Capítulo 4: Descendo para o Inesperado
Já de manhã, os primeiros raios de sol entraram pela janela do quarto dos irmãos e, como não tinham cortinas, esconderam-se por baixo das almofadas. Ao contrário dos primeiros dias no esconderijo, nem Elliot ou Doreán os vieram acordar, o que lhes rendeu mais algumas horas na cama. Ainda meio ensonado, Bill levantou-se e, por necessidade, arrastou-se pelo corredor até à casa de banho. Já Bell aguentou um pouco mais antes de se levantar e sentir o forte cheiro a cavalo que vinha de si.
Quando ambos os irmãos estavam prontos, desceram para o hall, onde os restantes já os aguardavam, comendo papas de aveia — o mesmo que lhes foi servido. Doreán não mencionou o que havia acontecido na noite anterior, e nem ele nem Elliot pretendiam tocar no assunto. O dono da taberna também agia como se nada tivesse acontecido.
— Pequeno-almoço tomado, agora vamos à loja do Don — anunciou Doreán, de bom humor, dirigindo-se para a porta.
— Não te estás a esquecer de nada? — comentou o dono da taberna, com a mão estendida.
— O que seria? — fingiu-se de desentendido, até atirar algumas moedas para o dono.
— Ainda não é hoje que vais sair sem pagar, seu forreta — riu-se o homem.
— Até parece que sou desses — respondeu Doreán, muito descontraído, enquanto tirava um cigarro da cigarreira e o acendia com o isqueiro de prata.
Apesar de já estarem a meio da manhã, o mercado de escravos ainda estava fechado, uma boa notícia para Bell, que prestava mais atenção às casas ao redor do que à rua desguarnecida de pessoas. Com passos rápidos, atravessavam as ruas e desviavam-se do lixo abandonado em frente às portas. Mesmo com o sol brilhando e o céu limpo, o dia não era agradável. O ambiente da cidade era, por si só, de tal forma mórbido que nem o melhor dos dias a alegrava. Pelo menos, dessa vez, não havia pessoas a gritar ou aos encontrões.
Como em todas as cidades, esta também tinha várias lojas e mercados. Contudo, todos estavam resguardados dentro de edifícios, que normalmente exibiam uma placa pendurada à porta com o nome da loja.
A cidade parecia ser tão grande quanto Marlot, mas havia pouco que despertasse interesse. As únicas coisas ali, além de cabarés, eram os mercados de escravos e os mercados comuns. Nada mais a diferenciava. Uma cidade simples como aquela devia dar um bom rendimento para o regente, que, por sinal, vivia numa enorme mansão no centro da cidade. Esse era um lugar a evitar, pois, além da segurança apertada e bem armada, não havia muito de interessante em um homem tão egocêntrico, que batizou a cidade com o próprio nome. O único lugar, além da taberna, que interessava a Doreán era a loja do Don, um amigo próximo que sempre tinha algo de novo para ele.
— Aqui estamos — anunciou Doreán ao parar à frente de uma loja com uma tabuleta com uma flor esculpida.
Ao entrar, a primeira coisa que se notava eram as enormes estantes que preenchiam todo o espaço, repletas de flores de todos os tipos e espécies. Ao fundo de todas essas estantes, estava um homem quase escondido atrás da secretária, rabiscando um papel com raiva. Era bem mais baixo do que qualquer um do grupo, quase que nem chegava à anca de Bell. Além disso, o bigode branco e as rugas na testa indicavam que devia ter uma idade bastante avançada. Ao ver Doreán, esboçou o seu melhor sorriso amarelo e rapidamente largou o papel que rabiscava.
Saltou para cima da mesa, derrubando alguns papéis sem importância no chão, mas, mesmo assim, continuava mais baixo que Doreán — talvez do mesmo tamanho que os irmãos.
— Um anão? — perguntou Bill, confuso.
— Vê lá como falas! — gritou Don, irritado, enquanto atirava a primeira coisa que lhe veio à mão contra Bill. — Já não existe respeito pelos mais velhos.
— Não fiques assim, ainda te dá qualquer coisinha — avisou Doreán, em tom de brincadeira. — Lembra-te de que já não tens o mesmo corpo de há trinta anos.
— Também queres que te atire alguma coisa? — ameaçou Don, já com a mão em um livro volumoso, pronto para arremessá-lo na direção de Doreán.
— Don!!! — exclamou Trei, correndo para o homenzinho.
— Olha só como cresceste, meu pequeno! — disse Don, orgulhoso, antes de saltar para os braços de Trei. — Tens sido um bom menino? Não tens dado trabalho ao Doreán?
Trei acenou freneticamente com a cabeça, e Don logo escalou o corpo montanhoso de Trei para lhe fazer festinhas na cabeça.
— Bom menino.
— Sinceramente, às vezes fico mesmo convencido de que ele é teu neto — comentou Doreán, rindo enquanto soltava uma nuvem de fumo e retirava o cigarro da boca.
— Desde que apareceste com ele aqui pela primeira vez, recusei-me a deixar que o criasses sozinho — respondeu Don, olhando Doreán de cima.
— Ainda acho que te ofereceste para ajudá-lo só para seres mais alto que eu uma vez na vida — brincou Doreán.
— Não digas essas coisas! Dei todo o amor que podia ao ajudar a criá-los. E, por falar nisso, onde está a minha menina?
— Aqui — apresentou-se Elliot. — Como estás, Don?
— Trei, põe-me no chão, por favor — pediu Don, com lágrimas nos olhos. Desceu de Trei e foi em direção a Elliot. — Como estás, minha bela filha? Até parece que foi ontem que passaste por aquela porta.
— A idade também não passou por ti — comentou Elliot, tentando contrabalançar. — Estás igual à primeira vez que te vi.
— Não dês elogios não merecidos a este velhote — disse Don, limpando as lágrimas com a manga da camisola. — Deixa-me ver-te melhor.
Don afastou-se alguns passos e analisou-a de cima a baixo antes de se voltar para Doreán.
— Fico contente com o nosso trabalho.
— O mérito é dela. Foi a melhor aluna que tive — disse Doreán, mas logo percebeu o olhar severo de Don e a expressão infeliz de Trei. — Nada disso, tu também és o meu motivo de orgulho — acrescentou rapidamente, mais tranquilo ao ver o sorriso na face rechonchuda de Trei.
— Ainda não sabes o peso das palavras. Nota-se mesmo que não cresceste — criticou Don, com um encolher de ombros.
— Don, ele mudou desde a última vez que estivemos aqui. Agora só fuma três cigarros por dia, em vez de três maços — informou Elliot, ajoelhada para ficar ao mesmo nível que ele.
— Eu sabia que seria uma rapariga a convencer-te a parar de fumar. Essa coisa ainda te vai matar algum dia — disse Don, triunfante.
— Lamento desiludir-te, mas não me vejo a morrer por uns quantos cigarros.
— Ao menos convenceu-te a reduzir.
— Ela não me convenceu — desmentiu Doreán. — Ela destruiu todos os meus cigarros, e eu tive de os fazer.
— Estou tão orgulhoso de ti! — exclamou Don, abraçando Elliot.
— Como raios conseguia fumar três maços por dia? — perguntou Bell, muito desconfiado.
— E quem são estes? — perguntou Don, largando Elliot e aproximando-se dos rapazes, com as sobrancelhas erguidas.
— Eu chamo-me Bell. Prazer em conhecê-lo — cumprimentou Bell, ajoelhando-se, como Elliot havia feito, e estendendo-lhe a mão.
— O prazer é meu, eu chamo-me Donnfiel, mas por favor, trata-me por Don.
— Muito prazer, Don.
— O prazer é todo meu, rapaz. E quem é o outro? — Virou-se para Bill, coçando o bigode.
— O meu irmão, Bill. Desculpe a atitude dele, mas ele deixa as coisas escaparem muito facilmente. — Bell apontou para o irmão.
— Não me incomodo com isso. Precisamos de pessoas diretas como ele.
— Eu não tenho culpa se partir a mão do velhote — respondeu Bill, estendendo a mão em cumprimento, apenas para levar com um livro na cara.
— Eu disse que precisamos de pessoas diretas, não de mal-educados num projeto de homem! Então, qual é o teu objetivo com isso? — retrucou Don, furioso.
— Estes dois são os nossos bilhetes de saída deste continente — respondeu Doreán, sorrindo, enquanto Bill segurava o nariz a sangrar.
— Ainda atrás das licenças? — suspirou Don. — Para ser sincero, pensei que já tinhas desistido disso.
Bell acalmou o irmão e começou a tratar do nariz dele, enquanto Bill lançava injúrias contra Don.
— E tinha — confirmou Doreán. — Até estes dois derrotarem um nobre e o criado dele, incendiarem metade de uma cidade, fugirem de um cativeiro cheio de guardas e sobreviverem a uma criatura que parecia um desastre natural.
— Desculpa, acho que ouvi mal. O que disseste? — perguntou Don, fingindo limpar o ouvido com o dedo.
— Estes dois miúdos derrotaram um nobre. — Doreán repetiu calmamente, apenas para Don saltar para cima dele, agarrar-lhe o colarinho e puxá-lo para baixo.
— Tens noção do que estás a dizer? — Don deu-lhe duas bofetadas.
— O que se passa contigo, Don? — repreendeu Doreán, afastando-o com as bochechas vermelhas.
— Tu queres que eu acredite que estes dois derrotaram um nobre? Um nobre? — insistiu Don, incrédulo.
— Sim, era o que eu esperava. E porque estás a desconsiderar o resto? Eles fugiram de uma esquecida praticamente sozinhos.
— JAMAIS! — gritou Don, os pelos brancos do bigode eriçados. — Além disso, o que te passou pela cabeça andar com pessoas que saíram de uma esquecida? Sabes que estás a pôr um alvo nas tuas costas maior que o anterior?
— Olha que o alvo já não era pequeno — acrescentou Elliot.
— Elliot, não estás a ajudar. Sabes o quão difícil é lidar com um homem da altura dele com uma faca?
— Meio que seria o mesmo que lidar com um gnomo de jardim com uma arma — opinou Bill, enquanto Bell acabava de tratar o seu nariz.
— Don, o Doreán não está a mentir — apoiou Elliot. — Por mais estranho que pareça, eles derrotaram mesmo um nobre e, pelo que vimos, vários soldados, além de terem enfrentado algo que nunca tínhamos visto antes.
— Impossível! — exclamou Don, chocado. — Tu não conseguirias obrigar a Elliot a mentir para mim, por isso... devo aceitar que isso seja verdade.
— Por que raios eu faria isso? — gritou Doreán, furioso.
— Clab! — chamou Don, retirando-se para a secretária.
Uma pequena bola de pelo desceu das estantes e foi até Don, correndo velozmente entre as flores sem derrubar uma única. Do tamanho de uma cabeça humana, coberta de pelo prateado e com enormes olhos azuis, Clab saltou para a cabeça de Don, a cauda abanando de alegria. Além dos olhos, possuía marcas azuis em volta do corpo e da cauda. Sentou-se quieto, esperando os mimos de Don, que lhe fez festas na cabeça.
— Analisa. — Ordenou Don, tirando a mão da cabeça de Clab.
Os olhos da criatura emitiram luzes azuis que iluminaram Bill, que quase não reagiu, ao contrário de Bell, que se divertia observando as mãos banhadas pela luz.
— Clab, revela — ordenou Don.
A criatura virou-se de costas para o grupo e projetou na parede imagens e símbolos com as luzes. Aos poucos, frases e padrões surgiram, formando uma linguagem complexa. Contudo, Don parecia confuso, passando os olhos pelos fragmentos de frases, símbolos soltos e imagens incompreensíveis. Pela primeira vez em anos, sentiu-se um amador. Frustrado, acariciou Clab, que fechou os olhos e se aninhou no colo do mestre.
— E então? — perguntou Doreán, apreensivo ao ver a expressão de Don.
— O Clab não os consegue analisar — confirmou Don, abatido.
— Analisar? — repetiu Bell, intrigado.
— Sim. O Clab tem a habilidade de analisar e codificar tudo o que entra na luz dos seus olhos. Ele pode codificar qualquer coisa em qualquer tipo de linguagem, ou até inventar uma, caso o dono ensine.
— E como funciona essa análise? — perguntou Bell, aproximando-se de Don e fazendo festas em Clab.
— Ele analisa a magia que emana de quem está na luz e traduz numa linguagem própria.
— Os símbolos na parede? — completou Bell.
— Exato. Contudo, só funciona no continente onde ele se uniu ao mestre, pelo menos até aprender as magias dos outros continentes. Quando ele tenta analisar alguém de outro lugar, aparecem coisas incompreensíveis como estas.
— Entendi — respondeu Bell, processando a informação.
— Então... de onde vocês são? — perguntou Don, franzindo o cenho.
— Sempre pensei que fôssemos daqui — respondeu Bill, prestando mais atenção.
— Desta cidade? — indagou Don, intrigado.
— Não, deste continente, não. Fomos adotados por um agricultor quando ainda éramos pequenos; não fazemos a mínima ideia de onde éramos antes.
— Bem, se o Clab não vos consegue analisar, isso quer dizer que não são deste continente.
— Então, quer dizer que nascemos nos continentes, para lá do mar? — interrompeu Bill, chocado.
— Foi o que eu acabei de dizer — respondeu Don, como se estivesse a falar para uma parede.
— Mas, então, como chegamos aqui? Por que nos trouxeram? Será que os nossos pais ainda andam por aí? — disparou Bill, enchendo Don de perguntas e assustando Clab ao se aproximar demais.
— Não sei. Mas, se os vossos pais escolheram ficar neste continente, já morreram há muito. Contudo, se escaparam, provavelmente fugiram para um desses outros continentes.
— E, se fugiram, por que não nos levaram juntos?
— E como é que eu vou saber?! — protestou Don, irritado. — Se queres tanto assim saber, ganha a licença e vai procurar por respostas tu mesmo, em vez de chatear os outros!
Bill sentiu-se como se tivesse levado um balde de água fria. Contudo, as palavras de Don trouxeram-lhe uma ideia concreta: assim que obtivesse a licença, poderia sair daquele continente e buscar as respostas que tanto desejava. Sobre os pais, os seus pesadelos e até mesmo a questão do mago morto-vivo... Sim, os pesadelos, tão reais quanto a própria loja. Com um suspiro, Bill acalmou-se e voltou para junto de uma estante de livros.
— Pensava que não ligavas para essas coisas — comentou Bell, observando o irmão.
— E não ligo — respondeu Bill, cruzando os braços e encostando-se a uma parede.
— Obviamente que não ligas — ironizou Bell.
— Então, já sabes o que viemos aqui fazer? — sugeriu Doreán.
— Aquilo que fazes sempre que vens aqui. — Don passou Clab para Trei, que o segurou cuidadosamente. Assim que a bola de pelo saiu do seu colo, Don dirigiu-se à parede atrás de si.
— Trei, fecha a porta — ordenou Don, sem nem olhar para trás.
Ele então ergueu a mão em direção à parede e recitou:
— Pela vontade que emana das brasas, pela força que molda o aço, pelas mãos treinadas para construir, mostra-me o caminho do ferreiro que muitos tentam seguir.
De imediato, a parede respondeu às suas palavras, abrindo-se como uma porta dupla. A passagem revelou vários lances de escadas que desciam, iluminados por tochas pregadas às paredes. À medida que os degraus se revelavam, as tochas acendiam-se automaticamente, lançando um brilho quente e reconfortante.
— Está um pouco diferente ou é impressão minha? — perguntou Doreán.
— Andei a fazer algumas melhorias, se é isso que estás a perguntar — respondeu Don, com um leve sorriso.
Don e Doreán foram os primeiros a descer, seguidos por Elliot e Bell. Por último, vinha Bill, que se distraiu ao ver Trei brincar com Clab, sentados perto da entrada. Trei parecia barrar a porta com o corpo, e isso funcionava perfeitamente. Assim que Bill pisou o primeiro degrau, a porta fechou-se de repente, e o único caminho iluminado era o das tochas que marcavam a descida.
Noutras ocasiões, Bell teria reparado nos detalhes dos degraus e talvez parado para analisá-los. No entanto, desta vez, estava ocupado conversando com Elliot. Enquanto isso, Doreán e Don não paravam de falar, pondo a conversa em dia como velhos amigos. Contudo, os ecos das vozes no espaço fechado começavam a irritar Bill.
Quando chegaram ao final das escadas, todos se calaram, e Bill finalmente pôde sentir um pouco de sossego. O silêncio reinou enquanto Don murmurava vários encantamentos diante de uma enorme porta de metal decorada com um martelo e uma bigorna. As portas abriram-se lentamente, rangendo como se arrastassem grãos de areia sobre o chão polido.
O que se revelou diante deles foi um espaço vasto, com paredes feitas inteiramente de uma pedra cinza. A primeira coisa que chamou a atenção dos irmãos foi a surpreendente quantidade de armas no local. A câmara era enorme, e quase todo o espaço estava preenchido por espadas, lanças, alabardas e armaduras. Muitas estavam dentro de expositores; outras, guardadas em caixotes cuidadosamente empilhados.
Bill, no entanto, sentiu-se um pouco desiludido. Ele esperava algo mais impressionante, mas achou aquela forja inferior à de Marlot. Apesar da abundância de armas, o espaço parecia-lhe frio e sem vida.
— Sabes, os guardas do Golias vêm aqui quando querem espadas resistentes, personalizadas e que cortem tudo como manteiga — comentou Don, lançando um olhar aos irmãos. — Mas achas mesmo que eu lhes daria as melhores?
— Espero bem que não — respondeu Bell, com um leve sorriso.
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