Capítulo 9 - A Comédia da Fé
À medida que o grupo caminhava em direção à estalagem, aperceberam-se de que vários caminhos haviam sido cortados, forçando-os a seguir uma rota mais longa para chegar ao seu destino.
Bell viu-se finalmente afastado daquele ambiente opressor que o mercado de escravos proporcionava. O resto da cidade não era tão diferente do que ele imaginara; embora o ambiente fosse menos carregado devido à ausência de escravos acorrentados à venda por algumas moedas, a cidade continuava deserta, sem motivo aparente.
Foi mais para o centro da cidade que começaram a sentir a presença de mais pessoas – muito mais pessoas. À medida que avançavam, viam mais gente e mais lojas abertas, de onde saíam homens e mulheres com expressões de satisfação no rosto. Bell sentiu-se tentado a perguntar novamente o que se passava, mas, com a quantidade de gente à sua volta, ficou difícil seguir os outros.
Sussurros e risos ecoavam por todo o lado. Estaria a acontecer algo naquela cidade? Uma festa, talvez, ou algo do género?
Finalmente, Elliot encontrou um caminho que não estava obstruído. Podiam, por fim, livrar-se daquele amontoado de pessoas e respirar mais aliviados. Bell parou de seguir Elliot quando esta saiu da multidão, assim como Bill e Trei.
A rua onde se encontravam era um pouco mais larga do que as anteriores e com um piso mais uniforme. Ao fundo, um homem gritava. Bell aproximou-se para ouvi-lo melhor: era um sacerdote, com longas vestes brancas, segurando um cajado ornamentado numa mão e, na outra, adornada com vários anéis de ouro e prata reluzentes, um livro de lomba preta.
No livro, destacava-se um cálice bordado na capa, enquanto colares pesados se acumulavam ao redor do seu pescoço, ao ponto de ser difícil distinguir onde acabava o pescoço e onde começava o metal. O sacerdote gritava para todos os presentes na multidão.
Sempre que levantava o livro e gritava, os ouvintes respondiam com aplausos antes de gritar em uníssono uma frase que Bell não conseguia compreender. A cena parecia-lhe uma pregação religiosa. Nunca tivera experiência direta com uma, mas lembrava-se de ter ouvido um homem, há muito esquecido, que já fora organizador de festejos religiosos, contar como todos louvavam o sacerdote sempre que ele levantava o livro, como se estivessem a louvar a Deus.
O interesse de Bell desapareceu rapidamente à medida que a pregação se prolongava. Virou-se para sair, mas, antes que o fizesse, as últimas palavras do sacerdote chamaram-lhe a atenção.
- E agora, de coração e mente purificados, neste dia em que Deus nos abençoou com a sua luz da cremação, puniremos o mal que vagueia pela terra e mancha o nome da humanidade. Aqueles que não passam de aberrações devem queimar; crias de aberrações, propagadores de males e doenças. Aqueles que não são teus filhos, como nós, do Todo-Poderoso que criou o dia e a noite, devem submeter-se a nós, porque, assim, submetem-se a Deus. Só assim se submetem ao nosso pai, e, se não se submetem a nós, não se submetem ao Pai de toda a luz e sombra, e, portanto, devem ser excluídos deste mundo.
Bell esgueirou-se por entre o resto das pessoas. O sacerdote estava num pequeno palco de madeira e, atrás dele, presos a sete postes, sete escravos, com sete correntes, guardados por sete guardas de armadura leve e espadas desembainhadas. Eram todos demi-humanos, com os olhos inchados de tanto chorar por causa da injustiça e daquilo que Bell esperava não ser marcas de chicotadas.
- Lembrem-se, meus irmãos, que foi Golias que mandou pregar esta palavra, espalhar as verdades que o nosso pai criou, e é com essa fé e crença que, primeiro, cortaremos os seus membros, para que o seu sangue sujo seja exposto à verdadeira luz.
Os guardas deram um passo, com espadas erguidas.
- Depois, banhá-los-emos em água a ferver para que sintam aquilo que o nosso pai fez crescer. - De facto, haviam vários baldes atrás deles. - E, por fim, juntamos como irmãos a lenha deste palco e ateremos fogo ao mal que prolifera a nossa terra.
A multidão gritou em aprovação, em tom de festejo, como se fosse divertido ver aquele espectáculo de horror.
Como poderiam eles assistir àquilo com expressões tão serenas e calmas?
O sacerdote deu a ordem para os guardas desembainharem as espadas. Bill parou de seguir Elliot subitamente e começou a procurar o seu irmão, instintivamente, pois as palavras do sacerdote fizeram Bill aperceber-se de que aquelas palavras eram o suficiente para o deixarem fora de si. A multidão gritou de entusiasmo, urros de alegria, pelo menos até uma sombra passar por cima deles.
Os guardas, surpresos com a aparição de Bell, pararam as espadas e cravaram os olhos nele, assumindo, de imediato, uma posição ofensiva. Os dois primeiros guardas atacaram simultaneamente pelos lados com um corte horizontal. Sendo muito lentos para ele, Bell agachou-se e as espadas passaram por cima dele.
Ouviu-se uns sussurros, e as lâminas revoltaram-se contra os guardas, estavam mais pesadas e pareciam ter vontade própria.
Bell fez o mesmo com as suas armaduras e com os elmos, e em pouco tempo os guardas saíram do palco, a correr, não entendendo o que se estava a passar. Vendo a cena, Bill começou a correr para ajudar o irmão, mas foi impedido por Elliot, que, torcendo-lhe o braço discretamente, impediu que ele desse mais nas vistas e recuou com ele para onde Trei os aguardava.
Pode ter sido só impressão de Elliot, mas ela sentiu na espinha a leve sede de sangue de um predador à espreita, à espera da sua oportunidade. Os restantes soldados tomaram mais precaução com Bell, mas este não os deixou delinear uma estratégia e atacou-os com os punhos em chamas, que rebatiam nas lâminas deles como um machado.
Numa tentativa vã de dispersar a atenção de Bell, um dos guardas tentou contorná-lo, enquanto os outros o atacavam. Foi um golpe de cima a baixo que falhou por completo o alvo.
Bell aproveitou a oportunidade e lançou mais um feitiço. Assim que o guarda voltou a atacá-lo, a lâmina da espada desfez-se em água. Girando sobre os calcanhares, Bell aplicou-lhe uma cotovelada, seguida de uma joelhada no estômago. O golpe foi tão certeiro que, com o guarda curvado de dor, bastou um pontapé para o lançar fora do palco.
Ainda havia dois guardas para enfrentar, mas Bell não lhes deu tempo para reagir. Tomando a ofensiva, lançou um novo feitiço. As poças de água que haviam se formado no chão de madeira sofreram um espasmo e atiraram-se contra os dois soldados que permaneciam na defensiva, derrubando-os com um único golpe.
Os últimos dois guardas restantes desviaram o olhar de Bell por um breve instante — erro fatal. As tábuas do palco, como que possuídas por magia, soltaram-se dos pregos que as fixavam e bateram com força nos joelhos dos soldados. Apesar da proteção das armaduras, o impacto foi suficiente para os desestabilizar. De súbito, um braço de madeira ergueu-se do chão, agarrando a viseira de um dos guardas. Com uma força impressionante, o ergueu do palco antes de o balançar e lançá-lo para o meio da multidão.
O último guarda, no entanto, não se deixou intimidar pelas magias de Bell. Segurando firmemente a sua espada, pressionou Bell com uma sequência de ataques rápidos e precisos. A lâmina dançava nas suas mãos, revelando um nível de habilidade muito superior ao dos outros. Bell esquivava-se com agilidade, mas percebeu que aquele guarda não podia ser derrotado com velocidade.
Num golpe pesado, o guarda tentou esmagar Bell, mas este reagiu imediatamente. Com um jato ardente de chamas, deformou a espada do oponente. Aproveitando a oportunidade, Bell lançou uma magia menos poderosa, apenas o suficiente para não o matar. A armadura do peito do guarda desprendeu-se e caiu no chão, deixando-o desprotegido. Mesmo assim, o soldado precipitou-se para cima de Bell, segurando um punhal. Num movimento rápido, conseguiu enterrar a lâmina no corpo do seu oponente. A armadura de Bell rangeu com o impacto ao atingir o chão.
O guarda acreditou ter vencido. Retirou o punhal, já sujo de sangue, e virou-se para a multidão, certo de que receberia aplausos pela sua vitória. Bill, que observava a cena, tentou desesperadamente correr até o irmão, mas Elliot, com esforço, manteve-o contido. Quando o guarda se afastou, o corpo de Bell, que parecia prestes a colapsar, surpreendeu todos.
Uma tábua do palco soltou-se e, como um braço vingador, golpeou o soldado desprotegido no tronco com força suficiente para o lançar ao chão. O punhal caiu ao seu lado, ainda manchado de sangue. Enquanto isso, Bell levantou-se lentamente. Para o espanto de todos, mostrava-se mais do que bem. O treino rigoroso de Elliot dera frutos, e nem sinal havia de que fora apunhalado momentos antes.
Bell aproximou-se dos prisioneiros e, com uma magia, fez crescer uma planta em cada poste a que estavam acorrentados. As plantas cresciam a olhos vistos e, à medida que ganhavam tamanho, iam estudando o mecanismo dos cadeados por dentro, até os abrirem. Bell ajudou-os a levantar, enquanto alguns murmuravam agradecimentos fracos. Ele esforçava-se para fazer desaparecer as suas feridas. Os menos feridos ajudaram os mais desgastados a fugir pelas traseiras do palco.
-Por favor rapaz fuja, não vale a pena alguém tão jovem sacrificar a sua vida por nós - implorou um dos prisioneiros que ainda não tinha sido solto.
-Acho que não ser uma coisa destas que vai arruinar a minha vida - comentou Bell inocentemente.
-Mas se nos soltares a ira do seu Deus cairá sobre ti - avisou o homem, colocando uma expressão de duvida no rosto de Bell.
-Acho que se esse Deus depende desta gente para espalhar a sua palavra, então não deve ser lá um grande Deus - comentou ao soltar o ultimo prisioneiro.
Tanto os prisioneiros, como o publico, o sacerdote e mesmo Elliot olhavam para Bell com uma expressão absurda de espanto, afinal Bell acabava de ridicularizar o deus daquela região á frente de toda aquela gente.
Assim que o último dos demi-humanos escapou, o sacerdote bateu com força o cajado no chão, chamando a atenção do rapaz que havia interrompido a sua cerimónia sagrada.
Vários Golens e criaturas de armadura estavam prontos para o enfrentar. Eram criaturas relativamente fáceis de se fazer contrato no caso dos guerreiros, e os Golens não eram difíceis de serem fabricados.
— O que pensas que estás a fazer? Ao libertar esses demónios, estás a pôr as pessoas desta cidade em perigo? — gritou-lhe, frustrado.
— O único demónio que vejo está vestido de branco e decorado com um monte de bugigangas. E se estas pessoas acreditam nessas crenças, são mais ignorantes do que essa fé obscura e perversa que motiva o sofrimento alheio — ripostou Bell.
Os soldados avançaram na direção de Bell, mas os seus familiares ficaram parados, hesitantes. Nem os Golens, criações humanas sem emoções, ousaram atacá-lo. Ao perceberem que os seus familiares não acataram as ordens, os soldados olharam melhor para Bell. Por cima da sua cabeça, várias flechas amarelas flutuavam, apontando diretamente para cada um deles. Compreendendo que dependia de Bell acertá-los ou não, ninguém ousou provocá-lo.
Bell saiu calmamente pelas traseiras do palco, enquanto o sacerdote lhe lançava injúrias e maldições.
— A ira do Pai de Todos vai perseguir-te pelo teu desrespeito à fé que ele nos ensinou. Nunca mais vais poder descansar! Ele vai perseguir-te até ao fim do mundo e fará com que as bestas do outro mundo rasguem os seus á tua procura - Gritou perante aquela blasfémia.
— Se o vosso Deus é tão desocupado ao ponto de vir atrás de um mero mortal como eu, então ele não deve ter grande coisa para fazer lá em cima — provocou Bell, com uma expressão de desentendido.
— Como te atreves a desrespeitar aquele que te concedeu a vida?! Pessoas como tu são a razão destas abominações ainda existirem! Vocês são a parte mais fraca da nossa espécie, e é por causa da vossa ignorância para com a benevolência dos deuses que sofremos! — gritou um dos fiéis.
— Quem me concedeu a vida foi a minha mãe, não um deus fictício que vocês inventaram para matar aquilo que não gostam. Vocês usam um falso nome e uma falsa crença para alimentar os vossos desejos egoístas. A menos que estejam convencidos de que foi Deus é na verdade uma parteira, o que dizem não faz sentido nenhum.
-Como te atreves a dizer tais calunias seu pecador desprezível - gritou um dos homens no meio da multidão.
-Afinal porque seguem essa religião se não faz sentido? - questionou Bell indiferente.
-Porque é a correta, porque é a certa a ser seguida e aqueles que não a segue devem ser julgados pela sua ignorância - gritou uma mulher á beira do desmaio.
-Porque é a certa, então....
-Exatamente - gritaram os fieis
-E se a minha religião disser que o céu é vermelho? Ela esta errada - perguntou como se estivesse a fazer pouco dos fieis.
-CLARO QUE SIM, QUE SENTIDO TEM ISSO - Gritou uma mulher com repudio das palavras de Bell.
-E porquê? - perguntou inocentemente.
-PORQUE O CÉU É CLARAMENTE.... - O homem não terminou a sua frase, pois em um leve movimento com as mãos, Bell apontou com os dedos para o céu.
Com olhares assustados, pernas a tremer e lagrimas no canto dos olhos os fieis estremeceram pois o céu havia se tornado completamente vermelho.
-BLASFÉMIAAAAAAAAAAA - Gritou o sacerdote incrédulo - Como ousas tu distorcer e modificar o mundo que o arquiteto criou, não tens medo da sua fúria? - Balbuciou o sacerdote atónico.
-Não sei do que falam pois aqui estou, á frente de vós, de baixo deste céu vermelho, o céu que o meu deus criou - afirmou Bell batendo o pé nas tabuas de madeira fazendo-as ranger - por aquilo que vocês dizem o certo é o que vemos e o que eu vejo é que o céu é vermelho, ENTÃO COMO PODERIA EU ESTAR ENGANADO.
-DEMÓNIO! - Gritou o sacerdote - Para borrar o mundo do nosso senhor assim, só sendo um DEMONIO.
-No entanto para mim, vocês são os verdadeiros demônios, pois falam de um tal céu azul, quando o nosso céu é claramente vermelho - ditou Bell olhando-os de cima incrédulo, e com o sol a subir lentamente atrás do seu corpo, projetando a sua sombra sobre os fieis agora perdidos e confusos.
-Não...O ARQUITETO NÃO O PERMITIRÁ - Gritou um dos fieis.
-ENTÃO ELE QUE DESÇA DOS SEUS E DIGA QUE EU ESTOU ERRADO, ele que caminhe entre nós meros mortais e traga o vosso tão aclamado céu azul AHAHAHAHAHHAHAH
Elliot deu um passo para traz, tudo em sí a alertava-a para não confiar em Bell....se aquela pessoa fosse o mesmo rapaz que os tinha acompanhado, parecia tratar-se de uma pessoa totalmente diferente, era a mesma sensação de quando Bill havia sido atacado, era algo perigoso.
Bell soltou um breve suspiro, e virou costas ao grupo de fieis, saltando para trás do palco pondo fim ao seu truque e deixando que o céu volta-se a ser azul.
Bell não sabia muito sobre aquela religião, mas sabia que no seu mundo existiam diversos Deuses, cada um com os seus devotos e os seus costumes. A maioria deles poderia mesmo ser invocada por rituais ou outros métodos não tão convencionais mas neste caso era diferente.
Enquanto estavam na cova dos uivadores Elliot havia-lhes explicado algumas coisas sobre o mundo, e uma das coisas que ela lhes havia informado era sobre a existência dos deuses.
Apesar de serem diversas espalhadas pelo mundo a mais numerosa é sem sombra de duvida o Structurismo, a crença em uma divindade denominada de arquiteto do universo, onde os fieis acreditam que até mesmo todo os outros deuses são criação dele.
Mas pelo que Elliot explicou-lhes aqueles que pregam a sua religião apenas desejam a submissão de todas as outras raças ou a sua extinção, algo que Bell via como uma atitude estupida e digna de pena.
-Obrigado Stella - agradeceu Bell ao seu familiar - foi complicado?
-hehe para mim nada é complicado - respondeu Stella confiante - um simples truque de luzes foi o suficiente para abalar essa tal fé, um pouco patético demais na minha visão - comentou espreguiçando-se e descendo do telhado em que estava escondida.
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