Capítulo 35: A Criança que Não Devia Existir
Nos confins de um mundo gelado, onde montanhas se vestem de branco durante quase todo o ano, uma tribo isolada segue a sua rota ancestral. O vento sopra como um lamento antigo, e o chão gelado range sob os passos dos viajantes. Nesta terra de extremos, até os rios congelam em escorregas cristalinos e as tempestades castigam sem piedade.
A tribo, composta por três anciãos, vinte famílias e dezoito crianças, sobe a montanha íngreme conhecida como Terra Gelada. Eles seguem em fila indiana, amarrados uns aos outros com cordas grossas, enfrentando um nevão impiedoso que castiga os seus rostos escondidos sob camadas de pele e lã. Os anciãos lideram a subida, os mais novos seguem protegidos no centro, e os adultos fecham a marcha.
Entre os mais jovens, um rapaz inquieto move-se com dificuldade sob o peso da neve acumulada nos seus ombros.
— Flora! — chama Cilas, a voz abafada pelos tecidos grossos.
— O quê? — responde a menina à sua frente, sem virar a cabeça.
— Estamos quase a chegar?
— Como é que eu ia saber?
— Estamos sim — interrompe uma voz atrás dele, cheia de certeza. — Já se conseguem ver as luzes da entrada.
Cilas força os olhos, mas só enxerga a imensidão branca que os envolve.
— Eu não vejo nada...
— Espera um pouco.
E então, lá estavam. Pequenos pontos de luz piscando como estrelas na escuridão da tempestade. O abrigo. O coração do jovem dispara com a antecipação.
Mas o tempo não lhes facilita a chegada. O vento ganha força, a neve cai como navalhas do céu, e o solo sob os pés torna-se traiçoeiro. Passos cuidadosos transformam-se em escorregadelas, e o medo espreita entre os flocos de neve.
À entrada da gruta, os anciãos seguem um ritual sagrado. Ajoelham-se perante os Lycans que ali vivem e oferecem palavras de respeito e gratidão. Só depois disso os outros podem entrar. Cilas observa ansioso, tentando conter a pressa.
— Que jovem cheio de energia tu és — comenta um dos anciãos quando finalmente o vê saltar para dentro.
Flora entra logo atrás dele, e mais crianças vão chegando, sacudindo a neve dos ombros. Mas a tempestade ainda não deu tréguas e, quando o último ancião se prepara para soltar uma das cordas, algo acontece.
Um grito.
A última criança, assustada pela força do vento, tropeça e perde o equilíbrio. Em um segundo, solta-se da corda e escorrega para trás. Um dos anciãos estende a mão, os dedos quase a agarrá-la — mas falha.
Cilas congela de horror.
Alguém já se preparava para saltar em seu auxílio quando uma sombra branca se lança da entrada da gruta. Um lobo. Um vulto ágil como a própria tempestade mergulha na neve atrás da criança desaparecida.
O silêncio instala-se por um instante. Depois, o vento uiva, como se risse da pequenez humana perante a sua fúria.
Lá dentro, ninguém se mexe.
Cilas aperta os punhos.
— Não podemos simplesmente ficar aqui! Temos de ir atrás deles!
— Cilas... — Flora coloca uma mão no ombro do amigo, mas ele afasta-a com um movimento brusco.
— E se não voltarem? E se...
— Relaxa — diz uma voz tranquila atrás dele.
Cilas vira-se.
— Vin?
O rapaz encapuzado acena levemente.
— Eles vão ficar bem.
— Como podes ter tanta certeza?
— Porque ele já se transformou — comenta outra voz, com um tom de inveja mal disfarçada.
— Deras... — Cilas suspira, já antecipando o rumo da conversa.
— Estou só a dizer! Nem todos temos esse privilégio.
Cilas não tem paciência para discutir. A sua mente está na criança desaparecida e no lobo branco que saltou em sua defesa. Ele sente-se impotente, cada segundo parece uma eternidade.
E então, o lobo volta.
As pessoas afastam-se, abrindo caminho. Entre os dentes, o animal traz a criança envolta em panos. Uma mulher corre até ele, recebendo o pequeno corpo nos braços.
Um murmúrio percorre o abrigo.
— Muito bem — diz um homem de longas vestes amarelas, barba branca enfeitada com contas verdes. Ele bate palmas, como se marcasse um fim e um começo.
Outro homem, quase idêntico ao primeiro, mas de manto verde, junta-se a ele.
— Devem estar exaustos depois de uma caminhada dessas.
— Na gruta abaixo temos os banhos — informa um terceiro, de manto azul. — Os adultos podem seguir pelo corredor da direita. As crianças, pelo da esquerda. Depois, juntem-se a nós no salão principal.
Cilas mal ouve as palavras. Seu olhar está fixo no lobo branco, que agora se mantém parado, cabeça baixa.
— É um pouco rude manter essa forma à nossa frente, sabias? — comenta um homem de pele escura e manto vermelho, dois brincos verdes balançando em suas orelhas.
O lobo hesita. Baixa ainda mais a cabeça, num gesto submisso, mas não retorna à forma humana.
— Que espécie de comportamento é este?! — Rufios rugiu, os olhos faiscando de indignação.
O lobo branco manteve a cabeça baixa, imóvel sob o olhar severo do ancião de manto vermelho.
— Calma, Rufios — interveio o guardião do manto verde, num tom mais ponderado. — É apenas uma criança que se transformou em lobo. As suas roupas foram destruídas no processo... a menos que queiras que ela se exponha diante de todos, sugiro que deixes os nossos convidados seguir para os banhos.
Rufios hesitou, envergonhado pela reprimenda pública. Limpou a garganta numa tosse forçada e virou costas, afastando-se com passos firmes na direção do salão principal.
Assim que ele desapareceu, Cilas suspirou de alívio.
— Elliot! — chamou, correndo para o lobo branco. — Estava tão preocupado contigo!
O lobo ergueu a cabeça e acenou levemente antes de se aproximar dos amigos. Pouco depois, um adolescente surgiu entre os Lycans residentes, indicando-lhes o caminho para as termas subterrâneas. Sem dizer muito mais, apontou na direção dos túneis e, depois, afastou-se para se juntar ao seu próprio grupo.
Os corredores naturais eram largos e imponentes, intocados pela civilização. Os Lycans ali residentes tinham construído os seus abrigos com o mínimo de impacto, respeitando a beleza crua da caverna. Mais abaixo, as termas pareciam um pequeno lago escondido no coração da montanha. Cristais amarelos incrustados nas paredes lançavam uma luz dourada sobre a água fumegante, tornando o ambiente quase místico.
Elliot foi o primeiro a mergulhar, ainda na sua forma de lobo. Só quando a água quente a envolveu é que deixou a transformação se desfazer, o corpo branco emergindo lentamente. Os seus cabelos azul-safira colaram-se-lhe à pele, brilhando sob a iluminação dourada.
Cilas foi o seguinte, sacudindo o frio antes de se atirar para dentro da água. A cicatriz ao lado do seu olho destacava-se ainda mais sob as luzes suaves, e os seus olhos castanhos brilharam de excitação ao nadar até Elliot.
Vin, um rapaz baixo de cabelos e olhos negros, esperou por Flora, que entrava devagar. Com a pele morena e cabelo castanho curto, ela destacava-se ligeiramente dos outros. Atrás dela, Deras lutava para desembaraçar o longo cabelo antes de finalmente se juntar ao grupo.
— Desde quando consegues transformar-te? — perguntou Cilas, a voz transbordando de entusiasmo.
— Tenho treinado bastante — Elliot respondeu, um pouco envergonhada. — Já faz algumas semanas que consigo manter o controlo.
— Semanas?! — Cilas arregalou os olhos. — E nem disseste nada?!
— Talvez ela quisesse fazer uma surpresa para hoje — sugeriu Flora, observando Elliot mergulhar novamente, deixando apenas o nariz de fora.
— Todos temos treinado muito — reforçou Vin. — Tenho a certeza de que não és a única com uma carta na manga para a cerimónia. Todos queremos impressionar os anciãos.
Elliot desviou o olhar, mergulhando os dedos na água.
— Não é impressioná-los que me preocupa...
Deras aproximou-se, os olhos atentos.
— É a seleção, não é?
Elliot mordeu o lábio inferior, sem responder.
— Elliot, tu és a melhor caçadora e rastreadora que temos. E agora até consegues transformar-te! Não tens nada a temer — insistiu Cilas, convencido.
— Isso não interessa para nada — interrompeu Deras, o tom brusco. — As habilidades servem apenas para mostrar o teu valor. Quando chegar a hora de descobrires que tipo de Lycan estás destinada a ser... nada mais importa. Apenas o que tens dentro de ti.
Cilas bufou, cruzando os braços.
— No meu caso, tenho uma fome de matar. Toda a gente sabe que depende dos teus pais! Os meus são Lycans do Fogo. Isso significa que eu serei um Lycan de espírito imperial, superforte.
Vin revirou os olhos.
— Sabes que só aos dezasseis é que nos tornamos oficialmente Lycans, certo?
— Faltam só oito anos, não é assim tanto tempo. Olha, os pais da Flora são Lycans da Naturo e de espírito silvestre, então ela será um Lycan da Naturo com espírito silvestre. Tu, Vin, os teus pais são Lycans de crista nobre e de espírito livre, então vais ser um Lycan de crista nobre!
Elliot apertou os punhos dentro da água.
— E eu?
Cilas piscou os olhos.
— Tu? Bem... provavelmente um Lycan de espírito livre. Quer dizer... não podes ser algo que não existe.
O silêncio caiu sobre o grupo. O olhar de Elliot escureceu.
— Cilas... — começou Flora, num tom de aviso.
Mas Elliot já se tinha levantado, os punhos tremendo.
— A minha mãe era um Lycan de espírito livre. Morreu ao dar-me à luz. E ninguém sabe quem é o meu pai. Diz-me, Cilas... que Lycan serei eu?
Cilas abriu a boca, mas nada saiu. Pela primeira vez, não tinha uma resposta.
— Isso são só histórias — tentou, mas a sua voz soou mais fraca do que pretendia. — Essas tretas de Lycans impuros e que trazem a morte... são só coisas que os pais inventam para nos mantermos na linha.
Elliot cerrou os dentes.
— Achas mesmo?
Antes que alguém pudesse dizer mais alguma coisa, ela saiu da água de um salto e correu para fora das termas.
Cilas ficou a vê-la desaparecer pelo corredor, sentindo o peso do olhar de todos os outros sobre si.
— Belo trabalho, Cilas — murmurou Deras, sarcástica.
Mas pela primeira vez, Cilas não teve resposta.
*
Cilas não conseguia relaxar. A sala principal estava repleta de Lycans de todas as regiões, cada um trazendo consigo aromas distintos de comida, terra e madeira, misturados com o cheiro quente das tochas acesas. O ar vibrava com risos, vozes altas e o tilintar de copos, mas para Cilas, a festa parecia abafada por uma única preocupação: Elliot não estava lá.
O rastreamento era quase impossível no meio de tantos cheiros e movimentos constantes, mas, felizmente, os amigos ajudaram-no. Depois de algumas trocas de olhares cúmplices e pistas discretas, encontrou-a.
Elliot estava escondida numa falha no teto do salão, um espaço pequeno e apertado que, ainda assim, lhe dava uma vista privilegiada sobre a festa. A entrada era estreita demais para qualquer Lycan adulto passar, o que fazia daquele refúgio o esconderijo perfeito.
Sem hesitar, Cilas espremeu-se pela passagem.
Elliot estava sentada, os joelhos puxados contra o peito. O ambiente era sombrio, mas o seu rosto não mostrava sinais de tristeza.
— Está um pouco frio aqui, não achas? — comentou Cilas, tentando aliviar a tensão.
— Se te incomoda, vai-te embora — respondeu ela, sem o olhar.
Cilas suspirou, mas em vez de insistir, sentou-se ao seu lado.
— Olha... eu sei que não sabes quem é o teu pai — começou ele, a voz mais suave — mas isso não importa. Sejas o que fores, nós vamos estar sempre juntos.
Elliot ficou em silêncio por um momento, os olhos fixos na festa lá em baixo.
— Mas eu não quero ser um Lycan impuro — murmurou finalmente.
Cilas virou-se para ela, determinado.
— Então eu não vou deixar que te tornes num Lycan impuro.
Ela finalmente olhou para ele, avaliando as suas palavras.
— Juras? — perguntou, estendendo o mindinho.
Ele sorriu e entrelaçou o seu mindinho no dela.
— Juro pela minha vida.
Um silêncio confortável instalou-se entre os dois, até uma voz vinda do lado de fora os assustar.
— As pazes já estão feitas?
Cilas deu um pulo, soltando um guincho pouco digno.
— Vin?! O que estás a fazer aqui?!
O amigo surgiu à entrada da falha no teto, encolhendo os ombros.
— Estou a apostar o meu jantar com o Leon. Eu disse que resolvias as coisas, mas a minha barriga já não aguenta muito mais.
— Sim, sim, resolvemos as coisas! — gritou Cilas, ainda meio irritado.
Vin arqueou uma sobrancelha e segurou uma gargalhada.
— Cilas... Sabes que este sítio faz muito eco, certo?
Cilas piscou os olhos, confuso. Elliot, por outro lado, já estava a rir baixinho.
Foi só quando um estrondoso som de gargalhadas irrompeu pelo salão abaixo deles que Cilas percebeu.
Toda a gente na festa tinha ouvido.
*
Depois do episódio da noite anterior, Elliot parecia mais tranquila, mais aberta com os amigos. Ainda havia alguns dias até a cerimônia que os transformaria oficialmente em Lycans. A tribo de Elliot tinha sido uma das últimas a chegar, então não teria muito tempo para aproveitar a calmaria antes do grande momento.
Na manhã da cerimônia, os jovens acordaram cedo, tomados por uma ansiedade vibrante. O salão principal foi preparado para a ocasião: no centro, uma fogueira imensa ardia, as chamas dançando como se já previssem o espetáculo que estava prestes a acontecer. Os membros de todas as tribos sentavam-se em círculos, de pernas cruzadas, respeitando os limites demarcados pelos Anciões. Algumas tribos mais ousadas tinham escalado as paredes, encontrando pontos de apoio para assistirem ao ritual de cima.
A única iluminação vinha do fogo, que projetava sombras sinuosas pelas paredes da caverna.
Os Anciões, envoltos em suas vestes cerimoniais, começaram a caminhar ao redor da fogueira, entoando versos sagrados. As palavras eram antigas, quase sussurros perdidos no calor da chama. O último a contornar o fogo foi Rufios. Quando sua voz cortou o silêncio, era forte e clara como um trovão.
— Hoje, deixam para trás as suas vidas de crias indefesas. A partir deste momento, são Lycans! — A fogueira rugiu como se respondesse à sua afirmação. — Não são mais apenas indivíduos; pertencem a uma tribo, a uma família. Honrem seu povo. Honrem seus antepassados. Não decepcionem os que vieram antes de vocês.
Dito isso, Rufios recuou, dando lugar a outro Ancião, este de vestes azuis. Ele carregava um saco de couro em mãos.
— Chamarei um de vocês por vez — explicou o Ancião, sua voz mais calma, quase gentil. — Cada um deve pegar um punhado do pó sagrado e atirá-lo às chamas. O resto... cabe ao destino.
Os jovens engoliram seco.
— Cilas! Tu primeiro, rapaz.
Cilas respirou fundo, avançou até o Ancião e pegou um punhado do pó. Ao lançar o pó sobre o fogo, as chamas reagiram de imediato, subindo violentamente como se tentassem testá-lo. Eram ferozes, vermelhas e furiosas. Mas Cilas não desviou o olhar. Não recuou.
De repente, um feixe de luz escarlate envolveu seu corpo. Num piscar de olhos, sua forma humana desapareceu, dando lugar a um lobo de pelo vermelho-vivo. Mas a transformação não terminou ali. Suas patas traseiras cresceram, assumindo uma postura ereta. O focinho recuou levemente, e suas orelhas tornaram-se mais longas e afiadas. Quando terminou, Cilas ergueu a cabeça e soltou um uivo estrondoso.
O salão explodiu em celebração. Todos os Lycans uivaram em resposta, saudando o nascimento de um novo Lycan de Espírito Imperial.
Um a um, os jovens repetiram o ritual. Flora tingiu as chamas de verde e transformou-se num Lycan de Espírito Silvestre. Vin brilhou em azul-claro, tornando-se um Lycan de Crista Nobre. Dera recebeu o dom dos Lycans do Vendaval Silencioso. Leon, para espanto geral, obteve uma chama cinzenta — um Lycan de Coração de Aço. O salão tremeu com os uivos, pois já fazia anos que ninguém via um dessa linhagem.
E assim, um a um, os novos Lycans foram nascendo.
Até que chegou a vez de Elliot.
O Ancião sorriu para ela.
— Dizem que o melhor fica para o final.
Elliot respirou fundo, engolindo o nervosismo. Pegou o pó e aproximou-se da fogueira. Quando abriu a mão, libertando o pó sobre as chamas, uma explosão de luz azul atingiu o teto.
O salão ficou em choque.
Cilas sorriu, orgulhoso. Eu estava certo, pensou Elliot, sentindo um alívio inesperado.
Mas então... a chama apagou-se.
O silêncio foi absoluto.
As tribos começaram a murmurar, inquietas. A fogueira só deveria se extinguir depois que todos os jovens completassem a transformação.
Elliot sentiu o estômago afundar.
Antes que pudesse reagir, uma nova chama ergueu-se da fogueira.
Era quase transparente.
A chama movia-se de maneira diferente das anteriores. Deixou o fogo e tomou a forma de uma figura esguia e alta. Silenciosa, flutuou até Elliot.
A jovem congelou no lugar.
A chama inclinou-se para a frente e envolveu-a num abraço. Não queimava. Era quente e gentil.
Elliot sentiu o mundo desvanecer.
Então... veio a transformação.
O salão mergulhou na escuridão quando as chamas apagaram-se completamente.
Quando as tochas foram acesas novamente, o pânico instalou-se.
Elliot não era um lobo.
Seu corpo era negro como a noite, dos pés à ponta dos dedos das mãos. Seu rosto... era um crânio. Não um focinho lupino, mas um esqueleto adornado com penas na lateral da cabeça. Ao longo de seu corpo, marcas brilhantes em azul pulsavam como se tivessem vida própria.
Lycans por todo o salão recuaram, rosnando e mostrando os dentes.
— É um Lyan... — sussurrou um dos Anciões, horrorizado.
— Matem-no!
A ordem atravessou o salão como um trovão.
O caos explodiu.
Cilas tentou correr até Elliot, mas foi contido por um Lycan enorme. Os guardas distribuíam lanças, formando um círculo ao redor dela.
— Elliot, foge! — gritou Cilas, desesperado.
Mas Elliot não se moveu.
Ela olhou para as próprias mãos. Sentia-se... vazia. Como se as suas emoções tivessem sido arrancadas.
Lembrou-se do abraço quente.
Estendeu a mão para a fogueira.
Uma nova chama emergiu dos troncos queimados.
Desta vez, era branca.
Os Lycans recuaram em pavor.
— Isso... não é possível — arfou um Ancião. — Apenas Lycans de sangue puro podem invocar a Chama Branca...
Um guarda, tomado pelo medo, atacou. O bastão de ferro atingiu a cabeça de Elliot com um estalo.
Ela caiu na fogueira.
— ELLIOT! — gritaram os amigos.
Mas Elliot não gritou.
Ela ergueu-se dentro das chamas, observando o fogo envolvê-la sem queimá-la.
Os guardas derramaram álcool na lareira, intensificando as chamas. Ainda assim, Elliot permaneceu imóvel.
Então... tocou o chão da lareira.
Num instante, o salão inteiro congelou.
Os Lycans fugiram, apavorados. Mas era tarde. O gelo avançava sem piedade, cobrindo tudo ao redor. Quando os portões foram trancados, estacas de gelo explodiram da terra, arrancando-os da pedra.
Os Anciões não tiveram escolha.
— Elliot, conforme as leis da nossa raça — declarou Rufios, a voz sombria —, decretamos a tua execução imediata.
— Mas eu não fiz nada! — sua voz tremia.
— Lamento, minha criança — disse outro Ancião. — Mas aberrações como tu não têm lugar aqui.
Assim que Rufios terminou de falar, quatro Lycans que haviam escalado as paredes despencaram do teto, caindo sobre Elliot com as lanças apontadas diretamente para sua cabeça. Tudo aconteceu em um instante. Antes que pudessem atingi-la, quatro caudas emergiram de seu próprio corpo, rápidas como lâminas afiadas, atravessando os assassinos. Um silêncio horrorizado tomou conta do salão quando os corpos se cristalizaram em gelo e se partiram em milhares de estilhaços brilhantes.
Outro grupo avançou para cercá-la, mas espinhos de gelo brotaram do chão, bloqueando seus movimentos. Os cortes que sofreram pareciam insignificantes à primeira vista, mas logo os guerreiros começaram a estremecer, suas respirações transformando-se em vapor branco. O cheiro cortante de magia de gelo impregnava o ar. Elliot ergueu o olhar, o coração disparado, enquanto via os Lycans congelarem de dentro para fora. Um por um, suas formas endureceram, tornando-se estátuas frágeis... e então, com um simples estalo, fragmentaram-se como vidro.
O pavor se espalhou pelo salão.
— Um híbrido! — cuspiu um dos anciões, a voz carregada de asco. — Como ousas manchar o sangue dos Lycans de crista nobre, seu monstro maldito?!
Elliot queria gritar que não entendia o que estava acontecendo. Queria dizer que não era um monstro, que nunca quis machucar ninguém. Mas as palavras ficaram presas em sua garganta.
O ancião que falara deu um passo à frente, seu corpo se expandindo em meio a um brilho azulado. Ossos estalaram, músculos se contorceram, e em segundos, um Lycan imenso de crista nobre surgiu diante dela, os olhos ardendo em fúria.
O instinto tomou conta do corpo de Elliot antes mesmo que ela pudesse pensar. O chão rachou sob seus pés quando se virou e disparou para a saída. Atrás dela, um rugido profundo reverberou pelo santuário, fazendo as paredes estremecerem.
Elliot correu para a saida, saltando para o meio da neve e arriscando a sua vida no meio da tempestade.
O frio cortava como lâminas afiadas. Elliot correu sem olhar para trás, os pulmões a arder a cada respiração gélida. A neve castigava o seu corpo como um milhão de agulhas, o vento uivava como um monstro faminto, e o mundo à sua volta dissolvia-se num turbilhão de branco e sombras indistintas.
O santuário já não passava de uma silhueta distante, engolida pelo caos da tempestade. O gelo sob os seus pés estalava a cada passo, traiçoeiro, como se a própria terra tentasse detê-la. O vento era impiedoso, empurrando-a para trás, tentando sufocá-la com redemoinhos de neve densa.
Atrás dela, o som de patas pesadas rompia o rugido do vento. Eles ainda vinham. Elliot conseguia sentir os seus olhares carregados de ódio no meio da nevasca, como tochas vivas na escuridão.
Tentou acelerar, mas os seus músculos estavam rígidos, o frio a infiltrar-se até aos ossos. Os pés afundavam-se na neve fofa, tornando cada movimento mais difícil.
De repente, o gelo traiçoeiro quebrou-se sob ela. O seu corpo tombou, deslizando por uma encosta oculta pela tempestade. Rolou, neve e gelo a arranharem-lhe a pele, até finalmente parar, o peito arfante contra o solo gelado.
O silêncio tomou conta por um instante.
Então, um rugido rasgou os céus.
Elliot forçou-se a levantar. Não podia parar. Não agora.
O vento açoitava-lhe o rosto enquanto se arrastava para a frente, cada passo uma luta contra a própria natureza. Mas se havia algo que aprendera naquela noite, era que, por mais que o mundo a odiasse...
Ainda estava viva.
E, por isso, seguiria em frente.
*
-Foi basicamente isso que aconteceu. Terminou, por fim, olhando para a cara estupefata de Bill.
-Eu... eu não fazia ideia — disse Bill, engolindo em seco.
-Sinceramente pensei que ias dizer que não era grande coisa.
-Mas afinal, por quem me tomas? — perguntou Bill, escandalizado.
-É que normalmente não dás importância ao que os outros dizem ou ao que passaram.
-E isso faz de mim alguém completamente insensível?
-Na maior parte dos casos, sim.
-E posso supor que depois disso foi o Doreán que te achou?
Várias memórias passaram pela cabeça de Elliot, quase todas horríveis. Hesitou um pouco antes de responder.
-Sim, foi mais ou menos isso.
O som do vento substituiu a conversa de ambos por alguns segundos.
-Elliot? — chamou Bill, com uma voz suave.
-Sim?
-Bem... é que... eu acho... que não te agradeci por toda a ajuda que me deste, especialmente naquela situação com o Bell e o Alock. Então, se precisares de ajuda, sabes... podes contar comigo, se precisares.
-Não acredito... — disse Elliot, muito chocada, os olhos arregalados enquanto tentava compreender o que acabara de ouvir. — Acho que o Alock bateu-te com força demais.
-Sabes que mais? Esquece... — respondeu Bill, levantando-se rapidamente e tentando esconder o rubor nas bochechas.
-Ei, Bill — chamou Elliot, com uma voz suave. — Espera. Obrigado.
Agradeceu de forma tão sincera que Bill ficou ainda mais corado. Aquelas palavras, simples mas carregadas de significados, fizeram-no sentir-se como se tivesse recebido algo muito mais valioso do que apenas gratidão.
- Olha, daqui já se consegue ver a fronteira. — disse Elliot, apontando para o horizonte.
Bill voltou-se imediatamente, os seus olhos fixando-se na linha distante. Embora fosse muito longe, já era possível distinguir a silhueta de uma barreira mágica e, um pouco mais à frente, o que parecia ser um forte imponente. O vento acariciava-lhe o rosto, trazendo consigo uma sensação de renovação.
E foi com essa visão que Bill se sentou de novo, sentindo o peso das palavras de Elliot no coração. A brisa fresca e os sons harmoniosos do Vagante trouxeram-lhe uma estranha sensação de paz. Estava a terminar uma das fases da sua jornada. Agora, só restava recuperar as suas forças, e preparar-se para a próxima etapa. Uma etapa que sabia ser ainda mais difícil, mas que agora já não enfrentaria sozinho.
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