Capítulo 1 - Prazer Selvagem
"Amo tudo que é selvagem. Selvagem e livre."
Pilar tocou os flancos da égua branca com as esporas. As orelhas de Tempestade estremeceram ao sutil comando e ela disparou, os cascos batendo surdamente no gramado. Pilar manejava habilidosamente as rédeas com as mãos enluvadas, prestando atenção apenas no desempenho da égua, sem reparar que em pouco tempo as altas paredes de pedra cinzentas do refúgio de seu atual anfitrião Califa Emir Abacar nada mais eram do que uma mancha ao longe.
Depois de cinco minutos de desenfreada corrida, os cabelos loiros tinham escapado do prático lenço que os prendia, ela deveria os mante-lo preso, essa era a ordem, mas o dia estava lindo e mais uma vez Pilar acho desnecessário obedecer as regras que considerava chatas, como também ridículas, seus cabelos pareciam misturaram-se com a crina da égua quando Pilar inclinou-se para murmurar.
— Muito bem! Se correr assim, amanhã, nós vamos ganhar com certeza!
Voltaram sobre os próprios passos, mais devagar, ao longo do campo poeirento que separava os bonitos canteiros do Castelo de Emir, era incrível como aquele homem tinha poder e riquezas tanto em seu país como no dela, observou Pilar da pista gramada onde ia se realizar a corrida no dia seguinte.
Pilar puxou as rédeas, com delicadeza, quando iam se aproximando das centenárias estrebarias de pedra e madeira da morada de Napoleão e de sua imperatriz, Josefina. Hoje comprados pelo Califa Emir. Quem diria que os franceses um dia venderia seus tesouros para estrangeiros vindo de um lugar tão inóspito.
O modo mais descontraído de cavalgar de Pilar não deu certo; quando estavam chegando na quina da construção a égua, de repente, empinou, relinchando, quase jogando a moça fora da sela. Manejando as rédeas com energia, acabando por dominar o nervoso animal, Pilar pôde procurar a causa da irritação da égua.
Seus olhos encontraram o olhar divertido do homem que cavalgava tranquilamente um garanhão negro, apesar da agitação do animal diante da égua.
Estremecendo nervosamente, a égua ficou imóvel, olhos fixos no garanhão arabé, que erguia a cabeça, como que orgulhoso de seu domínio. Pilar admirou os músculos fortes do cavalo, o peito amplo e ancas altas. Seus olhos continuaram subindo e teve impressão de que o cavalo era parte do cavaleiro de olhar malicioso.
Diante do olhar inquisidor dela, o cavaleiro soltou um pouco as rédeas e o garanhão movimentou-se para a frente. Imediatamente o homem puxou as rédeas, contendo o cavalo. Mas Tempestade, num gesto de excitação pela proximidade do macho, afastou-se e tropeçou na baixa grade de madeira do canteiro de rosas.
Preocupada com o fato de a égua poder se machucar, Pilar olhou zangada para o cavaleiro e disse, no seu francês limitadíssimo.
— Não devia montar esse cavalo, monsieur, se não tem capacidade para controlá-lo.
Surpresa, viu os lábios dele, parcialmente escondidos pelo Ghutra, abrirem-se num sorriso.
— Está enganada, mademoiselle!... — Respondeu ele, num francês perfeito.
— A égua é que é incontrolável. Nunca vi uma fêmea tão assustada assim. Parece até que foi criada em colégio interno!
Os olhos claros de Pilar brilharam de raiva, mas não se deu ao trabalho de replicar. Passou uma das pernas sobre a anca da égua e desmontou. Tirou a luva da mão direita e correu os dedos, com delicadeza, ao longo da perna do animal que batera na cerca.
— Acho que ela não está machucada, mademoiselle.
Pilar voltou-se, surpresa. Achara que ele não ia desmontar. Sentira muita arrogância nele e tivera sensação de que ia galopar para longe, rindo ironicamente do que tinha acontecido. Mas ali estava, de pé, junto dela. Ficou olhando, em silêncio, enquanto ela apalpava a perna da égua com mão experiente. Os dedos dele eram longos e fortes, as costas das mãos morenas, largas, com veias grossas.
— Não. Acho que não aconteceu nada. Felizmente a madeira está meio apodrecida e partiu-se, sem fazer farpas que poderiam ferir a perna dela... — Endireitou-se e sorriu. — Não precisa se preocupar: esta beleza de fêmea não vai ficar aleijada ou tão pouco vai precisar ser sacrificada.
Tomando aquilo como uma acusação para a égua, Pilar esticou seu metro e oitenta e dois centímetros de altura, tentando olhá-lo com desprezo.
Antes, Pilar tinha vergonha de sua estatura, mas acabara aprendendo a orgulhar-se dela e a caminhar como uma rainha. E descobrira que sua altura era uma arma que fazia as pessoas acabarem pensando mais ou menos como ela.
Mas aquele homem a obrigava a olhar para cima. Ele era treze centímetros mais alto do que Pilar e ela sentiu que aquilo de domínío pela estatura não era realmente uma mera ilusão. O homem estava descontraído, segurando com negligência as rédeas do garanhão, no entanto ela sentiu a forte onda de poder que emanava dele. Devia ser incrível numa competição, pensou ela, sem querer.
Não confessaria nem a si própria que se sentia intimidada por aquele homem! Ergueu o queixo o mais que pôde e encarou-o em desafio.
— Espero que participe da corrida, amanhã, monsieur. Com tão ardente apetite, esse garanhão será uma ameaça aos concorrentes!
O sorriso do homem era muito sugestivo...
— Por que eu iria negar a meu cavalo prazeres que me agradam também?
— Passou a mão acariciante no flanco branco da égua, percebendo que Pilar corava. — Principalmente — Continuou, com arrogância — Porque posso controlar Tornado sem problemas.
Pilar observou o garanhão preto, que se chamava Tornado, agora perto de uma árvore, esperando calmamente pelo dono.
— É o que mais admiro nos homens europeus. — Exclamou ela, secamente. — A humildade!
Os olhos negros faiscaram.
— E é isso que a faz entrar numa competição européia, mademoiselle? Humildade?
Pilar não pôde evitar de sorrir, quando respondeu.
— Perdi, monsieur.
— Atingiu-me. Mas fique sabendo que não sou europeu.
Ele correspondeu ao sorriso, os olhos percorrendo lentamente a alta mulher loira parada na frente dele, vestida com um pulôver de lã vermelho e calças de jeans surradas, enfiadas nas botas, a sedosa massa de cabelos agitados pelo vento.
— É da Noruega? — Aventurou perguntar com certa curiosidade.
Ela riu e o rosto iluminou-se.
— Oh, não! Talvez haja algumas gotas de sangue nórdico em minhas veias, mas sou americana.
— Ah! Vinda do país do capitalismo ou melhor, do sonho americano! Afirmou com ironia.
A exclamação foi acompanhada por um rápido olhar penetrante, como se ele achasse que o jeito aristocrático dela não combinava com as roupas displicentes. Quando tornou a falar, foi num inglês também perfeito, com acento britânico.
— As ricas americanas sempre arranjam um modo de gastar suas energias cavalgando desse modo e eu achei que vocês preferiam gastar nas lojas de Paris. — Arriscou de novo.
— Nem todas somos ricas! — Replicou Pilar irritada. — Verônica Abacar é de uma senhoria nascida na Virgínia que me contratou para correr. Vivo da minha habilidade de Amazona.
— Sei... — Observou as mangas gastas do pulôver. — Não se trata de um esporte de garota rica, para você.
— Exatamente! — A voz de Pilar subira de tom e nos olhos verdes havia desafio, como se fossem dois adversários.
— Então, é uma profissional... Quando ouvi falar nesta corrida que ia ter homens e mulheres, não acreditei muito nela. Agora vejo que vai ser um bom desafio, afinal. Algo bem diferente de onde eu vivo!
Olhou-o enquanto ele passava a mão pelo pescoço da égua. Parecia estar avaliando o animal e Pilara percebeu amor por cavalos nos gestos dele.
— Também é profissional? — Perguntou, olhando o impecável camisa de gola alta, o casaco preto e as botas negras, de cano alto.
— É um passatempo agradável para mim na verdade. — Respondeu, encarando-a.
— Então, não leva as corridas a sério?
— Ao contrário. São muito importantes para mim.
Olhando com mais atenção, Pilar notou que o rosto de traços que pareciam esculpidos, mais do que mediterrâneo, tinha algo de origem do povo semita. Mas também a lembrava um pouco o povo alemão por causa de sua altura e constituição osséa. As maçãs eram altas, os olhos negros grandes e profundos. Desconfiou que sob o bronzeado, a pele devia ter um tom moreno-oliva. Sentiu curiosidade em saber a nacionalidade dele, mas era tarde para perguntar: ele caminhara para o garanhão e soltava as rédeas da árvore, quando ela disse, num ímpeto.
— Pretendo vencer, amanhã!
Ele voltou-se e olhou-a com atenção, por alguns segundos. Aí, inclinou a cabeça para trás e riu, divertido.
— Diga isso a tornado. — Respondeu, acenando com a cabeça para o cavalo, depois saltou sobre a sela e afastou-se.
Pilar, observando-o, lembrou-se de um antiquíssimo baixo-relevo assírio que mostrava guerreiros batalhando, montados em seus cavalos quase selvagens. Estremeceu pela estranha comparação que lhe aflorara à mente. Nunca tinha encontrado um homem tão arrogante quanto aquele. Sentia que havia perigo naquela sensação de perturbadora masculinidade que se declarara, primeiro, entre o garanhão e a égua, depois parecera envolver o cavaleiro e ela. Seus sentidos estavam estranhamente excitados e sentia-se tensa ao montar de novo.
Depois de dar uma volta que serviu para esfriar tanto a ela quanto a égua, Pilar levou o animal para a estrebaria. Tratadores e treinadores movimentavam-se entre as fileiras dos boxes; no ar pairavam os conhecidos cheiros de couro e feno. Pilar estava curiosa por conhecer os adversários, mas fora a primeira a chegar nas instalações preparadas para os diversos competidores vindo dos quatro cantos do mundo naquela manhã. Os outros não tinham chegado, a não ser o dono de Tornado. Uma voz pausada, vinda do boxe de Tempestade, interrompeu-lhe os pensamentos.
— Até que enfim voltaram! Pensei que tivessem se perdido! Pois ainda não conhece muito bem as novas instalações.
— Que nada, Gaspar! — Pilar riu para o treinador que estava esperando, com o pente de ferro e a escova nas mãos.
— Fizemos um treino excelente!
— Eu sempre disse que a Tempestade não falha, como o sol da manhã! — Exclamou ele, usando frases poéticas para se expressar.
Pegou um maço de cenouras, que o animal foi comer na mão dele.
Dizendo palavras carinhosas, retirou a sela.
Olhando-os, Pilar sorriu. Gaspar Cortez era do Texas; começara a carreira hípica como um vaqueiro, até se tornar um jóquei. Depois de criar fama e nome respeitável nas pistas, retirara-se e começara a trabalhar como treinador. Apesar da longa amizade com o ex jóquei, Pilar ainda achava divertido o contraste entre o modo lento, preguiçoso até, de ele falar com a vivacidade dos olhos e dos gestos, que refletiam a agilidade de cavaleiro.
De repente, ele ergueu os olhos, parando de escovar a égua.
— O que está olhando, minha jovem? — Resmungou, se bem que seu olhar fosse afetuoso.
Trabalhava com Pilar há seis anos e vira a menina comprida, sem graça, de quinze anos transformar-se numa excelente Amazona e linda mulher. Desviou os olhos, enquanto Pilar ria e ia pegar o polidor de metais para polir a ferragem da sela.
— Por que está zangado, hein? — Brincou.
— Por nada! — Rosnou ele. — Estava pensando em Peter Mazza, aquele seu noivo delicadinho e emproado que não queria que você corresse...
Pilar ficou séria.
— Gaspar, tínhamos combinado não falar mais em Peter. — Disse com irritação.
— Eu sei... — Insistiu o treinador, sonso. — Mas estava pensando que foi isso que fez você terminar com ele e...
— Gaspar! — Exclamou ela, com tom de advertência.
— Está bem! — Concordou ele. — Tomara que você conduza Tempestade com
firmeza, amanhã, diante dos obstáculos.
— O que você acha? — Animou-se ela. — Já fez esta corrida, Gaspar? Tenho medo que seja muito difícil.
O treinador sacudiu a cabeça de cabelos grisalhos, com alguns fios ainda escuros.
— É a mais difícil que você enfrentou até agora.
— Mas acha que eu tenho chance? — Indagou ela, ansiosa.
— Claro que sim, minha jovem. — Replicou ele. — Se não, para que íamos atravessar o
oceano? Mas tome cuidado com o príncipe do deserto, a um boato que ele possa também participar desta corrida amanhã.
— Já viu algum dos competidores? — Perguntou, animada. — Príncipe do deserto, isso parece bastante interessante.
— Pessoalmente, não. Mas vi a lista. Internacional! Montes de corredores sul-americanos e ingleses, alguns do Japão, da Austrália, da Turquia e da Dinamarca. Parece que há uma moça da Rússia... E o famoso príncipe do deserto, dizem que ele é da árabe saudita ou de outro país daquele lado, vai saber. Tudo em volto desse competidor é um grande mistério.
Pilar pensou no cavaleiro moreno que encontrara.
— Por acaso, viu um cavaleiro com Ghutra, de cavalo preto?
— Vi sim... — Respondeu o ex-jóquei. — Musculoso, de constituição forte, perfeita. Francamente, nunca tinha visto um tão poderoso! Ele até que pode ser o tal de príncipe deo deserto, mas ninguém confirmou isso.
— Está se referindo ao cavalo ou ao homem?
— Aos dois na verdade. — Explicou Gaspar. — Dá impressão que a mãe teve aquele filho da puta na sela e alimentou-o com leite de égua, como os selvagens mongóis, conforme narra a história. Sabe que gosto dessas lendas e mitos antigos, mas ver um diante de meus olhos, nem imaginaria ser possível.
— Tive a mesma impressão quando me deparei com ele também. — Concordou Pilar.
— Mas não ligue muito para as aparências minha jovem. — Disse Gaspar, depressa. — A nossa Tempestade é capaz de rivalizar com aquele diabo negro numa pista. Eu vou ver a ração da "nossa campeã". Não confio nessa comida europeia...
Depois de Gaspar se afastar, Pilar ajeitou a égua no boxe, pegou o ancinho e começou a juntar o feno. Pensava no dono de Tornado e repreendeu-se pela bravata de contar a ele que era uma concorrente profissional, pois na verdade era sua primeira disputa profissional e Verônica Abacar, a senhora de Virgínia, a nova dona da Tempestade, era tia dela. Ia lutar de corpo e alma para ganhar. Esse cavaleiro de olhos negros e seu garanhão vão perder! Pensou, animada.
Os pensamentos foram interrompidos por discreta tosse. Ela ergueu a cabeça e saiu correndo do boxe.
— Tio Emir Abacar! O que está fazendo por aqui? — Perguntou, alegre, enquanto se jogava nos braços do homem.
Afastou-se, depressa, lembrando que suas roupas empoeiradas podiam sujar o elegante terno escuro dele. Emir riu, divertido. Pois a jovem sempre se esquecia dos modos.
— Como vai, Saron, meu bem?
Ela sacudiu a cabeça, petulante.
— Não me chame por esse apelido estranho, tio Emir! — Usava o parentesco que desde pequena atribuíra ao velho conhecido da família. — Pode me chamar agora apenas Pilar... Pilar França!
Ele sorriu, fitando a moça que fora registrada como Pilar Saron França pela avó materna e vivera com esse nome por quinze anos. Fora Gaspar Cortez quem começara a chamá-la de Pilar e depois enterrará para sempre Saron.
Daí fora um passo adotar apenas o nome de Pilar França quando começara a competir em corridas de cavalos, anos atrás. Notou que havia suspeita nos olhos de Pilar ao dizer.
— Meus pais mandaram você para cuidar de mim, tio Emir?
Ele continuou a fitá-la com afeto profundo.
— Não. De jeito algum, minha jovem. Eu fui mandado aqui pelo príncipe de meu país para verificar uns problemas diplomáticos. Como tenho que ficar uns dias em Paris, não podia deixar de ver minha garota preferida!
— Obrigada, tio Emir que gentileza maravilhosa. — Disse Pilar, beijando-o no rosto; depois, enquanto saíam da estrebaria, indagou. — Tem compromisso para hoje à noite?
— Não, Holly, não tenho. Quer ir jantar comigo? — Convidou ele.
— Queria que você fosse meu cavalheiro no Baile da Hípica, na embaixada britânica. O velho Gaspar não quer nem ouvir falar em ir. E se quisesse, íamos fazer um par gozadíssimo!
— Tem razão... — e Emir riu com Pilar, olhando o pequeno ex-jóquei que se aproximava.
— Como vai, senhor? E a sua senhora como está? — Perguntou Gaspar, estendendo a mão para o Califa que parecia uma torre junto dele.
2613 Palavras
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