Ainda dia 153
Quase às 19:00h, quando saí, ainda não havia escurecido, então o caminho foi límpido. Era também muito gratificante de ver o cair do sol, lá ao longe, já tapado pelos prédios do resto da cidade.
É tão lindo. A visão esbanja tantas emoções. E mesmo tapado pelos prédios, eu tirei meu almanaque de folhas em notas, e peguei rapidamente a lapiseira presa à capa para sublinhar retângulos e mais retângulos. Então, o círculo passando-os, logo as linhas de tons sobre-tons do entardecer. No parque, eu pinto.
Coloquei mesmo sob-escrito as cores no céu e nos prédios. Eu honestamente nunca me considerei criativo pra inventar cores no cenário.
No retorno do caminhar, entrando mais a fundo pela cidade, tive de subir duas lombadas, com apartamentos que pareciam um tanto tortos, comparado com a subida/descida.
Passava, também, por senhoritas e senhorios, com chapéus tortos e boinas. Cumprimentava-os todos.
Então, já com as lindas estrelas predominando um céu celeste clareado pela reba de sol lá ao fundo, que infelizmente não posso ver, mesmo que subido para a parte alta da cidade, eu parei entre o parque das luminetas.
Todo ele era cercado por grandes postes de aço e uma luz amarela pesada que as vezes incomodava as vistas. Uma vez, das poucas vezes, o fiz de ideia para um homem com cabeça de lâmpada e um chapeuzinho, igual é tal luminária de grossura proeminente.
Aqui no parque, nessas horas, ocorria algumas situações bem divertidas: a volta dos trabalhadores para suas casas, e as idas dos boêmios para seus bares.
Para mim, o parque vira um outro tipo de parque; de diversões. Que é aí que eu entro.
Eu sou um Leitor. Prazer. E eu tenho uma condição muito, e muito rara: eu posso viver memórias passadas dos homens e mulheres.
Quando me sentei no mesmo banco de sempre, sobre a 'avenida' do parque às avessas com um cruzamento, eu abri minha caderneta, paginei-as até às folhas púrpuras, nas últimas 100 delas. Eu mesmo estava na 53, visto que tenho de recolocar a cada 100 dias. E comecei a vagar pelas anotações. Desenhos, também, agora a direita das páginas.
Destas 52 vezes que anotei, a minha favorita sempre foi essa, aonde eu apontava meu dedo; a Lisonjeada de Setembro.
A lisonjeada de Setembro:
Foi ainda no começo da primavera que eu me juntei neste mesmo banco, e observava o pessoal indo e vindo.
Minha condição é algo muito simples de entender, honestamente. Quando algum desses homens e mulheres cansados pensam em alguma memória que ocorreu em seu passado, eles compartilham a mim. E apenas isso. Não é como se eles soubessem, também.
Se eles pensarem nela, eu também. Porém é aí que a parte complicada começa: esta memória basicamente vira minha. E por isso, eu posso vivencia-la e modificá-la.
Na história da lisonjeada, a memória era vinda de um homem lúgubre e austero. Chato, um tanto parcial demais. Igual eu, ele era apenas mais um. Porém em suas histórias, ele não podia esquecer de uma mulher cujo nome ele lembrava apenas por 'Dandiz". Eu mesmo a renomeei de 'Duda'.
Um dia, em setembro, a tal Dandiz mandou uma carta pelo correio de nosso homem. Que, em si, se tornou eu.
Eu recebi a passagem para uma ilha, por engano, e junto disso uma carta de amor:
"Oh, Pacheco! Venha cá saciar meu desejo, você é tão gostoso com as palavras que quero sentir dessa gostosura eu mesma. Então faça como você mesmo disse, e...", o teor da carta era profana, e eu li cada curva da letra feminina, babando e gemendo, até vir, então, a data da viagem.
Quando cheguei lá, fui recebido por uma maravilhosa mulher de pele castanha, olhos tão castanhos quanto, e um corpanzil digno de babar mais que as palavras de sua carta pornográfica.
Eu conheci um anjo da perversão, uma súcubo, que parecia me assustar por cada sorriso. Por todo setembro, eu havia me tornado um tal de Pacheco. E então, eu também havia me tornado um penetra, depois de não impressionar a mulher. Ela havia se aberto até o fim da viagem, de toda forma. A mulher era um doce.
Desde então, Dandiz têm se tornado quase como um totem sagrado meu, aonde mês após mês, junto meu dinheiro sagrado para tentar voltar àquela ilha.
Eu modifiquei muita coisa desta memória inteira. E sempre tive um desfalque na minha condição, que seguia o fato de minhas modificações também aflingirem as memórias daqueles quem compartilharam comigo.
Este homem, que recebeu a carta, alguns dias depois de me compartilhar tal história, estava quase tão pimpão quanto estava morto. Pacheco havia o encontrado. Fim.
Eu apenas descobri desse fim, pois ele sempre trilhava essa rota, e amava tanto quanto eu as luzes. Seu sonho era ser astrólogo para sumir dentre as estrelas.
Passei a página desta memória para fitar algumas outras, ainda que não querendo passar tanto tempo nelas.
Eu já estava na página 53, em linhas limpas, a lapiseira anotando justamente sua numeração. Então comecei a fixar minha atenção ao chão, invés dos pisoteios, muito menos em seus rostos.
A coisa sempre trabalhava com ecos. Era como bulbos de ideias cotidianas e preocupações. Eu posso vê-las, porém é muito desfoque pra eu me importar.
Alguns desses pontos avulsos continham quase conexões. Geralmente de amigos e amigas, de amizades a amor não correspondido, ou não sabido.
Por eu ver tudo como um bulbo de luz, o pensador de um bom, ou mal passado brilhava, cintilante, quase cegante entre minha concentração. Eu nunca fui muito rígido em vê-las, tanto que no momento que fisgo, eu já a recebo. Porém apenas as boas são colocadas no caderno.
Esta memória que passou por mim, de uma mulher lambisgóia, é a definição de colocar apenas ideias fanáticas na caderneta. Ponderar sobre o gosto de um peixe comprado dia passado é algo quase deprimente.
- Oie! Você está me escutando? Você pode me dizer as horas, por favor? É a quarta vez que peço, sabe?
E fugindo de minha concentração, eu virei meu rosto para encarar uma menina sentada no mesmo banco que eu, dentre outros 4 em uma questão de metros.
- Desculpa, eu estava pensando - eu disse, não necessariamente mentindo - São... 19:23h.
Contei, fingindo escrever alguma coisa, já concentrando-me à rota de areia daquela avenida, novamente.
- O que você está anotando aí?
Porém a intrometida não me deixou.
Voltei a encara-la, um tanto incomodado.
- Ideias. O que mais seria?
Perguntei, bronco.
- Eu não sei, poemas? Cartas de amor?
Ela rebateu, severa.
Cruzamos olhares. Por estarmos perto de uma lâmpada amarela, eu conseguia perceber seu rosto de amêndoa, combinando com uma parcela de sardas e um cabelo curto castanho. Ou talvez ruivo, é difícil dizer. Não posso dizer que é claro identificar outra coisa além disso, ela estava de costas para a lâmpadeta.
- E poemas e cartas de amor não são ideias?
Mais calmo, eu questionei. Naquele momento, eu senti que não conseguiria ler memórias. Na primeira vez deste ano.
- São declarações! O poema faz você admitir que alguma coisa do mundo é muito feliz, ou muito triste. E cartas de amor são cartas de amor, o que você quer que eu explique sobre o amor?!
Ela rosnou, não realmente enraivecida, mas um tanto apaixonada pela sua própria noção destes termos. Eu mesmo concordei, isso faz sentido.
- Nunca pensei por esse lado - ainda que... - Mas se vem de nossa cabeça sem planejamento, são ideias igual, não são?
Eu aceitei o fato de não poder ler uma boa memória, e já estava pleno e sereno. Pra hoje, uma conversa de banco é mais que o suficiente.
Ela pensou, pareceu transtornada, pensativa, surpresa, imaginativa, contente, e então desafiante, tudo em menos de 10 segundos inteiros.
- Tudo que é escrito para o papel já se torna uma declaração - ela falou de forma que quase me xingou no final de tal afirmação - Você não pode negar que ideias só existem na sua mente, e apenas na sua mente.
- Ideias só deixam de ser ideias quando outro alguém conhece ela. Depois, vira um conceito.
- Não, não! Pelo amor de Deus! A arte não respeita conceito, ela respeita a declaração! - ela grasnou, como se a sua vida dependesse do meu convencimento - E tudo que um humano faz para si mesmo, é arte.
- Até que esse humano não considere sua arte, uma arte - tossi - Pois eu mesmo não considero minhas ideias uma arte.
- E o que você considera, então? Um desabafo?!
A garota falava alto. Chamava a atenção dos olhos cansados dos trabalhadores. Eu odiaria escutar uma garota chiar tanto sobre coisas que apenas adolescentes se importam.
- Um hobby.
Ela virou o rosto, rindo. Não parecia raiva, porém era sim raiva. Estou cansado de ouvi-la gritando.
- Hobby é a arte tímida de humanos sem tempo - ela apontou o dedo indicador pra cima - O meu hobby, por exemplo, é desenhar. E nós dois sabemos que desenhar é a expressão mais básica de arte.
Honestamente, acho que há uma coisa que está complicando esta conversa...
- Pra você, o que é arte?
Eu tive de colocar isso na pauta. Afinal, o que é a arte? A opinião, a expressão, ou a liberdade? Dependendo da resposta, a filosofia é acompanhada de argumentos e gostos específicos.
- É a definição de alguma coisa, como obra ou desenho, que se baseia nas emoções do artista. São as palavras de seus sentimentos na vida real - ela explicou, novamente apaixonada - E também, acho que funciona bem para contar alguma coisa.
Eu apenas concordei, satisfeito. Isto aqui não é uma discussão para ver quem está certo. A arte é única para todo mundo. Porém, há um gosto diferente de escutar a visão única de um outro alguém sobre ela.
- Achei linda a sua definição de arte - eu sorri, porém me levantei - Boa noite, e obrigado pela conversa, me foi muito gratificante trocar visões de uma mesma coisa.
Honestamente, eu me apaixonei. Não pela menina, mas pela sua visão. Já estou tão habituado, que pouco reparei que minhas emoções influenciam no que faço esses tempos. Mesmo as memórias...
- Ah, ahn... okay. Tchau! - ela acenou com um deslocado imenso sorriso acavalado, e eu também, tímido - Eu vou voltar aqui amanhã, nesse mesmo horário! Venha, também!
- Claro.
Confirmei, e dei as costas.
Eu nunca mais irei retornar a esse banco. Não por maldade, ou por desgostar da menina; é que minha condição faz com que minhas relações entrem em conflito.
Amanhã, ou talvez depois de amanhã, esta menina nunca mais vai lembrar de mim, e muito menos desta conversa.
Para alguém que entra em memórias, eu também apago aquelas em que eu participo. As excessões seguem rotinas diárias. O patrão me conhece desde pequeno, e possivelmente só consegue se lembrar de meu nome, idade, profissão, e talvez horários. Isso não funciona com outras pessoas além da família, e isso é algo um tanto frustante.
Saí do parque em direção de uma nova rota, que de novo fugia da parte rural para os lados novamente descidos da cidade, em uma breve escadaria.
Mesmo que famoso o parque, seu entorno pouco havia mais que alguns prédios puramente habitados, e em um deles apenas fantasmas pairavam sobre apartamentos. Um ano ousei morar semanas aqui, e pouco mais me aconteceu que muita preguiça.
Logo eu estava em um dos apartamentos da alta copa, no último andar em frente a sacada escancarada e um tanto perigosa.
Por ter sido minha casa, as coisas estavam ajustadas, ainda que sem luz e, nesse caso, minha lanterna era mais que suficiente.
A frente da sacada estava outra cadeira, agora de ferro enferrujado, e ao ladinho uma mesa. Ali deixei minha mochila, e olhei para as maravilhosas estrelas para enfim terminar as anotações;
Dia 153 de uma linda manhã de primavera:
Hoje, acho que acordei bem, acima de tudo. Sinto que minhas pernas estão melhores, depois daquela queda. Estou vivo, não estou?
Mais um dia sigo.
Ocorreu o de sempre no trabalho. A família Robbstein fez o que eu já esperava. Digo, Janete está cada dia mais Jonas. Ou o Jonas que está mais Janete? Vai ser tudo a mesma coisa, no final.
Haverá mais uma refém dos abusos de Jonas. Espero que desta vez seja rápido.
A entrega não foi nada demais, honestamente. A última vez no bairro florido foi algo quase cortejante. Estou louco pra voltar lá.
O horário do Leitor:
Não teve, culpa da garota-arte que atrapalhou minha concentração.
É a primeira vez que isso não ocorre neste ano. Já está tarde demais para eu ir no acampamento dos amaldiçoados, também.
Fim do dia 153 em um belo tom celeste do céu, em conjunto com as estrelas;
A arte é a expressão da emoção em algo, ou a um quê. É uma visão poética vindo de alguém desconhecido.
Mesmo não lembrando com exatidão seu rosto, pelo menos deliniei o curto cabelo e uma face um tanto oval, bem pequeno ao lado das palavras de fim, também ao final da página... eu sou horrível em desenhar pessoas.
Voltei o olhar para o céu estrelado, e enfim fiquei ali por uma pouca parcela de tempo, para então ir-me embora à casa.
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