaço e uma certa melancolia, o que deixou Pilar intrigada.
— Bom dia, Pilar. — Disse Zayn, ignorando a surpresa dela.
Tratou de acalmar a sensação estranha que lhe percorria as veias e inclinou a cabeça num cumprimento, murmurando, apenas.
— Capitão Zayn...
Dominou a vontade de dar um passo atrás para escapar do magnetismo sensual que a proximidade de Zayn exercia sobre ela. O perfume seco que emanava dele, misturado com suave cheiro de café árabe, invadiu a cabine. Falou com voz irônica, lembrando-se de como se rendera nos braços dele duas noites atrás.
— Esqueceu alguma coisa por aqui?
— Não... — Respondeu ele, com um sorriso malicioso ao perceber que ela se protegia. — Só vim trazer estes livros. Um é sobre garanhões imperiais, aqui tem toda a história deles e dos meus ancestrais... o outro sobre a Academia Turca de Equitação em Ancara. Acho que podem ser de alguma ajuda para você. Ancara anteriormente conhecida como Ancira e Angora, é a capital da Turquia, localizada na Anatólia Central. Espero que possa conhecer quando tiver livre.
Meio relutante, Pilar pegou os livros. Voltou-se e jogou a fita do prêmio de Saria sobre a mesinha, antes de guardá-los na bolsa.
— Por que não deu esses livros a Laetitia? — Perguntou, com enganadora meiguice, quando se voltou para encarar Zayn. — Pelo que vi, ela é um dos concorrentes que mais está precisando de ajuda e conselhos...
A gargalhada de Zayn lembrou o som de uma metralhadora.
— Meu Deus, Pilar, como você é orgulhosa! Vai continuar me castigando, até o fim da competição? — Perguntou, divertido. — Acho que nós dois sabemos que Laetitia está mais interessada em romances e na mística do torneio internacional do que na equitação. Além disso, ela jamais conseguiria ficar ao meu lado e nem enfrentar a minha família. Ou por acaso consegue vê-la aprendendo os nossos costumes?
Pilar sacudiu os ombros, com indiferença, sem participar da alegria de Zayn. Laetitia está interessada na mística de um cavaleiro em particular, pensou, zangando-se consigo mesma, de imediato, por sentir ciúme. Não queria dar um mínimo de munição ao sorridente e arrogante Zayn. Terminou de ajeitar as malas e fechou-as, ignorando a presença dele. Divertido com a deliberada esnobação, Zayn ficou encostado no umbral, com as pernas vestidas com botas pretas, de cano alto, cruzadas, olhando-a. Reparou na fita vermelha.
— A tenente Saria esqueceu o troféu de nossa última competição ou... — Disse.
— Acho que não esqueceu, capitão Zayn. — Respondeu Pilar. — Jogou-a fora. Um terceiro lugar não quer dizer nada para quem competiu em quatro Olimpíadas. Saria está acostumada a vencer.
Zayn aproximou-se dela e Pilar, sem perceber o que fazia, afastou-se dois passos. Sentindo a retirada dela, ele riu de novo. Sem aviso, segurou-lhe o queixo obrigando-a a olhar para ele.
— E você, Pilar? — Perguntou. — Vai continuar querendo ser melhor do que eu? e pior do que isso, saber do que fui capaz de fazer para chegar até aqui? Pois posso perceber que sempre tem uma opinião formada sobre mim.
Ela irritou-se com ar de riso e arrogância dele, seus olhos escureceram.
— É a pena que pela lei do seu povo, não é, capitão? "Olho por olho... — Respondeu, fria, livrando o queixo da mão dele.
Zayn soltou outra gargalhada e deu-lhe um olhar irônico antes de sair da cabine.
— Uma lei ultrapassada e arcaica, usa por pessoas ignorantes e repletas de preconceito, ódio que as consome por dentro. Sabe Pilar, o medo do que é diferente faz isso e a não aceitação do diferente também. — Ele deu uma rápida olhada na direção da fita de terceiro lugar. — Aquele que não sabe agradecer o pouco que conquista, não é digno de receber o melhor que está por vir!
Pilar bateu a porta depois dele sair e terminou de arrumar as coisas às pressas. Pôs as malas do lado de fora, no corredor, pendurou a bolsa no ombro.
Recusava-se a admitir que Zayn a enervava com suas estranhas filosofias. Como iria enfrentá-lo na corrida se a simples proximidade dele fazia aquele efeito? Respirou fundo e foi para o vagão-restaurante.
Não havia ninguém no vagão carpetado a não ser o barman por trás do balcão, enxugando os copos. Pediu um copo de água com caldo de limão e foi sentar-se numa das poltronas forradas de veludo azul-marinho, o calor a estava deixando incomodada. Lembrou dos livros de Zayn, que havia colocado na bolsa a tiracolo. Pegou um deles e notou que tinha um envelope dentro e achou que fora posto ali para marcar a página, onde havia uma foto dupla, colorida, de uma égua preta. O animal fazia lembrar Tornado, pelo tamanho e coloração. Pensou que poderia ser a fêmea ideal para o garanhão. Pensou em perguntar isso ao capitão, quando sua atenção foi chamada pelo peso e volume do envelope. Como não estava fechado, olhou e espantou-se ao ver que estava cheio de notas de quinhentos francos. Concluiu que era o prêmio que Zayn ganhara por ter vencido a corrida. Tornou a guardar o envelope e livro na bolsa, sorrindo ao imaginar o susto dele quando pensasse que tinha perdido todo aquele dinheiro. Pensava nas várias possibilidades de susto dele, divertida, quando o barman apontou para um posto de guardas que parecia perdido no campo nevado e exclamou, alegre.
— Turquia!
Pôde perceber, de passagem, o sorriso e o aceno de um guarda quando o expresso cruzou a fronteira.
Apressada, enfiou tudo na bolsa e voltou para o corredor em frente a sua cabine e ficou olhando para fora. O vento forte ainda trazia um pouco do frio que logo ficaria para trás, os raios de sol já tinha conseguido atravessar a espessa camada de nuvens. Olhava, ansiosa, para o horizonte.
A espera foi longa mas sentiu-se recompensada. Seu sangue circulou mais rápido ao ver a silhueta de quatro torres das mesquitas à distância, como dedos longos, prateada, imponentes, perfurando o céu pesado azulado. O trem pareceu rolar mais depressa e poucos minutos depois uma série de cúpulas apareceram entre as estreitas e elegantes torres. Um arrepio de prazer e medo percorreu a espinha de Pilar enquanto admirava a exótica paisagem de mesquitas e minaretes.
Era o mundo de Zayn Kardashev Abadi, totalmente novo e estranho para ela. Agora era a estranha, a inexperiente que se atrevia a desafiar o moreno lobo das estepes em seu próprio terreno. Tratou de afastar os devaneios e ir com a bagagem para perto da saída do vagão.
Quinze minutos depois, o trem entrava na estação. Pilar desceu para a plataforma, meio carregando, meio arrastando a babagem.
Conseguiu ver, pelas portas amplas do edifício, uma rua estreita e uma loja com balcões de madeira, do outro lado. Avançava com dificuldade para o balcão da Alfândega quando sentiu que alguém pegava a mais pesada das malas. Ergueu os olhos e deu com o olhar escuro e risonho de Zayn.
— O que está achando da Turquia, senhorita França? — Perguntou, enquanto punha a pesada mala no ombro com a maior facilidade.
— Um tanto estranha para uma mulher que nasceu na América e nunca foi mais longe do que a leste de uma cidadezinha do interior americano. — Brincou Pilar, também sorrindo.
Vendo que ela olhava, encantada, para um domo imponente que ficava acima do teto das casas do outro lado da rua, explicou.
— É a Selimiye Camii, uma mesquita construída há mais de quatrocentos anos, pelo sultão Selim. Essa mesquita é impressionante, a arquitetura é fantástica seguindo a mesma característica de Aya Sophia e da Blue Mosque em Istanbul. A entrada é gratuita e não muçulmanos são aceitos sem problemas. Nos sentimos muito bem recebidos lá. Selimiye justifica a ida a Edirne com toda a certeza.Queria ter tempo para lhe mostrar a cidade.
Pilar imaginou-se percorrendo as ruas e os bazares em companhia do famoso príncipe do deserto Zayn. Também sentiu não terem tempo. Aproximaram-se do balcão de fiscalização. Zayn pôs a bagagem em cima do balcão, depois colocou as malas de Pilar ao lado das dele.
Os pequenos olhos escuros do fiscal percorreram Pilar com expressão de que aquela alta e linda loira era o objeto mais precioso que se poderia importar.
Pegou o passaporte de Zayn e sorriu para ele.
— Bem-vindo de volta à pátria, capitão Kardashev Abadi. — Disse, em inglês tropeçando em algumas palavras, mas que Pilar pôde entender. — Soube da sua vitória na competição em Paris. Parabéns!
— Você esperava menos de mim? — Retrucou Zayn, rindo também.
— Os mongóis foram nossos antepassados: temos que saber manter um garanhão entre as pernas!
— Sim... Mas os dias de brilho e império estão longe... As guerras ficaram no passado. — Suspirou o fiscal, erguendo as vastas sobrancelhas negras. — Nós competimos mais pelo prêmio pela honraria do que pelo dinheiro, não?
Sob a aparente calma de Zayn, Pilar percebeu certa tensão. Observou, curiosa, o homem revistar a mala.
— Nada de jóias ou objetos a declarar, capitão? — Indagou.
— Nada, como sempre... — Assentiu Zayn. — Sabe, tão bem quanto eu, que o que um oficial ganha não dá para esses luxos.
O homem voltou-se para Pilar, dois dentes de ouro brilhando no amplo sorriso. Pilar corou em pensar nele remexendo suas roupas íntimas, mas o fiscal deu apenas uma olhada no passaporte e disse-lhe que podia ir. Confusa, ela perguntou.
— É só isso?
— A senhora é uma turista. — Explicou o fiscal, sempre sorrindo. — Só examinamos com rigor as malas dos nossos compatriotas.
— Ah, sim... — Disse Pilar, enquanto mudava a pesada bolsa a tiracolo de um ombro para outro.
2217 Palavras
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro